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Situações de violência na escola e a voz do professor

Situações de violência na escola e a voz do professor

Autores:

Rodrigo Dornelas,
Thaynara Alves dos Santos,
Daniela Sena de Oliveira,
Roxane de Alencar Irineu,
Aline Brito,
Kelly Silva

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.29 no.4 São Paulo 2017 Epub 10-Ago-2017

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172017053

INTRODUÇÃO

A voz é o resultado da associação de aspectos biológicos, psíquicos e sociais, advinda das experiências subjetivas e singulares de cada indivíduo(1). Portanto, entende-se que é importante investigar a relação entre as condições de produção vocal relacionada aos fatores que podem influenciar este processo, por exemplo, as situações de violência nas escolas.

A violência social incide não só nos espaços privados, mas também naqueles de domínio público e seus efeitos influenciam o funcionamento dos contextos institucionais, dentre eles, a escola(2). O espaço escolar pode ser compreendido como um ambiente de formação de indivíduos na perspectiva social, porém, são reproduzidos conceitos, preconceitos e valores de uma cultura dominante(3). Assim, neste percurso são gerados os casos de violência no interior ou entorno da escola, realidade comum nas distintas regiões brasileiras, amplamente divulgados pela mídia ao longo dos últimos anos.

Neste contexto, todos os funcionários do Ensino Fundamental e Médio, sem exceção, já se envolveram em algum momento em episódio de violência, seja como vítimas diretas, ouvintes ou testemunhas das situações vivenciadas por outros(4).

Dessa forma, o professor tem se tornado alvo de violências diversas, de forma direta ou indireta e, segundo estudo(5), há uma associação entre as situações de violência e o distúrbio vocal em professores do ensino fundamental e médio.

As alterações vocais decorrentes de fatores diversos como o uso prolongado da voz e as experiências negativas e violentas podem acarretar dificuldades em exercer a função e alcançar os objetivos propostos para a adequada formação de alunos, o que, consequentemente, compromete a sua função como educador. Os professores ainda relatam que a perda da voz influencia negativamente as relações familiares, a expressão das emoções e as atividades de lazer(6).

Diante deste contexto, este trabalho se propõe a refletir sobre as conexões entre as diversas formas de violência no contexto escolar e a saúde vocal do professor, assim, tem como objetivo relacionar a autorreferência de distúrbio vocal com hábitos que influenciam a produção da voz e com as principais situações de violência vivenciadas por professores.

MÉTODO

Estudo de natureza quantitativa com caráter transversal, realizado na cidade de Lagarto, interior de Sergipe, com 41 professores da Secretaria de Educação do Ensino Fundamental da Zona Rural e Urbana.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe, Campus Professor Antonio Garcia Filho com o nº CAAE: 31156214.2.0000.5546.

Como critérios de inclusão, foram convidados a participar todos os professores do Ensino Fundamental das escolas municipais, sem queixa vocal ou diagnóstico de alterações laríngeas. Não fizeram parte do estudo professores em licença, afastados ou readaptados.

Para a coleta de dados, foram utilizados dois instrumentos: Condição de Produção Vocal – Professor (CPV-P), que tem como objetivo analisar as condições de voz do professor em sua atividade laboral e o Índice de Triagem para Distúrbio de Voz - ITDV que busca conhecer as principais queixas vocais dos professores, segundo sua percepção.

O CPV-P(7) apresenta 84 questões, sendo a maioria com respostas conceituadas em “sempre”, “às vezes”, “raramente”, “nunca” ou “não sei”, organizado nas seguintes variáveis: identificação do entrevistado; identificação da escola; situação funcional; ambiente da escola; organização do trabalho; aspectos vocais; e estilo de vida. Para esta pesquisa, utilizaram-se as respostas direcionadas à identificação do professor, carga horária com alunos, itens do tópico organização do trabalho relacionado às situações de violência e duas perguntas do tópico Aspectos vocais, hábitos e estilo de vida, relacionadas aos hábitos vocais.

O ITDV(8), validado para triagem, possui 12 perguntas relacionadas à qualidade vocal, com respostas requisitadas em “nunca”, “raramente”, “às vezes” e “sempre”. Para análise, cada resposta “às vezes” e “sempre” conta-se um ponto. O indivíduo que obtiver a pontuação maior ou igual a cinco, apresenta pré-disposição a alterações vocais(8).

