versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.3 São Paulo jul./set. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1721
Os sintomas de depressão podem ocorrer em até 45% dos pacientes internados em hospitais, sendo que a depressão maior pode ocorrer em 16 até 31% dos casos. Mudanças no padrão de vida e ocorrência de eventos negativos que representam uma ruptura do comportamento usual que afetam o bem-estar do indivíduo têm sido apontadas como fator de risco para desenvolvimento de transtornos depressivos, que se apresentam como uma forma de reação ao estresse(1-5).
Fatores como a gravidade da doença, os tipos de tratamento e o prognóstico freqüentemente têm impacto significativo no humor do paciente. O surgimento de sintomas depressivos durante a hospitalização pode ser a expressão de uma reação aguda ao estresse relacionado ao evento. Também tem sido alvo de outros estudos a demonstração da relação entre aumento da mortalidade na síndrome coronariana aguda (SCA) e depressão(6-11).
Nos indivíduos sem SCA, com diagnóstico de transtorno depressivo, observou-se maior chance de desenvolver SCA do que em não deprimidos. Já nos indivíduos com diagnóstico de SCA associada a transtorno depressivo, o risco de morte por causas cardiovasculares foi maior. Isso ocorre porque a depressão piora a adesão ao tratamento e às mudanças de hábitos de vida, dificultando a cessação do fumo, a adoção de alimentação saudável, o início e a manutenção da prática de exercícios e o uso regular dos medicamentos recomendados. Dois estudos de revisão sistemática com meta-análise demonstraram que pacientes com doença coronariana associada a sintomas depressivos tiveram, respectivamente, 2,24 e 2,59 mais chances de morrer em relação aos pacientes sem sintomas depressivos(9-14).
Traçar o perfil epidemiológico da amostra, verificar a presença de sintomas de depressão em pacientes com diagnóstico prévio de SCA e identificar os fatores contribuintes para a manutenção dos sinais e sintomas de depressão após o diagnóstico de SCA.
Estudo transversal realizado no Ambulatório de Cardiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). O estudo baseou-se na coleta de dados dos pacientes com diagnóstico de SCA por meio de entrevista e preenchimento de um instrumento elaborado pelos autores baseado em estudos semelhantes contendo dados sobre: identificação, renda, grau de escolaridade, diagnóstico principal, doenças associadas, avaliação e acompanhamento psicológico, apoio da família e lazer sob o ponto de vista do paciente.
Foi aplicado o Inventário de Depressão de Beck (BDI) na sua versão em português para rastreamento de depressão (15,16). O BDI é formado por questões fechadas com quatro opções de resposta para cada pergunta; cada resposta tem uma pontuação de 0 a 3, indicando a severidade dos sintomas. A escolha desse instrumento ocorreu por ser validado para autoaplicação e por ter sensibilidade de 82% e especificidade de 79% para diagnóstico de depressão maior em pacientes com diagnóstico de infarto do miocárdio(17). De acordo com a sugestão do autor do questionário, foi utilizada a subescala cognitivo-afetiva, que inclui somente os 13 primeiros itens para pacientes com doenças físicas. Escores de 0 a 4 representam sintomas leves de depressão; escores de 5 a 9, sintomas leves a moderados; e o ponto de corte sugerido é 10/11 para sintomas moderados a graves(18,19). No presente estudo, essa escala não foi utilizada para fazer diagnóstico de depressão, e somente indicou quem apresentava sinais e sintomas da doença.
Os critérios de inclusão foram: idade acima de 18 anos, diagnóstico de infarto do miocárdio com ou sem supradesnivelamento do segmento ST, capacidade de compreensão/ cognição preservada e ausência de diagnóstico de depressão anteriormente à ocorrência de SCA. Foram critérios de exclusão não aceite em participar do estudo, infarto agudo do miocárdio (IAM) devido ao uso de drogas ilícitas, capacidade de compreensão/cognição prejudicada e diagnóstico de depressão anterior a ocorrência de SCA.
A seleção foi feita por meio da avaliação dos prontuários dos pacientes a partir dos critérios de inclusão e exclusão do estudo. As consultas no Ambulatório de Cardiologia da UNIFESP são agendadas com até 3 meses de antecedência e os prontuários de todos os pacientes que serão atendidos são retirados por um funcionário administrativo do Serviço de Arquivo Médico Estatístico do Hospital São Paulo e levados para o Ambulatório de Cardiologia no dia da consulta.
