versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 supl.2 Rio de Janeiro 2016 Epub 03-Nov-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00037415
As diferentes configurações em que se estruturam os sistemas de atenção à saúde no espaço nacional afetam as modalidades estatais de apoio à inovação na indústria farmacêutica?
Essa é a indagação fundamental deste artigo, que faz um apanhado ligeiro, de caráter exploratório, dessa relação nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Japão, China, Índia e Brasil. Os três primeiros estabeleceram as matrizes dos tipos liberal, universal e corporativo dos sistemas nacionais de atenção à saúde. Países desenvolvidos, com sistemas nacionais de inovação 1), (2 avançados 3, têm, também, indústrias farmacêuticas que se destacam entre as mais importantes na inovação no setor. O Japão, com um sistema de atenção à saúde de perfil corporativo, ingressou no grupo dos países desenvolvidos a partir da bem-sucedida estratégia de equiparação (catching up) econômica e tecnológica, embora o setor farmacêutico, ainda que expressivo, não apresente o desempenho inovador de outros segmentos da indústria do país, ficando à distância dos indicadores setoriais verificados nos Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. A China, a Índia e o Brasil dispõem de sistemas de atenção à saúde de perfis e consolidação diversos. Apontados como países em desenvolvimento inovadores, na área da saúde 4, adotaram, contudo, diferentes estratégias de equiparação e aprendizado tecnológicos 5, para o conjunto da economia e o setor farmacêutico, com peso distinto para o investimento externo, o licenciamento para o uso de tecnologias, a aquisição de pacotes tecnológicos completos (sistema de aprendizado passivo), em contraste com a prevalência do investimento realizado por empresas nacionais, da engenharia reversa, do estímulo à inovação endógena (sistema de aprendizado ativo).
Uma indústria farmacêutica inovadora afeta positivamente as condições de saúde das populações que têm acesso aos seus produtos 6), (7. Baseada na ciência 8, ela vale-se de pesquisas impulsionadas por instituições públicas e/ou acadêmicas 9), (10, por definição bens públicos, porquanto inclusivos e indivisíveis. Por outro lado, o impulso para a inovação está relacionado à sua apropriação pelas empresas 11 (remetendo ao intricado debate sobre o direito de patente, intensificado após a edição do Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights ‒ TRIPS, em 1995) 12 e, em diferentes setores, à redução de incertezas quanto à possibilidade de ganhos futuros 13), (14. Por isso, nos países inovadores, o Estado atua na criação de espaços de cooperação entre empresas e instituições do sistema de ciência e tecnologia, participa do financiamento da pesquisa e sustenta a demanda por meio de compras públicas 15), (16. Neste artigo, sustenta-se que o papel desempenhado pela área governamental da saúde na condução de tais políticas ‒ e a importância relativa delas na estratégia de inovação dos diferentes casos ‒ está associado à natureza dos sistemas nacionais de atenção à saúde. Enfim, se políticas de saúde têm crescentemente cumprido papel importante na política industrial e de inovação dirigida aos setores que fornecem insumos para a área de saúde 17, isto tem se verificado de forma diversa, conforme os sistemas de atenção à saúde presentes no espaço nacional.
O sistema de inovação em saúde ultrapassa a dimensão setorial, envolvendo agências reguladoras, de ciência e tecnologia, serviços de saúde e segmentos produtivos distintos, com firmas operando segundo lógicas específicas (medicamentos e equipamentos médicos), em interação dinâmica com os profissionais da área de saúde (em especial os médicos), os hospitais e o sistema nacional de atenção à saúde 15), (18. Adicionalmente, assiste-se à emergência e à expectativa de fortalecimento de um sistema global de inovação em saúde 19, com o propósito de enfrentar falhas da ciência, do mercado e da saúde pública em países pobres, por meio da afirmação de redes e parcerias de desenvolvimento produtivo que ultrapassam o espaço nacional. Esse cenário, contudo, não dissolve o papel do Estado Nacional que, em países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento inovadores, subsiste como agência decisiva na formulação e condução de políticas de saúde e de inovação. Além disso, o espaço nacional é, ainda, central na operação do complexo industrial da saúde, envolvendo as relações "de compra e venda de bens e serviços", de "conhecimentos e tecnologias", num "contexto político e institucional bastante particular", que estabelece "o mercado em saúde, como construção política e institucional" 20) (p. 15-6).
