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Sintomas do trato vocal e índice de desvantagem vocal para o canto moderno em cantores evangélicos

Sintomas do trato vocal e índice de desvantagem vocal para o canto moderno em cantores evangélicos

Autores:

Joel Pinheiro,
Kelly Cristina Alves Silverio,
Larissa Thaís Donalonso Siqueira,
Janine Santos Ramos,
Alcione Ghedini Brasolotto,
Fabiana Zambon,
Mara Behlau

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.29 no.4 São Paulo 2017 Epub 24-Ago-2017

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172016187

INTRODUÇÃO

O grupo de louvor no meio evangélico é geralmente composto por fiéis que são envolvidos com o ministério de música e canto. Entende-se por ministério de louvor o nome dado em muitas igrejas protestantes e em algumas católicas aos departamentos eclesiásticos encarregados da música litúrgica e aos conjuntos musicais, atendendo à demanda espiritual e emocional dos fiéis(1). Assim, atualmente, fazem parte do grupo de louvor os cantores amadores e profissionais, músicos instrumentistas e técnicos de som. O grupo de louvor nas igrejas evangélicas tem a importante função de conduzir os fiéis a louvarem e adorarem a Deus por meio do canto durante a realização do culto(2), assumindo importante função nas programações da igreja. Os cantores evangélicos geralmente desenvolvem o canto por satisfação pessoal, vocação ou por talento, tornando-se assim cantores amadores, quase sempre sem preparo ou acompanhemento específico(3).

Cantores amadores podem apresentar queixas variadas em relação a sua voz e ao desconforto no trato vocal, tais como: rouquidão, falhas e perda de voz, dificuldade para atingir notas agudas ou graves, pigarros constantes, dor na região do pescoço, bem como sensação de aperto ou bola na garganta e sensação de garganta seca(4,5). Essas alterações podem ser consequência da falta de conhecimento sobre a anatomia e fisiologia vocal, uso inadequado da voz, desconhecimento de técnicas e treinamento vocal específico para o uso da voz cantada, o que pode comprometer também a qualidade de vida para o canto. Além do despreparo e falta de conhecimento vocal evidenciados nos cantores evangélicos, há também a presença de aspectos de religiosidade e espiritualidade que interferem no comportamento vocal desses indivíduos, levando-os a praticarem seus atos religiosos quase sempre em intensidade vocal elevada, inclusive durante o canto(2,6). É importante ressaltar que a presença de sintomas pode revelar apenas um uso mais intenso da voz e não significa presença de disfonia; contudo, é importante valorizar essas queixas ou sintomas discretos, a fim de se prevenir ajustes inadequados e até mesmo facilitar o desenvolvimento de uma voz cantada emitida com conforto e sem esforço.

Diante disso, instrumentos que avaliem os sintomas do trato vocal e qualidade de vida dos cantores evangélicos são importantes ferramentas para a compreensão das queixas e da percepção dessa população. Embora tenham sido desenvolvidos com o objetivo de identificar problemas vocais, podem ajudar a discriminar indivíduos que necessitam de atenção em relação às manifestações vocais(7).

Um dos instrumentos de avaliação existentes na clínica vocal é a Escala de Desconforto do Trato Vocal (EDTV) que permite mensurar a frequência e intensidade de sintomas de desconforto no trato vocal(8). O uso dessa escala pode ser útil quando aplicada em cantores, uma vez que o canto exige maior solicitação muscular do que a fala(9) e, portanto, principalmente cantores iniciantes podem apresentar sinais de desconforto na atividade do canto.

Quanto aos protocolos especificamente desenvolvidos para pesquisar a autopercepção vocal relacionada ao canto, dois deles foram traduzidos e adaptados para o português, como o Índice de Desvantagem Vocal no Canto Clássico - IDCC(10) e o Índice de Desvantagem para o Canto Moderno- IDCM(7). O IDCM é um questionário adaptado do protocolo Índice de Desvantagem Vocal - IDV(7,11,12) e é o mais adequado para ser utilizado com os cantores evangélicos, os quais desenvolvem suas vozes no estilo popular, pois se mostra mais sensível para verificar possíveis problemas vocais nesta população.