Optou-se pela amostra de conveniência. As entrevistas não foram agendadas e a abordagem do paciente para participar do estudo foi feita previamente ou posteriormente à consulta médica no ambulatório. Consentida a participação, o paciente era entrevistado por um dos autores do estudo. Finalizada a entrevista, o paciente era orientado quanto ao preenchimento do BDI (auto-aplicação).
Foram entrevistados 200 pacientes no período de Julho a Novembro de 2005, tendo sido utilizado o teste de Spearman para análise estatística e correlação das variáveis (coeficiente de correlação = r), adotado o nível de significância de 5% (alfa = 0,050) e o intervalo de confiança (IC) 95%. O programa utilizado para obtenção dos resultados foi o Statistical Package for Social Sciences versão 13.0.
A coleta de dados foi iniciada após autorização do médico responsável pelo Ambulatório de Cardiologia e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP sob o número de protocolo 0626/05. Este estudo foi desenvolvido de acordo com os princípios da Declaração de Helsinki(20).
O presente estudo foi desenvolvido com recursos próprios dos autores.
Na Tabela 1, encontram-se os dados referentes às características básicas da amostra estudada, como sexo, faixa etária, estado civil, renda mensal, grau de escolaridade e conhecimento da doença. As profissões apareceram de forma muito heterogênea e, para facilitar o entendimento, foram distribuídas em quatro categorias: aposentados, empregados, do lar e desempregados.
Tabela 1 Características básicas da amostra (n = 200)
Características | % | número absoluto | Média ± DP | Mediana (min-máx) | |
---|---|---|---|---|---|
Homens/mulheres | 63,5/36,5 | 127/73 | |||
Idade em anos | 60,2 ± 9,4 | 60 (36-81) | |||
40 a 60 | 50,5 | 101 | |||
61 ou mais | 49,5 | 99 | |||
Estado civil | |||||
Casado | 71 | 142 | |||
Viúvo | 14,5 | 29 | |||
Divorciado | 8,5 | 17 | |||
Solteiro | 6 | 12 | |||
Situação frente ao trabalho | |||||
Aposentado | 36,5 | 73 | |||
Empregado | 45 | 90 | |||
Desempregado | 2,5 | 5 | |||
Dona de casa | 16 | 32 | |||
Renda mensal (salário mínimo) | |||||
Inferior a 2 | 14,5 | 29 | |||
de 2 a 3 | 50,0 | 100 | |||
de 3 a 4 | 21,0 | 42 | |||
Mais de 4 | 14,5 | 29 | |||
Grau de escolaridade | |||||
Analfabeto | 1,5 | 3 | |||
Ensino fundamental incompleto | 45,0 | 90 | |||
Ensino fundamental completo | 24,0 | 48 | |||
Ensino médio incompleto | 6,5 | 13 | |||
Ensino médio completo | 15,5 | 31 | |||
Superior incompleto | 2,0 | 4 | |||
Superior completo | 5,0 | 10 | |||
Pós graduação | 0,5 | 1 | |||
Conhecimento sobre a doença | 81/19 | 162/38 | |||
Total | 100 | 200 |
DP: desvio padrão.
As variáveis “renda mensal” e “grau de escolaridade” apresentaram uma relação diretamente proporcional (r = 0,236; p = 0,001).
Na avaliação do grau de escolaridade, 45% (n = 90) relatou ensino fundamental incompleto e 24% (n = 48) ensino fundamental completo; na correlação entre as variáveis, foi possível observar que quanto menor o grau de escolaridade, menor foi o conhecimento sobre a doença (SCA) (r = 0,278; p = < 0,001),sendo que 81% (n = 162) dos pacientes negaram ter qualquer conhecimento sobre a doença.
Na Tabela 2 estão os dados referentes ao diagnóstico principal e as comorbidades de acordo com os prontuários dos pacientes.