O mercado em saúde, como construção política e institucional indicado antes refere-se, em boa medida, ao ambiente delimitado pelo peso e abrangência dos sistemas nacionais de atenção à saúde. Na próxima seção, abordamos como afetam as modalidades de participação do Estado no apoio à inovação no setor farmacêutico. Nas Considerações Finais sugerimos uma reflexão sobre as possibilidades, no contexto brasileiro, de uma interação entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a indústria farmacêutica nacional que favoreça tanto a afirmação da dimensão pública do primeiro e o reforço da disposição de inovar da segunda.
São muito diversificadas as tipologias sobre os sistemas de atenção à saúde 21. Levando em conta diferentes formulações, eles são aqui distinguidos conforme a elegibilidade/habilitação dos usuários e a oferta/provimento dos serviços 15), (22), (23. Assim, com base nos padrões pioneiramente definidos em países centrais, são paradigmas os sistemas liberais em que prevalece o acesso por intermédio do mercado a serviços predominantemente privados, com testes de meio utilizados para habilitação ao ingresso em programas públicos (Estados Unidos); sistemas universais, custeados por impostos gerais, com habilitação associada fundamentalmente aos direitos da cidadania, com serviços providos pelo Estado (Reino Unido, Escandinávia), ou por prestadores privados (Canadá); sistemas corporativos, custeados por contribuições patronais e de trabalhadores, prevalecendo a lógica do seguro social, com a habilitação definida por critérios preponderantemente ocupacionais e provimento de serviços diversificado, privado e público. As Tabelas 1 e 2 indicam algumas características dos sistemas de saúde dos países focalizados neste artigo, além de dados socioeconômicos que, em seu conjunto, determinam as condições gerais de saúde de suas populações, registradas parcialmente em alguns indicadores.
Tabela 2: Indicadores de saúde e condições de vida.
IDH: Índice de Desenvolvimento Humano.
* Dados referntes ao ano de 2014, obtidos em World Bank (World development indicators data base. http://data.worldbank.org/data-catalog/world-development-indicators/wdi-2014, acessado em 18/Dez/2014).
** Dados obtidos no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento 92.
A indústria farmacêutica não é levada em consideração em estudos sobre a implantação dos modernos sistemas nacionais de atenção à saúde, ao contrário de médicos, empresários, trabalhadores e o Estado 24), (25), (26. A natureza dos sistemas de saúde não foi um obstáculo ao seu desenvolvimento, expressivo em países com sistemas liberais, universais e corporativos. Em diferentes configurações a área de saúde do Estado buscou regular a produção de medicamentos fixando padrões relativos à pesquisa, produção, qualidade, comercialização e acesso. Diversos serão, contudo, a estrutura do mercado nacional de produtos farmacêuticos e os arranjos constituídos para o apoio à produção e inovação no setor.
Nos Estados Unidos, a presença da saúde como tema central da agenda pública ocorre a partir da Segunda Guerra Mundial, simultaneamente à afirmação de grandes corporações farmacêuticas, recrutadas pelo Estado para a produção de medicamentos necessários ao esforço de guerra 7), (9), (27. Nas décadas seguintes, o investimento público na pesquisa em saúde, por meio do National Institutes of Health (NIH), vinculado ao U.S. Department of Health and Human Services (HHS), liderou os dispêndios estatais em pesquisa nos Estados Unidos, sendo decisivo para a maioria das inovações desenvolvidas pelas empresas 10), (28. Mais recentemente, foram acentuados, também, os programas envolvendo agências do HHS, universidades e empresas, como a Critical Path Initiative, da U.S. Food and Drug Administration (FDA), ou o NIH Roadmap for Medical Research, destacadamente a Accelerating Medicines Partnership e o Clinical and Translational Science Award (CTSA) Program 29), (30), (31), (32.
Os Estados Unidos não regulam os preços de medicamentos, cujo mercado é dinamizado fundamentalmente pela demanda privada. O Medicaid, dirigido aos pobres, e o Medicare, aos idosos, em 2012 cobriam menos de 30% da população estadunidense 33. O financiamento público, por intermédio de agências do HHS, e as parcerias público-privadas são os principais instrumentos de estímulo à inovação. As compras públicas só adquirem importância para tal propósito quando associadas ao combate a pandemias e/ou conectadas a propósitos militares, a exemplo dos contratos firmados pela Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA), vinculada ao Office of the Assistant Secretary for Preparedness and Response, do HHS; ou, ainda, pela Defense Advanced Research Programs Agency (DARPA), do Department of Defense 34), (35), (36.
