versão impressa ISSN 0104-5970
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.21 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000400003
O papel central da ciência na procura de respostas sobre as características da população brasileira remonta à época da independência do país, com a inquietação sobre o impacto que a composição da população brasileira, tida como “miscigenada”, teria na construção da nova nação. Ao longo do século XIX as teorias sobre a população brasileira não eram formuladas dentro de um contexto de separação rígida entre ciências naturais e ciências sociais. O exemplo mais saliente dessa conjunção é a acepção do conceito de “raça”, especialmente após 1850, no âmbito das discussões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), quando aí se incorporavam tanto questões relacionadas à diferença física e adaptabilidade ao meio ambiente quanto noções de diferença moral e de comportamento entre grupos e indivíduos neles classificados, questões tidas como chave no planejamento do futuro do país (Skidmore, 1994; Chalhoub, 1995; Carreta, 2006; Albuquerque, 2009). Nessas discussões, realizadas em disciplinas tão diversas quanto a medicina, a antropologia ou o direito, avaliava-se a possibilidade ou não de se constituir uma nação, que se pretendia de vocação europeia, a partir de uma população de origem predominantemente não europeia ou miscigenada. A capacidade “eugênica” da população brasileira era analisada e então avaliada, como possível ou impossível, por autores como Sílvio Romero e Nina Rodrigues, os quais apontavam para a necessidade de incentivar a chegada de imigrantes europeus ao país, fosse para “embranquecer” a população brasileira pelos sucessivos cruzamentos da população local com imigrantes europeus, fosse para substituir progressivamente a população existente (Azevedo, 1987; Schwarcz, 1993; Silveira, 1999; Chalhoub, 2003; Costa, 2006).
Já no século XX, a ciência ainda é tida como lugar de onde as respostas sobre as origens e o futuro do país poderiam surgir (Santos, 2002), havendo, porém, uma progressiva separação entre os âmbitos “biológicos” e “sociais”, especialmente após a difusão no país das teorias que rejeitavam o conceito de “raça” enquanto realidade biológica. O âmbito do “social” e as ciências que o tomavam como seu objeto de estudo teriam, progressivamente, o papel de fornecer explicações e embasamentos teóricos sobre as características do povo brasileiro e os projetos de futuro para a nação (Bomfim, 1905; Freyre, 1933; Lima, Hochman, 1996). Essa tendência se verificaria notadamente após a consolidação institucional das ciências sociais no país, na década de 1950 (Maio, 1999), tendo continuidade no final desse século e até o início do século XXI, com os estudos no campo das ciências sociais e das humanidades sobre o surgimento das chamadas novas “etnicidades” indígenas e o fortalecimento da identidade “negra” (Oliveira, 1998; Agier, 2001; Sansone, 2004).
No entanto, isso não quer dizer que, dentro do campo da biologia, o interesse pelas origens da população brasileira fosse deixado de lado. Durante as décadas de 1930 e 1940, podemos encontrar estudos que analisavam a frequência de grupos sanguíneos no país e sua distribuição em diversos grupos “raciais”, tais como as populações indígenas (Cavalcanti, 2007; Cavalcanti, Maio, 2011). Esse interesse da genética pelas origens da população brasileira seria reforçado no final do século XX, com o refinamento das técnicas de pesquisa sobre ancestralidade genômica. Apesar de esses estudos da chamada “nova genética” não terem o propósito de dar respostas definitivas sobre os problemas que acometem o Brasil, como acontecia com o trabalho desenvolvido por cientistas do século XIX (Schwarcz, 1993; Silveira, 1999; Chalhoub, 2003), há uma tentativa, em muitos desses novos trabalhos, de contribuir com debates dominados, desde há muito, pelas ciências sociais e as humanidades, seja no campo da historiografia, no que se refere ao passado do país, seja nas discussões sobre seu futuro, como, por exemplo, no que tange à implementação de políticas públicas de ação afirmativa (Pena, Bortolini, 2004).