Os dados foram organizados em planilha no software Excel 2013, tabulados e submetidos à análise estatística pelo programa SPSS® 16.0. Para verificação da associação entre as variáveis, foi utilizado o teste Quiquadrado, com nível de significância de 5%.

RESULTADOS

A amostra foi composta por oito homens e 33 mulheres com idade entre 25 e 66 anos, com mediana de 39 anos. Com relação aos hábitos vocais, 33 (80,5%) pessoas referiram o hábito de gritar e 26 (63,4%) destas pessoas apresentaram no escore do ITDV pontuação maior que cinco, 40 pessoas (97,5%) declararam falar muito, sendo que 30 (73,2%) delas obtiveram escore maior que cinco pontos no ITDV. Quanto aos cuidados com a voz, 31 (73,1%) pessoas relataram ingerir água enquanto realizam uso vocal e 25 (61%) obtiveram pontuação total maior que cinco no escore do ITDV.

Em relação à carga horária de trabalho em contato com os discentes, 16 (39%) professores permanecem mais de 20 horas semanais com os alunos e 25 (61%) permanecem menos que 20 horas.

A Tabela 1 ilustra as respostas referentes à violência em sala de aula e as situações de violência mais relatadas. Quanto ao escore total do ITDV, 30 (73,1%) professores ficaram acima da pontuação proposta para predisposição à alteração vocal.

Tabela 1 Frequências absoluta e relativa das violências referidas pelos professores da pesquisa e autorreferência de alteração vocal 

ITDV < 5* ITDV > 5* P valor#
Roubo de objetos pessoais Ausente 3 16 0,1
Presente 8 14
Roubo de materiais da escola Ausente 7 18 0,8
Presente 4 12
Ameaças Ausente 7 13 0,2
Presente 4 17
Brigas Ausente 1 2 0,8
Presente 10 28
Violência contra prof. e func. Ausente 10 18 0,06
Presente 1 12
Pichações Ausente 8 25 0,4
Presente 3 5
Violência à porta da escola Ausente 6 18 0,7
Presente 5 12

*ITDV>que 5 indica autorreferência positiva de alteração vocal;

#Teste Quiquadrado

A análise estatística evidenciou associação significativa entre o gênero feminino e a queixa de violência do tipo pichações (p<0,01), entretanto não ficaram evidentes associações significativas entre as outras formas de violência questionadas e o gênero.

Não foi evidenciada nenhuma correlação significativa entre o resultado do ITDV com o gênero (p>0,05) e ITDV com as formas de violência avaliadas no estudo (p>0,05). Houve associação entre os resultados do ITDV e a carga horária de trabalho (p<0,05).

DISCUSSÃO

A composição do grupo de professores deste estudo é semelhante à de outras pesquisas desenvolvidas na área: a maioria do gênero feminino(9,10). No Brasil, há poucas pesquisas que considerem o gênero como categoria de análise, o que pode ser justificado por algumas ideias naturalizadas como a docência compreendida como uma profissão feminina(11).

Em geral, o contexto social e familiar da mulher que, na maioria das vezes, cumpre jornada de trabalho tripla, devido à necessidade de mais de um emprego, se soma à protagonização nos cuidados com a família e com o lar(12) o que influencia o aumento da demanda vocal e pode ser a causa do surgimento de sintomas vocais e lesões orgânicas de laringe(13).

Na população de professoras deste estudo, foi encontrado um alto índice de autorreferência para distúrbios vocais. Com relação ao aspecto anatômico, segundo estudos, a proporção glótica, em torno de 1,0, gera aumento do ângulo de abertura da comissura anterior das pregas vocais, favorece maior impacto entre elas e, assim, justificaria o desconforto vocal(14).

A ocorrência de disfonia pode ser relacionada ao hábito de falar muito ou gritar, como também a presença de alergia ou refluxo faringolaríngeo. Tais aspectos podem ser relacionados a fatores ambientais da escola, que interferem na produção saudável da voz(15).

Há estudos que indicam uma associação entre o ambiente escolar e a ocorrência do distúrbio de voz em professores, em especial nos que atuam no Ensino Infantil e Fundamental. Alguns elementos como ruído excessivo, limpeza insatisfatória, iluminação e tamanho da sala inapropriada são alguns dos aspectos associados ao distúrbio de voz do professor(16).