No Reino Unido, as compras públicas cumprem papel decisivo no estímulo à inovação. Apenas 12% da população são cobertos por seguros privados 37. O mercado doméstico para os segmentos produtivos do complexo industrial da saúde é, pois, quase um monopsônio do National Health System (NHS). Tal como nos Estados Unidos, a Segunda Guerra Mundial impulsionou a indústria farmacêutica 38, mas foi o Pharmaceutical Price Regulation Scheme (PPRS), instituído em 1957, que assegurou, conforme a Association of the British Pharmaceutical Industry (ABPI), um "ambiente comercial favorável" à inovação, garantindo margens compensadoras para a indústria, embora mirasse, simultaneamente, custos razoáveis para o NHS 39. Por seu turno, também no financiamento à pesquisa o NHS cumpre papel destacado, valendo-se do National Innovation Centre (NIC) 40, além do National Institute for Health Research (NIHR) 41, criado em 2006, dentro da estratégia Best Research for Best Health, que intentava afirmar o "NHS como um centro de pesquisa internacionalmente reconhecido" 42, fortalecendo a cultura pró-pesquisa e a pesquisa clínica, o que realça o papel do hospital como pedra angular do sistema de inovação em saúde britânico 43.
As empresas farmacêuticas britânicas têm pressionado para a flexibilização das prescrições médicas no NHS, de modo a alargar a absorção doméstica da produção da indústria, que supera largamente a demanda interna. Persistem, também, esforços para acentuar a parceria com o NHS na pesquisa, vista como uma vantagem comparativa na competição internacional. Desde a criação da Pharmaceutical Industry Task Force, em 1999, tais perspectivas aparecem em tratativas com o governo britânico, particularmente no Ministerial Industry Strategy Group (MISG), dirigido pelo Department of Health. Delas resultou a Long Term Leadership Strategy, lançada em 2005, desdobrando-se em iniciativas como o MISG Clinical Research Workgroup, o Early Access Working Group, a Vision for the UK-based Bioscience Industry; medidas fiscais de apoio à indústria, o Innovation Pass (para incorporação precoce de novos medicamentos no NHS) e o Office for Life Sciences. As empresas têm reivindicado, também, a utilização do Connecting for Health, que reúne informações sobre os procedimentos terapêuticos utilizados junto aos pacientes do NHS, buscando uma vantagem adicional para a indústria britânica na competição internacional 16.
Na Alemanha, o Statutory Health Insurance (SHI), a peça mais importante do sistema de saúde, reúne, hoje, 131 fundos dirigidos a empregados e dependentes, cobrindo cerca de 85% da população. O restante é coberto pelo Private Health Insurance (PHI) e por esquemas especiais. O atendimento de longa duração é garantido pelo Long Term Care Insurance (LTCI). Dos leitos hospitalares, 48% estão em hospitais públicos, a maioria municipais, os demais em unidades sem fins lucrativos (34%) e mercantis (18%). Os estados controlam os hospitais universitários 44), (45. Com tal fragmentação, o sistema de saúde, conquanto decisivo na demanda de medicamentos não tem papel significativo na definição e condução das políticas de apoio à inovação, concentradas no Ministério Federal da Educação e Pesquisa (Bundesministerium für Bildung und Forschung - BMBF). As compras de medicamentos pelos fundos, descentralizadas, não seguem uma estratégia global de apoio à inovação. Desde 2010 foram limitadas as aquisições acima dos preços de referência (o menor de formulações equivalentes), admitindo-se negociações para os que comprovem efetivo ganho terapêutico, fixando-se preços mais elevados por dois anos 46), (47.