Existem poucos estudos que avaliaram a desvantagem vocal no canto em indivíduos evangélicos(3,13,14) e os poucos existentes divergem em seus achados, sendo que um relata não existir diferença entre os gêneros(3), enquanto outro revela que mulheres apresentam maior índice de desvantagem vocal(13), o que indica a necessidade da realização de mais estudos, a fim de se compreender melhor essa questão.

A literatura reiteradamente aponta que mulheres têm mais risco de desenvolver problemas vocais e maior ocorrência de disfonia(15-18). Sabe-se que homens e mulheres apresentam diferenças anatômicas nas estruturas laríngeas que podem contribuir para o aparecimento de alterações vocais, e a literatura relata que mulheres são mais predisponentes às alterações vocais devido a características particulares de cada gênero(16-18). Porém há a necessidade de que mais estudos sejam realizados a fim de se compreender melhor essa questão.

Diante disso, o objetivo deste trabalho foi correlacionar os sintomas de desconforto do trato vocal e de desvantagem de voz percebida em homens e mulheres cantores evangélicos.

MÉTODO

Trata-se de estudo observacional e transversal. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição (CEP 302.062/2013), e todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Casuística

A casuística deste estudo foi de conveniência e participaram 100 cantores evangélicos voluntários de ambos os gêneros, média de idade de 38 anos (mínima de 18 e máxima de 78), divididos em dois grupos, conforme o gênero: 50 cantores do Grupo Masculino (GM), com média de idade de 37,9 anos e 50 cantores do Grupo Feminino (GF), com média de idade de 37,9. O tempo de canto mínimo e máximo referido pelos cantores do GM foi, respectivamente, um ano e 63 anos (média de 11,5 anos). Quanto aos cantores do GF, o tempo mínimo de canto foi de um ano e o tempo máximo de canto foi de 41 anos (média de 11,2 anos).

Foram incluídos, em ambos os grupos, cantores que declararam praticar o canto evangélico com experiência de, no mínimo, um ano de atividade no canto. Foram excluídos os cantores considerados visitantes (cantores que não pertenciam à determinada igreja, mas que estavam participando pontualmente de alguma atividade promovida por ela) do ministério de louvor e eventuais participantes não evangélicos, professores de canto também foram excluídos. Indivíduos que referiram problema vocal anterior, com tratamento médico ou fonoaudiológico, também foram excluídos.

Procedimentos

Todos os participantes responderam a um questionário para obtenção de dados demográficos e de histórico vocal além dos dois instrumentos: Escala de Desconforto do Trato Vocal - EDTV(17) e Índice de Desvantagem Vocal para o Canto Moderno - IDCM(7).

O questionário de dados demográficos e histórico vocal investigou aspectos, tais como: idade, profissão, tipo de canto (em coro, grupo vocal, solo, etc.) e tempo de utilização da voz cantada, com questões semiabertas e fechadas, utilizado apenas para caracterizar a casuística.

A Escala de Desconforto do Trato Vocal - EDTV(8), traduzida para o português brasileiro por Rodrigues et al.(17), é uma escala de autoavaliação em que o indivíduo registra a frequência e a intensidade de oito sintomas qualitativos do trato vocal: queimação, aperto, secura, garganta dolorida, coceira, garganta sensível, garganta irritada e bolo na garganta. As questões foram assinaladas pelos cantores de acordo com a frequência e intensidade do sintoma, em escala que varia de 0 a 6 pontos. Para a frequência, a escala varia de nunca (0), às vezes (1-2), muitas vezes (3-5) e sempre (6). Para a intensidade do sintoma, a escala permite assinalar: nenhuma (0), leve (1-3), moderada (4-5) e extrema (6).