Tabela 2. Diagnóstico principal e comorbidades (n = 200)
Diagnóstico principal | % | Número absoluto | |
---|---|---|---|
Angina instável | 5 | 10 | |
IAM | 23,5 | 47 | |
IAM com supra | 4 | 8 | |
IAM sem supra | 35 | 70 | |
Insuficiência coronária | 23,5 | 47 | |
SCA | 9 | 18 | |
Total | 100 | 200 | |
Comorbidades | % | Número absoluto | |
Hipertensão | 87 | 174 | |
Dislipidemia | 81 | 162 | |
Diabetes | 38 | 76 | |
Ex-tabagista | 38 | 76 | |
Tabagista | 28 | 56 | |
Cardiopatias (isquêmicas/arritmias) | 28,5 | 57 | |
Acidente vascular cerebral | 5,5 | 11 | |
Outras doenças | 13 | 26 |
IAM: infarto agudo do miocárdio; SCA: síndrome coronariana aguda.
O tempo desde o diagnóstico de SCA variou de um mínimo de 6 meses, 9% (n = 18) até mais de 7 anos 10,5% (n = 21), com predominância de 40% (n = 80) da amostra no período de 2 a 3 anos.
Nos itens relacionados especificamente à avaliação e ao acompanhamento psicológico 82% (n = 164) negaram ter feito qualquer acompanhamento com psicólogo ou psiquiatra em qualquer momento da doença, seja durante a hospitalização ou no período após a alta hospitalar. Esses dados foram confrontados com os registros em prontuário e foi possível constatar concordância entre eles e o relato do paciente (Tabela 3).
Tabela 3. Características relacionadas ao acompanhamento psicológico e suporte emocional (n = 200)
Características | % | Números absolutos | |||
---|---|---|---|---|---|
Acompanhamento psicológico | Sim/Não | Sim/Não | |||
18 / 82 | 36 / 164 | ||||
Total | 100 | 200 | |||
Apoio da família | |||||
Frequentemente | 50 | 100 | |||
Sempre | 26,5 | 53 | |||
Ocasionalmente | 17,5 | 35 | |||
Nunca | 6 | 12 | |||
Total | 100 | 200 | |||
Vida social (múltiplas respostas) | |||||
Não sai de casa para lazer | 56 | 118 | |||
Visita familiares | 33 | 69 | |||
Diminuíram visitas de familiares e amigos | 11 | 23 | |||
Total | 100 | 210 | |||
O que mudou em sua vida após SCA? (múltiplas respostas) | |||||
Diminuíram as atividades diárias | 25,3 | 63 | |||
Nada mudou | 16,1 | 40 | |||
Sentem insegurança | 14,4 | 36 | |||
Modificaram o hábito alimentar | 8,4 | 21 | |||
Pararam de trabalhar | 7,2 | 18 | |||
Tudo mudou de forma negativa | 5,2 | 13 | |||
Sentem medo ou raiva | 7,2 | 18 | |||
Preocupam-se mais com a saúde Pararam de fumar | 2,4 | 6 | |||
Pararam de fumar | 3,3 | 8 | |||
Sentem-se indispostos e com fadiga | 2,4 | 6 | |||
Sentem-se sozinhos | 1,6 | 4 | |||
Começaram a cuidar mais da saúde | 3,3 | 8 | |||
Ficaram mais dependentes de outras pessoas | 1,2 | 3 | |||
Sentem-se mais calmos | 0,8 | 2 | |||
Têm mais disposição | 0,8 | 2 | |||
Sentem-se felizes | 0,4 | 1 | |||
Total | 100 | 249 |
SCA: síndrome coronariana aguda.
Nas questões relacionadas à vida social dos pacientes e às mudanças que ocorreram após a doença foi permitida mais de uma resposta por paciente (Tabela 3).
Houve uma relação inversamente proporcional que demonstrou que quanto menor apoio da família e o grau de escolaridade, maior o isolamento social, respectivamente (r = - 0,170; p = 0,016 e r = - 0,163; p = 0,021).
Na análise das respostas sobre as mudanças que ocorreram após a SCA foi possível notar que 80% (n = 167) dos pacientes expressaram frases com características negativas e 20% (n = 42) expressaram frases com características positivas. Na comparação entre as variáveis, a expressão de frases negativas esteve diretamente relacionada à falta de acompanhamento psicológico (r = 0,144; p = 0,042).