A indústria alemã ocupou a liderança na inovação, produção e no mercado mundial de medicamentos de meados do século XIX à Segunda Guerra Mundial. Naquele momento foi superada pelos Estados Unidos, mantendo-se, desde então, entre as cinco mais importantes no cenário internacional 7. Diversas universidades de ponta e institutos de pesquisa participam de projetos de colaboração com o setor farmacêutico 48), (49. Na política de inovação para o setor têm proeminência projetos do BMBF, como o The Pharmaceuticals Initiative for Germany 50, lançado em 2007, e o Health Research Framework Programme 51. Outros programas são desdobramentos de iniciativas globais, tal como a High Tech Strategy da União Europeia, a exemplo do BioPharma Competition e do Leading Edge Cluster Competition 52.
O caso alemão sugere que sistemas corporativos, por sua fragmentação, reduzem a capacidade de coordenação da área governamental ligada à saúde para a formulação e condução das políticas de inovação, efetivadas sob relativa desconexão entre a operação do sistema de saúde e a indústria. O sistema de saúde britânico, universal com provimento público, dentre os países desenvolvidos considerados aqui, é o menos dispendioso (levando-se em conta os gastos totais e públicos per capita em saúde), mas dispõe de impacto positivo sobre as condições de saúde da população (Tabelas 1 e 2). Simultaneamente, cumpre papel importante no estímulo à inovação (apesar de dilemas associados à gestão da ampla rede de serviços), conectando-se à indústria através das compras públicas e do apoio direto à pesquisa. O provimento público dos serviços torna os hospitais elos importantes nas interações entre as instituições de ciência e tecnologia e a indústria, por intermédio da pesquisa básica e aplicada, da realização de testes clínicos e da reunião de informações sobre a efetividade terapêutica dos medicamentos e equipamentos médicos. Excluídas as unidades universitárias, é menos provável que os hospitais, predominantemente privados, cumpram tal papel nos sistemas liberais. Nesses, mais que as compras governamentais, o financiamento público à pesquisa opera como principal mecanismo de conexão entre a indústria e o sistema de saúde, dirigido por organismos de certa forma desembaraçados da gestão da rede de serviços. Em todos os casos são relevantes as parcerias público-privadas ou parcerias de desenvolvimento produtivo para a pesquisa.
O curso recente da experiência japonesa corrobora o que foi afirmado anteriormente. O sistema de saúde japonês é estruturado em dois arranjos, de base ocupacional e regional, o Health Insurance e o National Health Insurance, reunindo mais de 3.600 fundos, com 55% da rede hospitalar sob controle privado, a maior parte não lucrativa 53), (54. Sua criação, em 1961, reforçou o padrão de crescimento da indústria farmacêutica no pós-Segunda Guerra Mundial, induzida pela política de saúde, sob a direção do Ministery of Health and Welfare (MHW), dada a demanda derivada da ampliação do atendimento, a legislação para aprovação de novas drogas (flexível para empresas nacionais e rígida para as estrangeiras), a comercialização de medicamentos pelos médicos (acentuando prescrições e vendas), a política de preços e reembolso (compensadora para a indústria e os médicos) 55. A política industrial complementava tal arranjo com a proteção ao mercado interno e legislação patentária permissiva. Assim, exceto na produção de antibióticos, com alguma inclinação para atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), consolidou-se uma indústria imitativa, avessa às exportações e à engenharia reversa: um corpo estranho na política industrial japonesa, noutros setores conduzida pelo Ministry of Industry, Trade and Innovation (MITI).
As mudanças nesse cenário, entre 1967 e 1975, derivaram de pressões da área econômica do governo para a redução de custos no sistema de saúde; de modificações na legislação patentária e no tratamento ao capital estrangeiro no setor farmacêutico, vinculados ao envolvimento crescente do Japão no concerto das nações capitalistas desenvolvidas; do impacto da revolução biomolecular na agenda governamental de apoio à pesquisa, por meio do MITI 55. Na década de 1990, o controle de preços e a produção de genéricos induziram firmas japonesas à intensificação das exportações e à diversificação da produção para o mercado interno, novamente com a colaboração dos médicos, que preferiam prescrever medicamentos patenteados, mais caros 56. Ao contrário de outras atividades, a atração de capitais externos e a formação de joint ventures firmaram-se na política industrial setorial, objetivando a transferência de tecnologia para compensar o déficit em P&D, legado pela trajetória anterior.