O Índice de Desvantagem Vocal para o Canto Moderno - IDCM é composto por 30 itens, distribuídos em três subescalas: incapacidade, desvantagem e defeito, que correspondem aos domínios funcional, emocional e orgânico, respectivamente. Cada questão é respondida de acordo com a escala de cinco pontos, que varia de zero a quatro: 0 = nunca, 1 = quase nunca, 2 = às vezes, 3 = quase sempre e 4 = sempre. O valor máximo para cada subescala é 40 pontos e para o escore total, calculado pela somatória dos três domínios, é de 120 pontos. Quanto maior a pontuação, maior a desvantagem percebida pelo indivíduo(7). Apesar de ser indicado para cantores profissionais, o IDCM pode ser aplicado também em cantores amadores(3,7).

O questionário e protocolos foram aplicados em dias e horários de encontro nas igrejas, antes ou após o culto religioso, de forma aleatória e de acordo com o tempo de cada participante. Como forma de atender aos aspectos éticos, todos os indivíduos foram convidados a assistir uma palestra sobre cuidados com a voz realizada em dia agendado, posterior à coleta de dados. Os que apresentaram queixa de voz foram encaminhados para avaliação laringológica e vocal, no dia da palestra.

Análise de dados

Foi realizada a comparação entre os gêneros, tanto em relação aos sintomas do trato vocal, como em relação aos índices de IDCM, por meio do teste Mann-Whitney. Para a correlação entre as respostas na Escala de Desconforto no Trato Vocal e IDCM, foi utilizado o teste de Correlação de Sperman. Para o teste de correlação, adotou-se a proposta de Dancey e Reidy(19) que revela que os valores de classificação da correlação são: r = 0,10 a 0,30 (fraco); r = 0,40 a 0,60 (moderado); r = 0,70 a 1 (forte). Em todos os testes estatísticos, foi adotado nível de significância de 5% (p<0,05).

RESULTADOS

Comparação entre gêneros

As Tabelas 1 e 2 mostram a comparação entre o Grupo feminino e o Grupo masculino referente à frequência e à intensidade dos sintomas da escala de desconforto do trato vocal (EDTV), respectivamente. Foi possível observar que houve diferença significante entre os grupos, sendo que as cantoras evangélicas apresentaram sintomas de desconforto do trato vocal mais frequentes e mais intensos.

Tabela 1 Média e desvio padrão (DP) dos valores referentes à frequência dos sintomas do trato vocal relatada pelos indivíduos evangélicos do Grupo Feminino e Masculino por meio da Escala de Desconforto do Trato Vocal (EDTV) 

Sintomas EDTV Feminino Masculino Valor de p
Média DP Média DP
Queimação 1,10 1,37 0,66 1,09 0,09
Aperto 0,70 1,21 0,30 0,73 0,10
Secura 1,30 1,32 0,76 1,13 0,02
Garganta Dolorida 1,14 1,27 0,60 1,05 0,03
Coceira 1,08 1,27 0,48 1,01 0,00
Garganta Sensível 1,00 1,27 0,64 1,38 0,01
Garganta Irritada 1,04 1,14 0,82 1,43 0,05
Bola na Garganta 0,56 0,83 0,24 0,65 0,01
Escore total 1,07 0,84 0,68 0,93 0,51

Teste de Mann-Whitney (p<0,05)

Legenda: nunca = 0; às vezes = 1 a 2,99; muitas vezes = 3 a 4,99; sempre = 5 a 6

Tabela 2 Média e desvio padrão (DP) dos valores referentes à intensidade dos sintomas do trato vocal relatada pelos indivíduos evangélicos do Grupo Feminino e Masculino por meio da Escala de Desconforto do Trato Vocal (EDTV) 