Os professores em geral utilizam o grito como estratégia em sala de aula. Estudos afirmam que os distúrbios vocais afetam mais as mulheres e, em alguns casos específicos, as professoras que trabalham em séries iniciais, em que o ruído em sala de aula é maior. Assim, a estratégia utilizada é elevar a frequência e produzir uma intensidade forte(17).

Com relação à ingestão de água, os professores relataram beber água durante o uso da voz, achado em consonância com uma pesquisa que analisou 80 professores e, destes, 54 (67,5%) costumam beber água quando usam a voz(18). Os resultados sugerem que os professores conhecem os hábitos que interferem no bem-estar vocal, porém não os colocam em prática por diversos fatores. Dentre eles, o desconhecimento sobre o benefício da hidratação(19).

Existem fatores que alteram a voz dos professores, dentre eles, os aspectos que se originam na organização do trabalho, comumente relacionados ao conteúdo didático-pedagógico, a divisão do trabalho e as relações interpessoais no ambiente profissional.

Dentre os elementos externos, ou seja, que não estão relacionados diretamente à função de ensino, a violência é um dos aspectos que deve ser considerado no exercício da docência.

A violência nas escolas é um aspecto que necessita de atenção do poder público, pois, apesar dos planos e medidas colocados em prática, o fenômeno da violência parece aumentar(20).

As atividades da instituição escolar podem ter ligação com a violência em casos como a ocorrência de incêndios provocados pelos alunos, agressão e insultos aos professores, dentre outros(20).

Os tipos de violência mais presentes, segundo os professores desta pesquisa, são as brigas entre alunos e roubos de objetos pessoais. Em resultados de outros estudos, os professores em seus relatos têm destacado que a violência, principalmente o desrespeito, é uma constante no meio escolar. Eles indicam que a violência na escola pública está banalizada, o que faz com que atos violentos não sejam percebidos como tal(21). Isto justificaria a presença de associação apenas entre pichações e o gênero feminino e o fato de outras realidades violentas não terem sido sequer citadas pelos professores do presente estudo.

Somada a este contexto, se tem ainda a estreita relação entre violência e gênero, que encontra na escola espaço privilegiado de criação e fortalecimento dos estereótipos de gênero(22). Tal afirmação contribui com a evidência de que as professoras deste estudo percebem mais a violência, quando se trata de pichações, quando comparadas aos professores.

Ainda, as pichações escolares são mais sensíveis para o público feminino, pois, frequentemente, desenhos de genitálias masculinas são impostas e são frequentes frases que objetificam a mulher, como uma espécie de dominação do macho e naturalização do machismo.

Certamente, a violência é um comportamento aprendido nos processos de socialização como construção cultural e tem o poder de provocar diversas consequências que atingem profundamente as aprendizagens que ocorrem no cotidiano escolar e a saúde de todos que fazem parte da instituição(23).

CONCLUSÃO

A autorreferência sobre distúrbios de voz não apresentou relação significativa com as situações de violência apresentadas aos professores. Porém, a análise do contexto de violência nas escolas e os problemas vocais em professores são temas que merecem atenção, com destaque para a questão de gênero naturalizada e poucas vezes problematizada quando se trata de mulher e trabalho. Deste modo, o presente artigo poderá contribuir com ações específicas em saúde para a população vulnerável e direcionar para a criação de políticas públicas capazes de minimizar o adoecimento vocal destes profissionais e, assim, refletir sobre mecanismos que impeçam ou diminuam as situações de violência na escola.

REFERÊNCIAS

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4 Netto L, Rodrigues RN, Costa MA, Santos J, Tatagiba GA. Experiências e especificidades da violência escolar na percepção de funcionários de uma escola pública. Rev Enferm. 2012;2(3):591-600.
5 Ferreira LP, Latorre MR, Giannini SP. A violência na escola e os distúrbios de voz de professores. Distúrb Comun. 2011;23(2):165-72.
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22 Cruz MHS. Abordagens sobre gênero e violência. Aracaju: FAPESE/UFS; 2007. Texto (mimeo) discutido na disciplina “Grupos vulneráveis e violência de gênero” no Curso de Especialização Violência, criminalidade e políticas públicas.
23 Couto MAP. Violência e gênero no cotidiano escolar. Aracaju: Editora UFS; 2012.