Na tentativa de contribuir com esses debates sobre a história do país ou a identidade étnica da sua população, esses estudos fornecem um caso interessante para analisarmos o “engajamento” de geneticistas em outras áreas de estudo. O intuito não é analisar exausti-vamente toda a produção da genética contemporânea sobre a população brasileira, para aferir o grau de diálogo com outras disciplinas, ou analisar projetos colaborativos entre geneticistas, cientistas sociais e/ou historiadores (Santos et al., 2009), mas sim explorar algumas das práticas intelectuais de geneticistas que, fora desses vínculos de colaboração, se propõem, explícita ou implicitamente, a contribuir com debates de outras áreas de conhecimento, como a história ou as ciências sociais. Para dar conta desse objetivo, examino, como estudo de caso, alguns trabalhos da área da genética sobre a presença de diferentes variantes genéticas (os chamados “haplótipos”1 da hemoglobina S no Brasil), e sobre a ancestralidade genômica de portadores dessa variante de hemoglobina. Por um lado, encontramos trabalhos que vinculam a presença dos diferentes haplótipos da hemoglobina S, em várias regiões do Brasil, aos fluxos de tráfico de escravos e posteriores migrações internas, com alguns geneticistas explicitamente apontando seus trabalhos como uma contribuição para futuras pesquisas sobre as rotas do tráfico de escravos no Brasil. Por outro lado, ao questionar a associação entre anemia falciforme e “negritude”, associação que tem sido feita tanto pela medicina em geral quanto por atores-chave do movimento negro no Brasil, os estudos sobre a ancestralidade genômica global e sobre o grau de miscigenação de portadores de hemoglobina S se aproximam, mesmo que indiretamente, dos debates sobre identidade “negra” no Brasil. O contraste desses trabalhos com estudos contemporâneos sobre escravidão e identidade negra da história e das ciências sociais permite problematizar a centralidade explicativa da “origem” nesses estudos da genética contemporânea, apontando para possíveis lacunas no que diz respeito à consideração dos argumentos e modos de construção do conhecimento de outras áreas de estudo que tentam, por meio de abordagens focadas na análise de “processos”, compreender a constituição e a mudança da sociedade brasileira.
A hemoglobina S é uma hemoglobina variante, resultado de uma mutação genética de natureza recessiva. Os indivíduos que herdam essa mutação de ambos os progenitores são chamados de portadores de anemia falciforme,2 uma hemoglobinopatia que, desde a sua descoberta, foi identificada pela biomedicina como “doença do corpo negro” (Tapper, 1999; Fry, 2000; Wailoo, 2001). A doença falciforme tem prevalência relativamente alta entre a população brasileira, constituindo-se em um problema de saúde pública. Segundo dados do próprio Ministério da Saúde, “no Estado da Bahia a incidência da Doença Falciforme é de 1:650, enquanto a do Traço Falciforme é de 1:17, entre os nascidos vivos. No Rio de Janeiro 1:1200 para a doença e 1:21 de traço. Em Minas Gerais é na proporção de 1:1400 com a doença e de 1:23 com Traço Falciforme” (Brasil, 2008).
Em termos clínicos, a hemoglobina S torna as hemácias rígidas, fazendo com que adquiram o formato de foice (de onde deriva o nome dado à doença) e não exerçam a função de oxigenar o corpo de modo satisfatório. As hemácias nesse formato têm dificuldade de circular no sangue, podendo provocar obstruções vasculares. Como consequência, os portadores de anemia falciforme podem apresentar diversos sintomas e complicações, tais como dores intensas, isquemia, necrose, disfunção e danos irreversíveis a tecidos e órgãos, além de maior suscetibilidade a infecções e a presença de anemia crônica (Brasil, 2007). As manifestações clínicas da condição e as características de alterações dos valores hematológicos que nela surgem têm sido foco de atenção em estudos de hematologia, nos quais se apontam tanto fatores ambientais e de manejo da doença (tais como alimentação, exposição ao frio e situações de estresse) quanto questões genéticas relacionadas à diversidade de variantes de hemoglo-bina S para explicar a diversidade de sintomas apresentados pelos pacientes. Nesse sentido, um dos principais focos de pesquisa tem sido a relação entre a gravidade do quadro clínico e os diversos haplótipos da hemoglobina S.