Sintomas EDTV Feminino Masculino Valor de p
Média DP Média DP
Queimação 1,16 1,47 0,70 1,19 0,09
Aperto 0,74 1,20 0,30 0,67 0,08
Secura 1,30 1,55 0,82 1,22 0,12
Garganta Dolorida 1,30 1,55 0,76 1,30 0,04
Coceira 1,14 1,37 0,70 1,35 0,02
Garganta Sensível 0,88 1,22 0,60 1,28 0,085
Garganta Irritada 1,36 1,49 0,66 1,33 0,00
Bola na Garganta 0,74 1,15 0,28 0,83 0,01
Escore Total 1,16 0,90 0,73 0,98 0,21

Teste de Mann-Whitney (p<0,05)

Legenda: nenhuma = 0; leve = 1 a 2,99; moderada = 3 a 4,99; extrema = 5 a 6

Na Tabela 3, encontra-se a comparação dos domínios do protocolo Índice de Desvantagem Vocal para o Canto Moderno (IDCM) entre o Grupo feminino e o Grupo masculino. Foi possível observar que houve diferença entre os grupos, sendo que as cantoras evangélicas apresentaram maior desvantagem para o canto, em todos os domínios do protocolo.

Tabela 3 Média e desvio padrão (DP) dos domínios do protocolo Índice de Desvantagem para o Canto Moderno (IDCM) dos indivíduos evangélicos do Grupo Feminino e Masculino 

DOMÍNIOS
DO IDCM
Feminino Masculino P
Escore DP Média DP
Incapacidade 10,34 9,87 5,86 7,65 0,01
Desvantagem 9,86 10,11 4,46 7,76 0,00
Defeito 13,22 10,74 6,44 8,59 0,00
Total 33,42 27,85 16,76 20,65 0,00

Teste de Mann-Whitney (p<0,05)

Correlação entre EDTV e IDCM

As Tabelas 4 e 5 mostram as correlações significantes entre a Escala de desconforto do trato vocal (EDTV) e o Índice de Desvantagem Vocal para o Canto Moderno (IDCM) em cantores evangélicos. As correlações revelam que quanto maior a frequência e a intensidade dos sintomas do trato vocal, maior é a desvantagem para o canto. No presente estudo, todos os sintomas de desconforto no trato vocal se correlacionaram com todas as subescalas do protocolo IDCM, tanto em frequência quanto em intensidade.

Tabela 4 Valores de correlação entre frequência dos sintomas relatados por meio da Escala de Desconforto do Trato Vocal (EDTV) e domínios do Índice de Desvantagem para o Canto Moderno (IDCM) dos indivíduos evangélicos 

Sintomas do EDTV Incapacidade Desvantagem Defeito Total
Valor p r Valor p r Valor p r Valor p r
Queimação 0,00 0,45 0,00 0,33 0,00 0,50 0,00 0,49
Aperto 0,00 0,42 0,00 0,34 0,00 0,32 0,00 0,43
Secura 0,07 0,17 0,03 0,21 0,00 0,30 0,00 0,27
Garganta Dolorida 0,00 0,42 0,00 0,35 0,00 0,46 0,00 0,48
Coceira 0,00 0,28 0,00 0,26 0,00 0,41 0,00 0,37
Garganta Sensível 0,00 0,38 0,00 0,32 0,00 0,44 0,00 0,43
Garganta Irritada 0,00 0,45 0,00 0,32 0,00 0,41 0,00 0,44
Bolo na Garganta 0,00 0,36 0,00 0,38 0,00 0,37 0,00 0,41
Escore total 0,00 0,46 0,00 0,42 0,00 0,54 0,00 0,52

Correlação de Sperman (p<0,05)

Tabela 5 Valores de correlação entre intensidade dos sintomas relatados por meio da Escala de Desconforto do Trato Vocal (EDTV) e domínios do Índice de Desvantagem para o Canto Moderno (IDCM) dos indivíduos evangélicos 