O MHW preserva algum protagonismo na formulação de políticas para o setor, como evidenciam a Pharmaceutical Industry Vision (2002-2007), a New Vision for the Pharmaceutical Industry (2007-2011) e a Pharmaceutical Affair Law (PAL) de 2005, de conteúdo prospectivo e regulatório 57), (58. Todavia, o Ministry of Economy, Trade and Industry (METI) (nova denominação do MITI) tem assumido papel cada vez mais destacado, valendo-se da Biotechnology Strategy Guidelines (2002) 59, do National Bioresource Project (NBRP) (2002-2010) 60, da Industrial Cluster Plan Policy (2001-2011) 61. Observa-se, pois, que a formulação e condução de políticas orientadas para a inovação tende a dissociar-se cada vez mais da área governamental da saúde no Japão, historicamente vinculada a uma indústria avessa à inovação. Ainda assim, a indústria farmacêutica japonesa, ao contrário de outros setores, não se destaca na atividade inovadora, na cena internacional, embora com a segunda posição no mercado de medicamentos do mundo, desde a década de 1960, e na produção farmacêutica global, fundamentalmente dirigida para o mercado doméstico. Nos gastos em P&D, entre as principais regiões produtoras, o Japão permanece bastante atrás dos Estados Unidos e da Europa 49), (62.
Abordamos até aqui as relações entre sistemas de saúde e indústria farmacêutica em países desenvolvidos, dotados de sistemas de inovação maduros. Consideremos agora tais relações na China, Índia e Brasil.
As reformas econômicas inauguradas em 1978 na China dissolveram o financiamento centralizado ao sistema de saúde, nucleado em unidades produtivas, localidades e comunas, ampliando o custeio individual de medicamentos e serviços. De 1980 ao final do século XX, a maioria dos chineses ficou sem qualquer seguro de saúde 63. A indústria farmacêutica, regulada exclusivamente pelo mercado, conheceu grande expansão e fragmentação, com reduzido esforço inovador, induzida pela venda de medicamentos por médicos e hospitais 64. Entre 1998 e 2003, firmou-se, contudo, uma nova orientação no Estado chinês, buscando, entre outros propósitos, ampliar a proteção social e a capacidade de inovação endógena da economia, pouco efetiva com a atração de multinacionais, ainda que valendo-se de joint ventures, central nas opções dos anos 1990 65), (66. Na saúde foram instituídos, entre 1998 e 2007, o Programa de Seguro de Saúde Básico para Empregados Urbanos (UEBMI), a Nova Cooperativa Rural de Seguro Médico (NCRMS), o Programa de Seguro de Saúde Básico para Residentes Urbanos (URBMI). Em 2009, foi anunciada a Reforma da Saúde, mirando a plena universalização em 2020. Em 2011, praticamente toda a população estava inscrita num seguro de saúde, embora de alcance limitado 63), (67. Em relação à indústria farmacêutica, a nova orientação resultaria em medidas regulatórias, de política industrial e de inovação. Dentre as primeiras destacam-se medidas dirigidas à produção, qualidade, comercialização, prescrição e preços de medicamentos, à fabricação de genéricos, além da reforma da legislação patentária 68.
Em meio a outras ações de política industrial e de inovação, na política de inovação endógena, destacam-se duas grandes iniciativas: o Plano Nacional de Longo Prazo para Ciência e Tecnologia (2006-2020) e o programa Indústrias Estratégicas Emergentes (2009) 65), (69. O primeiro estabelece três megaprojetos relacionados à saúde, mirando a criação de novas variedades de organismos geneticamente modificados, a inovação e desenvolvimento farmacêutico, além do tratamento da AIDS, hepatite e outras doenças graves. O segundo aponta a biotecnologia como uma das indústrias estratégicas emergentes. Consórcios de pesquisa, sob liderança de ministérios ou grupos interministeriais, destacam-se na operação da política, envolvendo universidades, institutos e empresas, sem exclusão das multinacionais, desde que desenvolvendo inovação registrada na China e marcas chinesas 70. Relevantes são, ainda, aportes orçamentários, investimentos dos bancos estatais, standards, medidas tributárias e fiscais, compras públicas, além de catálogos definindo as empresas beneficiadas 71.