Inicialmente pensada enquanto mutação única, originada “na África”, em finais da década de 1970 foi descoberta a existência de várias origens para a mutação da hemoglobina S (Cabral, 2010). Estudos genéticos posteriores apontaram a existência de cinco variantes, nomeadas de acordo com a região de origem da mutação: Senegal, Benim, Bantu (ou CAR), Camarões e Árabe/Indiano. O interesse na diversidade de haplótipos tem nesses estudos uma motivação clínica principal, em que a hipótese central articula a presença de manifestações clínicas (mais ou menos severas) ao haplótipo presente no paciente3 (Nagel, 1984). Apesar de existirem estudos que não confirmam tal hipótese (Fullwiley, 2011), a pesquisa sobre diversidade de haplótipos para hemoglobina S tem se mantido como campo de estudos relevante para a genética. Por outro lado, podemos encontrar pesquisas que procuram estabelecer tanto diferenciações dentro dos haplótipos quanto outros fatores genéticos que poderiam explicar as diferenças no grau de severidade dos sintomas (Lettre, 2008). E, como veremos mais adiante, algumas dessas pesquisas apontam para a possibilidade de a população brasileira ser, devido ao seu alto grau de miscigenação, uma população interessante para o desenvolvimento de estudos sobre os fatores genéticos que influenciam o quadro clínico da doença (Silva et al., 2011).
A identificação da hemoglobina S foi relatada pela primeira vez no Brasil na década de 1930. Data dessa época, também, a associação entre a anemia falciforme e a “raça negra”, assim como o questionamento, levantado originalmente na literatura norte-americana, na década de 1940, em torno da relação entre o processo de “miscigenação” e a presença da doença (Tapper, 1997). No Brasil, influenciados pelo clima intelectual de valorização da mes- tiçagem na época, era possível encontrar, em meio a pesquisas que propunham medidas de “contenção eugênica” da doença (tais como a obrigatoriedade do exame pré-nupcial), trabalhos que preconizavam a diminuição da prevalência da doença em decorrência do processo de miscigenação. Pesquisas realizadas nas décadas de 1930 e 1940 usavam a presença de hemoglobina S, junto com a frequência de grupos sanguíneos, para avaliar o grau de miscigenação e pureza de diversos contingentes populacionais, incluindo grupos indígenas (Cavalcanti, 2007; Cavalcanti, Maio, 2011). Esses estudos podem ser considerados precursores dos trabalhos contemporâneos sobre genética de populações que procuram estabelecer a prevalência dos diferentes haplótipos da hemoglobina S. Na década de 1980, iniciaram-se pesquisas sobre esse tema em diversas regiões do país, abrangendo do norte ao sudeste do país, incluindo estudos em três capitais do Nordeste. A maioria desses trabalhos tem como objetivo principal simplesmente mapear a presença dos diversos haplótipos, analisando em alguns casos sua associação com manifestações clínicas. No entanto, em alguns deles, há, por vezes, um engajamento com a historiografia, fato que torna esses estudos casos interessantes para, através de sua análise, avaliar o entrecruzamento entre a genética e outras áreas de conhecimento. Chamo a atenção do leitor para o modo como, nesses trabalhos, as reflexões sobre as “origens” da população são tidas como suficientemente explicativas. Apesar da pretensão de alguns desses artigos, ora implícita ora explícita, como veremos em alguns dos trabalhos que analisaremos com mais detalhe, de contribuir para a construção do conhecimento histórico sobre a escravidão, não há neles qualquer tentativa de se engajar criticamente com os debates recentes da história. Para tomar um exemplo, é ignorada a produção, das últimas décadas, sobre as migrações internas e o tráfico interprovincial de escravos (Neves, 2000; Slenes, 2004; Sampaio, 2011), produção na qual se discute a reconstrução das identidades de indivíduos e grupos que se deslocaram entre regiões do país. Esses estudos, além de pensar tais deslocamentos como simples movimentos de corpos, mostram como o foco na origem geográfica desses escravos, ou seja, o foco na origem africana, não dá conta da complexidade de relações e práticas recriadas durante o período do tráfico negreiro e da escravidão no Brasil.