Sintomas do EDTV Incapacidade Desvantagem Defeito Total
Valor p r Valor p r Valor p r Valor p r
Queimação 0,00 0,36 0,00 0,29 0,00 0,46 0,00 0,44
Aperto 0,00 0,36 0,01 0,25 0,01 0,25 0,00 0,32
Secura 0,00 0,29 0,05 0,18 0,00 0,31 0,00 0,29
Garganta Dolorida 0,00 0,39 0,00 0,40 0,00 0,44 0,00 0,45
Coceira 0,00 0,33 0,01 0,23 0,00 0,45 0,00 0,39
Garganta Sensível 0,00 0,42 0,00 0,27 0,00 0,39 0,00 0,39
Garganta Irritada 0,00 0,36 0,00 0,31 0,00 0,38 0,00 0,39
Bolo na Garganta 0,00 0,40 0,00 0,40 0,00 0,40 0,00 0,44
Escore total 0,00 0,46 0,00 0,41 0,00 0,52 0,00 0,00

Correlação de Spearman (p<0,05)

DISCUSSÃO

Cantores evangélicos dão grande importância para a transmissão da mensagem emocional durante o canto religioso, utilizando-o como forma de adoração, oração, súplica e satisfação pessoal. Como, de fato, são estas as prioridades dos evangélicos durante o louvor, acabam dando menor valor à qualidade vocal ao cantar. Além disso, poucos evangélicos percebem suas alterações vocais ou valorizam tais alterações(5), pois a maioria pratica o canto durante anos sem nunca ter estudado sobre essa questão ou fazer uso de técnica vocal(4,20).

Muitos cantores evangélicos não apresentam preparação vocal específica e conhecimento sobre produção da voz, além de possuírem falta de acompanhamento profissional. Esses fatores podem levar ao aparecimento de queixas vocais e sintomas de desconfortos no trato vocal, como sensação de aperto ou bola na garganta, sensação de voz fraca ou forte demais para o canto e desafinação(5,9). Esses sintomas, quando frequentes e intensos, podem aumentar o risco de alterações vocais que, consequentemente, geram impacto na qualidade de vida em voz para o canto, o que pode limitar suas atividades na igreja. Assim, este estudo se propôs comparar os sintomas do trato vocal e a desvantagem vocal em homens e mulheres, uma vez que é importante considerar que existem diferenças anatômicas entre homens e mulheres (18), e correlacionar os sintomas do trato vocal com o índice de desvantagem vocal de cantores evangélicos.

A Escala de Desconforto do Trato Vocal (EDTV) permite mensurar a frequência e intensidade de sintomas de desconforto no trato vocal. Até o momento, não foram realizados estudos que investigassem os sintomas de desconforto do trato vocal utilizando a EDTV em cantores evangélicos. Diante disso, a aplicação desse protocolo na população do presente estudo é de grande importância, pois tais sintomas podem indicar esforço excessivo da musculatura laríngea e perilaríngea, devido a um despreparo e falta de conhecimento vocal, bem como demanda de voz exagerada durante o canto, o que pode acarretar, consequentemente, a sensação de desconforto vocal e laríngeo.

O questionário IDCM é composto por 30 questões que avaliam a desvantagem vocal para o canto em três subescalas(7): a incapacidade (relacionada a qualquer diminuição ou restrição na habilidade para exercer uma atividade habitual)(21), defeito (considerado qualquer perda ou anormalidade anatomofisiológica ou psicológica, temporária ou permanente) e a desvantagem (resultante da incapacidade ou do defeito), sendo caracterizada pela limitação ou restrição na realização de um papel esperado para o indivíduo, podendo causar consequências sociais, culturais e econômicas.

A autoavaliação vocal possibilita a compreensão da percepção do indivíduo em relação a aspectos específicos do seu problema de voz(22). Tais informações são essenciais para qualificar e quantificar o impacto da alteração da voz na vida do indivíduo, além de favorecer maior conscientização dos efeitos gerados pelo problema vocal(22,23).