Já na aplicação do BDI 33,5% (n = 67) apresentaram escores entre 0 e 4 indicando sintomas depressivos leves; 36% (n = 72) apresentaram escores entre 5 e 9 indicando sintomas depressivos leves a moderados; e 30,5% (n = 61) escores 10 ou mais, indicando sintomas depressivos moderados a graves. Não houve correlações significativas entre o resultado do BDI e as demais variáveis do estudo.
De acordo com os resultados da aplicação do BDI existem algum grau de depressão na amostra do presente estudo, o que foi corroborado pela existência de um grande número de aspectos negativos relacionados à ocorrência da SCA citados pelos pacientes. Também foi possível evidenciar que, independentemente do tempo após a ocorrência da doença, os sintomas depressivos podem persistir por anos, visto que neste estudo foram coletados dados de pacientes com tempo de diagnóstico variando de 6 meses até mais de 7 anos, com provável prejuízo da qualidade vida em todo esse período.
O grau de escolaridade talvez seja a variável socioeconômica de maior destaque, visto que na amostra entrevistada evidenciou-se uma concentração de pacientes na faixa entre ensino fundamental incompleto e ensino fundamental completo, e por ter estabelecido relações significativas com menor renda mensal, menor conhecimento da doença e maior isolamento social. As relações estabelecidas entre esses fatores psicossociais criam um contexto social desfavorável, prejudicando o enfrentamento da doença.
Esse contexto social desfavorável associado à falta de acompanhamento psicológico, de terapêuticas individualizadas, de programas de prevenção primária e secundária e de centros de reabilitação são pontos fortes para o insucesso no tratamento. O grau de escolaridade é um fator psicossocial importante, que interfere negativa ou positivamente nos atos do indivíduo, além de conferir ou não possibilidades de acesso a melhor status socioeconômico, e facilitar o acesso ao conhecimento e à compreensão da doença, permitindo maior liberdade de escolha sobre as mudanças a serem incorporadas em sua vida, e atribuindo-lhe responsabilidade sobre seus atos e consequências desses atos no que diz respeito à doença e o tratamento; no caso da SCA, atribui maior controle sobre os fatores de risco, evitando novos eventos isquêmicos(21).
Não foi estabelecida uma relação estatisticamente significativa das variáveis estudadas com a presença de sintomas depressivos na amostra, no entanto foi possível observar paralelamente correlações entre aspectos negativos e isolamento social, que causam prejuízo para adesão ao tratamento e a adoção de um novo estilo de vida (21-27).
A família deve estar envolvida nesse momento de recuperação, mas não deve ser encorajado aos familiares cuidados excessivos e desnecessários para que o paciente não se sinta incapaz para retornar às atividades de vida diária. Todas as mudanças de hábitos podem ser estimuladas pelo grupo familiar como a cessação do fumo, a mudança dos hábitos alimentares e a prática de exercícios, e devem ser acompanhadas por um profissional habilitado (28-31).
Os resultados do presente estudo são corroborados por outros estudos de mesmo tema e têm alto impacto para prática clínica, ao demonstrar que, apesar da depressão ter sido considerada como fator de risco para um segundo evento isquêmico por piorar a adesão ao tratamento e às mudanças dos hábitos de vida, este fato pode estar sendo negligenciado.
Este é um problema multifatorial. Envolve políticas públicas de saúde e educação. As estratégias desenvolvidas devem ser baseadas no contexto socioeconômico e cultural da população, na tentativa de modificar a realidade e alcançar as mudanças necessárias para manutenção da saúde.
O perfil da amostra do estudo evidenciou um grupo de adultos masculinos, casados, com média de idade de 60 anos, empregados, com baixo grau de escolaridade e baixa renda mensal.
Todos os pacientes da amostra apresentaram algum grau de sintomas depressivos com prevalência de sintomas leves a moderados evidenciados pela aplicação do BDI.
Foi evidenciado, pelo relato dos pacientes ou pelo teste de correlação entre as variáveis, que os principais fatores que provavelmente contribuem para a manutenção dos sinais e sintomas de depressão da amostra foram: baixo grau de escolaridade, não conhecimento da doença (SCA), falta de apoio da família, isolamento social, ausência de avaliação e acompanhamento por psicólogo ou psiquiatra, e alta freqüência de aspectos negativos com evidente prejuízo da qualidade de vida.