O impacto sobre a indústria farmacêutica parece expressivo. Ela figura entre as três principais atividades que geram o maior número de patentes depositadas na China no século em curso. Entre 2000 e 2009, o país passou da sexta posição no depósito de patentes farmacêuticas para a segunda posição, atrás apenas dos Estados Unidos 72. As multinacionais têm participado das atividades de P&D, principalmente testes clínicos, atraídas pela infraestrutura de pesquisa, pessoal capacitado e pelas organizações de pesquisa por contrato. Mas têm papel decrescente no depósito de patentes farmacêuticas na China: em 2007 respondiam por 30,1%, em 2010 por apenas 17,38% 72.
Entre 1978 e 2003, os elos entre o sistema de saúde e a indústria farmacêutica na China estiveram associados à demanda induzida por prescrições excessivas, num mercado interno protegido e com regulação precária, estimulando uma produção fragmentada e rudimentar. Esse quadro está longe de ter sido alterado. Todavia, a presença de empresas pilares e estratégicas, em projetos de longo prazo envolvendo diferentes atores, tem acentuado o peso da inovação na indústria chinesa, inclusive a farmacêutica 65. A área da saúde não predomina na condução da política industrial para o setor, mas participa com destaque, liderando grupos interministeriais que conduzem projetos estratégicos a elas ligados, como no caso do plano de 2006.
Na Índia, é grande o número de iniciativas governamentais dirigidas à saúde, mas sua efetividade é reduzida. No país operam cinco esquemas públicos de seguro, dirigidos a servidores do Estado, idosos e pobres (Central Government Health Scheme - GHS, Employee State Insurance Scheme - ESIS, General Insurance Corporation - GIC, Life Insurance Company - LIC, Community Health Insurance - CHI). Além disso, atuam no mercado outros planos de saúde, privados e públicos 73. No século em curso foram criadas a Missão Nacional de Saúde Rural, a Missão Nacional de Saúde Urbana, o programa Rashtriya Swasthya Bima Yojana (RSBY), para atendimento hospitalar de famílias abaixo da linha de pobreza 74. O 12º Plano Quinquenal (2012-2017) projetou, ainda, a implementação de um sistema de Cobertura Universal de Saúde até 2017 75. Todavia, os indicadores de saúde são extremamente negativos e a população coberta é inexpressiva (Tabelas 1 e 2). Em 2005, estimava-se que apenas de 3% a 5% da população abrigavam-se em algum seguro de saúde 76. Entre 2009 e 2011, quase 80% das despesas de saúde eram gastos out-of-pocket e 2/3 em medicamentos 77), (78. Assim, os elos entre o sistema público de saúde e a indústria tendem a ser residuais, evidenciando-se apenas nas compras públicas eventuais de medicamentos e vacinas.
Na década de 1970, a produção de medicamentos na Índia passou ao domínio de empresas nacionais, expandindo-se até 1995, impulsionada pela demanda doméstica, com precária regulação e preços baixos 68), (79. A partir dali, como país low income, a Índia valeu-se das brechas do TRIPS para elevar as vendas externas da indústria. Desde 2005, adaptou-se plenamente ao TRIPS, reviu sua legislação patentária e tem buscado estabelecer normas que se aproximem de padrões internacionais. O setor foi aberto ao capital estrangeiro que acelerou seu ingresso no país por meio de fusões, aquisições e joint ventures, mirando os custos reduzidos do trabalho, a rede de ensino e a pesquisa herdada da trajetória pós-Independência, e as organizações de pesquisa por contrato indianas, que detêm participação expressiva neste mercado. A produção de medicamentos biológicos é significativa, alicerçada em políticas existentes desde a década de 1980 68.
Atualmente, a Índia é um dos maiores produtores mundiais de medicamentos, com destaque para genéricos e princípios ativos 68. A indústria farmacêutica, contudo, assenta-se numa dualidade que atravessa toda a economia do país 65), (80. Dirigindo-se ao mercado interno, segmentado e pouco dinâmico, grandes empresas convivem com pequenas e médias, concentradas na produção de genéricos e medicamentos tradicionais, mas orientam-se preferencialmente para as exportações, objeto privilegiado das parcerias com institutos e universidades e das políticas públicas 68. Entre essas, registre-se, do Departamento de Ciência e Tecnologia, o Programa de Pesquisa de Drogas e Fármacos, vinculado ao Fundo de Suporte à Pesquisa e Desenvolvimento Farmacêutico, dirigido pelo Conselho de Promoção de Desenvolvimento de Drogas 81. Para o segmento de biológicos, destaca-se a Estratégia Nacional de Desenvolvimento da Biotecnologia, de 2007. Além do Departamento de Ciência e Tecnologia, vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, o Departamento de Produtos Farmacêuticos, do Ministério de Produtos Químicos e Fertilizantes, aparece na condução de políticas para o setor, abrigando as unidades do National Institute of Pharmaceutical Education and Research (NIPER), as empresas farmacêuticas estatais e a National Pharmaceuticals Pricing Authority (NPPA) 68.