Um estudo(3) utilizou o IDCM e investigou a desvantagem vocal durante o canto em cantores evangélicos. Os autores concluíram que cantores amadores de igreja apresentam desvantagem vocal importante e que, quanto maior é a alteração vocal, maior é essa desvantagem. Outro estudo(14) avaliou a desvantagem vocal em cantores evangélicos de igrejas tradicionais e pentecostais, por meio do protocolo IDCM, e verificou que as mulheres da igreja pentecostal apresentaram pior índice de desvantagem vocal do que mulheres da igreja tradicional. Porém, não existem pesquisas que investiguem se a presença de sintomas de desconforto no trato vocal pode impactar a qualidade de vida em voz, uma vez que tais sintomas geralmente estão relacionados ao uso vocal excessivo durante o canto e à falta de preparação da voz.

No presente estudo foi possível observar que todos os sintomas de desconforto do trato vocal, avaliados pela escala EDTV, se apresentaram mais frequentes e mais intensos para o grupo feminino do que para o grupo masculino (Tabelas 1 e 2). Outros estudos com cantores populares e de igreja também encontraram que, no gênero feminino, ocorre maior número de problemas vocais e sintomas laríngeos, como cansaço ao falar, perda da voz, sensação de “bola” na garganta e falta de ar(5,24). Esses resultados podem ser explicados pela predisposição a alterações vocais presentes no gênero feminino(17), decorrentes das características anatômicas das estruturas da laringe e da proporção glótica das pregas vocais femininas(18), mudanças hormonais e menor presença de ácido hialurônico na camada superficial da lâmina própria em relação ao gênero masculino(25), o que pode contribuir para o aparecimento de alterações laríngeas e vocais. Pode-se supor também que mulheres apresentam melhor autopercepção de seus sintomas e alterações vocais quando comparadas aos homens.

Além das contribuições encontradas nos estudos citados, outro trabalho envolvendo professores(17) observou que aqueles que apresentavam queixas vocais possuíam de sete a oito sintomas de desconforto do trato vocal, enquanto que os sem queixas, apresentaram 2,5 sintomas. Os sintomas garganta seca e irritada foram relatados como os mais frequentes e mais intensos, porém com proporções diferentes para ambos os grupos. Para o grupo com e sem queixa vocal, a frequência e intensidade do sintoma secura foi respectivamente de 3,69/3,66 e 2,23/2,30 e para o sintoma garganta irritada foi de 3,91/3,88 e 1,17/1,23. No presente estudo, foi possível observar resultados semelhantes aos dos professores sem queixas vocais, tanto em valores, como em maior ocorrência dos mesmos sintomas, o que indica que esses cantores, mesmo cantando de forma abusiva, apresentam baixos escores na EDTV (Tabelas 1 e 2). O grupo feminino apresentou maior frequência e intensidade dos sintomas garganta dolorida e secura, enquanto que os homens apresentaram maior frequência e intensidade dos sintomas garganta irritada e sensível e secura. Tais sintomas podem estar relacionados à falta de hidratação antes e durante as apresentações, associada à falta de preparo vocal, gerando abusos vocais e tensão durante o canto, o que pode contribuir para o aparecimento dos sintomas encontrados na população deste estudo.

Em relação à desvantagem vocal para o canto, as cantoras evangélicas apresentaram desvantagem vocal significativamente maior do que o grupo masculino nas três subescalas do protocolo IDCM, incapacidade, defeito e desvantagem (Tabela 3). Quanto à influência do gênero nos dados de desvantagem vocal, estudos divergem em seus achados: um estudo que investigou a desvantagem vocal em cantores amadores de coro de igreja não verificou diferença entre os gêneros(3); em contrapartida, outra análise com o índice de desvantagem vocal em cantores evangélicos(13) revelou índices maiores no grupo feminino do que no grupo masculino, corroborando os achados do presente estudo. O fato de as mulheres apresentarem maior desvantagem vocal do que os homens pode indicar a capacidade de perceberem com maior clareza qualquer restrição na habilidade de exercer o canto, seja em questões de natureza orgânica, funcional ou emocional.

No que se refere às correlações entre os dois protocolos, foi possível observar correlação de todos os sintomas de desconforto no trato vocal, tanto em frequência quanto em intensidade com todas as subescalas do protocolo IDCM (Tabelas 4 e 5); exceto para a frequência do sintoma “secura” que não se correlacionou com a subescala incapacidade (Tabela 4). Cabe ressaltar que não foi observada nenhuma correlação forte entre os sintomas de desconforto laríngeo e as desvantagens vocais. Em relação à frequência, os sintomas “queimação”, “garganta dolorida” e “garganta irritada” apresentaram valores de correlação moderada com todas as subescalas do IDCM, significando que esses sintomas são indicativos de alteração ou restrição em atividades do canto evangélico e influenciam o índice de desvantagem vocal relacionado ao canto.

Quanto à intensidade dos sintomas, foi observada correlação moderada com todas as subescalas do protocolo IDCM, principalmente quanto à subescala “defeito”. Os sintomas “bolo na garganta” e “garganta dolorida” foram os que obtiveram valores de correlação moderada com todas as subescalas do protocolo IDCM, o que indica que quanto mais intensos são esses sintomas, maior é a desvantagem vocal nas atividades de canto. Tais dados podem indicar que há um uso excessivo da musculatura laríngea e perilaríngea durante o canto na igreja, o que retrata tensão no mecanismo fonatório nesta atividade, levando ao aparecimento de sintomas de desconforto do trato vocal com consequente impacto na qualidade de vida para o canto. Provavelmente isso ocorra devido à falta de técnica e preparação vocal, juntamente com o pouco conhecimento a respeito dos cuidados vocais(5,9).

Os dados do presente estudo revelam que, quanto mais frequentes e intensos os sintomas de desconforto do trato vocal, pior a desvantagem vocal para o canto. Não existem estudos que correlacionaram índices de desvantagem vocal no canto moderno com sintomas de desconforto no trato vocal ou qualquer outro aspecto em cantores evangélicos. Porém, um estudo(26) que correlacionou os dados do protocolo EDTV com o protocolo qualidade de vida em voz (QVV) em indivíduos com alterações cervicais encontrou correlação negativa entre os protocolos, indicando que, quanto maior a frequência e a intensidade dos sintomas, pior é a qualidade de vida em voz, corroborando os resultados deste trabalho.

Os achados deste estudo permitiram verificar que existem diferenças quanto à autopercepção de cantores evangélicos do gênero masculino e feminino. Além disso, os resultados mostraram que os sintomas de desconforto no trato vocal impactam a qualidade de vida de cantores evangélicos. Estes dados permitem ressaltar que cantores evangélicos necessitam de um trabalho interdisciplinar entre fonoaudiólogos e preparadores vocais a fim de aprimorar e desenvolver técnicas de canto, bem como os devidos cuidados com a voz cantada, já que muitos cantores evangélicos são amadores.

Uma das limitações do presente estudo é que não é possível saber, diante dos resultados, se os cantores que aceitaram participar apresentavam alguma dificuldade que os fizesse se interessar na participação deste estudo, uma vez que avaliações vocais e laringológicas não foram consideradas na coleta dos dados. Outra limitação a ser considerada é a faixa etária da casuística: pode ser considerada muito extensa, envolvendo alterações vocais e auditivas decorrentes do envelhecimento, mas, inicialmente, o objetivo era conhecer a realidade brasileira de cantores de igrejas evangélicas. Pesquisas futuras são necessárias para aprimorar os conhecimentos em torno desta população para que a prevenção e os cuidados vocais sejam direcionados de acordo com a autopercepção do cantor evangélico e de acordo com diferentes faixas etárias, uma vez que os idosos também constituem uma população de cantores cada vez mais numerosa nas igrejas.

CONCLUSÃO

Cantores evangélicos do gênero feminino apresentam maior frequência e intensidade de sintomas de desconforto do trato vocal, bem como maior desvantagem vocal para o canto. Além disso, quanto maior a frequência e intensidade dos sintomas de desconforto no trato vocal, maior é a desvantagem vocal para o canto evangélico.

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