No Brasil, a criação do SUS em 1988 instituiu um sistema público universal, dependente da rede de serviços predominantemente privada. Por seu turno, os recursos públicos para saúde jamais alcançaram patamares comuns a outros sistemas de habilitação universal, favorecendo a afirmação de planos privados, cuja atuação foi franqueada na Constituição brasileira na categoria de saúde suplementar. Resultou daí um sistema segmentado, condição consagrada institucionalmente em 1998, com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, ao lado do Conselho Nacional de Saúde, até então a única instância superior de regulação do sistema 16), (82), (83), (84. Não obstante, a presença do SUS, além de impactar positivamente as condições de saúde da população brasileira, foi decisiva para o desempenho recente da indústria farmacêutica nacional. Até a década de 1990, a indústria brasileira, num mercado interno protegido e internacionalizado, desenvolveu-se num padrão imitativo, avessa à inovação e dependente da importação de princípios ativos 85. A adesão ao TRIPS em 1996 extinguiu a possibilidade de imitação sem custos ‒ ameaçando a própria existência de empresas farmacêuticas nacionais ‒, acarretando enorme pressão sobre o SUS e acentuando o desequilíbrio do balanço de pagamentos setorial. Tal cenário induziu o desencadeamento de políticas que permitiram a reação do setor, o alargamento da presença das empresas nacionais no mercado doméstico e a elevação dos índices de investimento em inovação, embora sem reverter o desequilíbrio no balanço de pagamentos e a dependência da importação de princípios ativos 86), (87), (88. Destacam-se a legislação dos genéricos, de 1999; a criação do PROFARMA, no âmbito da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), de 2004; o programa Mais Saúde, associada à Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), de 2008; as parcerias de desenvolvimento produtivo, intensificadas a partir do programa Brasil Maior, de 2011 16), (17), (70.Tais políticas mobilizam instrumentos variados, como o financiamento de bancos e agências públicas, isenções fiscais e compras governamentais. Essas últimas, desde 2010, podem ser realizadas com a utilização de uma margem de preferência para favorecer empresas nacionais e estimular a inovação. Do ponto de vista institucional, desde a PDP, a gestão da política industrial para o complexo industrial da saúde passou às mãos do Ministério da Saúde, por intermédio do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), que participa das definições sobre compras públicas, parcerias de desenvolvimento produtivo, mas tem pouca influência sobre os fundos dirigidos à pesquisa, radicados noutras esferas de governo.
A expansão da indústria farmacêutica na China não está vinculada fundamentalmente à operação do sistema de saúde, que se encontra em processo de rápida consolidação. Ademais, as autoridades sanitárias participam da gestão de programas dirigidos ao setor, e as compras públicas ganham crescente relevo na política industrial. É forte a orientação para a exportação de princípios ativos, tal como na Índia, que se destaca também nas exportações de medicamentos genéricos. Na China, a política de inovação endógena objetiva fazer o país transitar da inovação secundária à inovação primária, acentuando sua importância nas cadeias internacionais de valor, fortalecendo empresas e marcas nacionais, dirigindo-se a diversos setores de atividade, o que favorece a indústria farmacêutica. São consideráveis os impactos sobre os indicadores de inovação em seu conjunto (Tabela 3). Na Índia, o fortalecimento da indústria farmacêutica replica as características do sistema de ciência e tecnologia e dos setores de atividade a ele conectados, insulados do conjunto da população e da economia, valendo-se dos elos de uma parcela reduzida da população com os círculos acadêmicos e econômicos de língua inglesa e do baixo custo do trabalho, ainda que qualificado. Em seu conjunto, a política industrial indiana tem destacado a importância da melhoria do ambiente de negócios, com políticas mais ativas dirigidas a poucos setores 65. É relevante, também, a atração de capitais externos. Os impactos sobre os indicadores gerais de inovação são acanhados, embora expressivo o crescimento do registro e obtenção de patentes (referentes, fundamentalmente, a inovações incrementais) nos setores farmacêutico e de informática, com peso significativo de não residentes 89. Até 2010, nenhuma nova entidade química desenvolvida pelas empresas indianas havia sido aprovada para comercialização em qualquer país 90. No Brasil, a expansão recente da indústria farmacêutica e seu despertar para as atividades de inovação não permitem ainda afirmar que será consolidada uma ruptura com a dependência que sempre caracterizou o setor, expressão de um sistema passivo de aprendizado para a inovação. A política industrial brasileira recente não alterou de forma significativa os indicadores gerais de inovação no Brasil (Tabela 3). Na indústria farmacêutica e na área de saúde como um todo, todavia, o crescimento do investimento em P&D tem sido expressivo 91.
A consolidação e aprofundamento da articulação mutuamente proveitosa entre o sistema de saúde brasileiro e a indústria brasileira inovadora não depende apenas da preservação das políticas em curso nos últimos anos. Para tais propósitos, é crucial a definição de arranjos institucionais que acentuem a articulação entre a área governamental da saúde, a indústria e os organismos públicos de apoio à pesquisa, para definição e condução da agenda nacional de pesquisa em saúde, além, principalmente, do adensamento do sistema de saúde universal brasileiro. No Reino Unido e em países escandinavos, os hospitais têm sido apontados como peças-chave na operação de seus sistemas de inovação em saúde 18), (43. No Brasil, a pequena presença do provimento público no sistema de saúde é um fator limitativo à plena exploração das virtudes para a atividade de inovação que sua interação com a indústria favorece.
A presença massacrante dos planos de saúde, dos hospitais privados, da medicina liberal, de laboratórios e farmácias comerciais na paisagem brasileira também dificulta a operação virtuosa indicada anteriormente, especialmente por fortalecer os atores e disposições contrárias à ampliação do sistema público. Todavia, é importante lembrar que tal paisagem, com as variações existentes na década de 1980, não foi suficiente para impedir a criação do SUS. Na época, o movimento sanitarista sequer pôde valer-se de uma ação contundente de atores fundamentais, como os trabalhadores, apesar das proclamações oficiais de centrais sindicais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) em favor do SUS, uma vez que já estavam enredados em arranjos privados de atenção à saúde, nos planos empresariais e das próprias entidades sindicais. O êxito dos sanitaristas resultou de uma conjuntura em que minorias aguerridas diante de adversários dispersos podem lograr sucesso, em especial quando sua vitória não significa a derrota de ninguém, no caso em tela pela preservação do setor privado como saúde suplementar. Ainda assim, o significado histórico da criação do SUS é tremendo. De fato, além da melhora expressiva nos indicadores de saúde, ela cria um ambiente que permite vislumbrar um cenário de crescente ampliação das oportunidades à interação virtuosa entre sistema de saúde e desenvolvimento inovador.
Se na década de 1980 o movimento sanitarista obteve êxito por sua atuação específica numa conjuntura favorável, o cenário aberto pelas políticas industriais dirigidas ao complexo industrial da saúde nos últimos anos cria novas oportunidades, agora com a possibilidade de construção de uma inédita coalizão em favor da saúde e do desenvolvimento. Para os que defendem o sistema universal de saúde e a indústria nacional, a ampliação do provimento público é algo a ser conquistado, em benefício de todos. É certo que não reescreveremos nossa trajetória passada e não faz sentido imaginar que o setor empresarial privado na saúde vá desaparecer. Não é disso que se trata. Importa é reduzir a dependência do SUS em relação aos hospitais privados, aumentando o provimento público, de modo a assegurar, também, uma infraestrutura importante para o desenvolvimento da colaboração com a indústria para a atividade inovadora. Sem isso, as possibilidades recentemente abertas podem dispor de fôlego curto. Se o Reino Unido é uma miragem inalcançável, a Índia pode sempre nos assombrar, sem a consolidação de um forte setor empresarial nacional nos segmentos produtivos do complexo industrial da saúde que tenha na colaboração com o sistema público um elemento central de suas estratégias de atuação. Fácil não é. É indispensável tentar.