O primeiro trabalho a ser realizado sobre a frequência dos haplótipos da hemoglobina S no Brasil foi publicado em 1992. Nesse trabalho, que analisa a presença dos diversos haplótipos na população de São Paulo, aponta-se para as origens diversas dos escravos trazidos para as Américas, usando como referência um único trabalho de história, datado da década de 1960, sobre o tráfico transatlântico de escravos. No entanto, não há a pretensão, por parte dos autores, de fazer nenhum outro tipo de contribuição ao estudo desse processo (Zago, Figueiredo, Ogo, 1992). O mesmo tipo de abordagem é encontrado nos trabalhos de Costa et al. (1994), Galiza Neto et al. (2005), Pante-de-Sousa et al. (1998) ou Lemos Cardoso e Guerreiro (2006).Costa et al. (1994) mencionam a probabilidade de os resultados do seu trabalho, comparando a prevalência de haplótipos encontrados em São Paulo e em Salvador, refletirem a ancestralidade africana dos pacientes envolvidos no estudo. Os autores argumentam ainda que o Brasil teria recebido contingentes escravos vindos de Angola, do Congo ou de Moçambique, onde o haplótipo CAR é mais comum. Por outro lado, populações escravizadas da Nigéria, de Gana ou do Benim foram enviadas à Bahia. Para esses autores, os padrões de prevalência dos haplótipos da hemoglobina S estariam relacionados tanto às origens quanto aos processos de miscigenação da população brasileira. Por sua vez, Galiza Neto et al. (2005), numa breve menção, secundária ao foco principal do trabalho, que é o de contribuir para o conhecimento sobre a doença e o seguimento clínico de seus portadores, relacionam os dados achados na sua pesquisa com portadores de hemoglobina S na cidade de Fortaleza à confirmação de informações obtidas através de “documentos históricos sobre a nossa origem étnica” (p.320). Os autores fazem tal relação sem, contudo, especificar quais os documentos em questão ou qual o sentido que conferem ao termo “étnico”. Na bibliografia do artigo encontramos apenas uma fonte historiográfica, publicada originalmente na década de 1950. Já nos textos de Pante-de-Sousa et al. (1998) e Lemos Cardoso e Guerreiro (2006), sobre estudos realizados na cidade de Belém do Pará e que corroboram fontes históricas sobre fluxo de escravos na região e migrações internas posteriores, há uma tentativa de engajamento, ainda que superficial, com estudos historiográficos sobre o tráfico negreiro entre diversas regiões e migrações posteriores em direção à região.
Por outro lado, encontramos diversos trabalhos sobre o assunto, isto é, sobre a prevalência de haplótipos da hemoglobina S no Brasil, que explicitam seu envolvimento com a história para além da consulta de fontes e estudos dessa disciplina. Desses trabalhos, analisaremos aqui os de Gonçalves et al. (2003), Adorno et al. (2004), Silva, Gonçalves, Rabenhorst (2009) e Fleury (2000, 2007).
No estudo de Gonçalves et al. (2003), realizado na cidade de Salvador, há clara ênfase na análise do impacto no quadro clínico da presença de certos haplótipos. Os autores afirmam que seus resultados são “relevantes ao estudo das rotas de tráfico escravo e à origem africana da população bahiana”.4 E apontam, também, para a identificação de um indivíduo portador do haplótipo Senegal, podendo “sugerir que o estado da Bahia recebesse fluxo gênico proveniente do Atlântico Oeste da África”. Por outro lado afastam a possibilidade de que a presença desse haplótipo seja decorrente de migrações internas, julgando-a “pouco provável, sendo que os antepassados do paciente eram de Salvador”, e deixando aberta a possibilidade de explicar a presença do haplótipo Senegal nesse indivíduo enquanto mutação de origem recente5 (p.1287).
Analisando dados sobre Salvador, também Adorno et al. (2004) enfatizam o fato de os resultados da prevalência de haplótipos de hemoglobina S, na população sob estudo, serem divergentes dos achados em outros estados do Brasil, o que “demonstraria a heterogeneidade dos africanos trazidos pelo tráfico escravo ao país”. Os autores prosseguem indicando que seus resultados
indicam uma contribuição (à população brasileira) de africanos do Congo, Moçambique ou Angola, regiões onde o haplótipo CAR é predominante. Essas regiões receberam barcos da Bahia carregados de tabaco, que retornavam com carregamentos de escravos; esse tráfico escravo fora intensificado entre 1815 e 1824. No entanto, há evidências de que a região nordeste do Brasil, especialmente a Bahia, continuou a receber escravos da África Oriental Central, justificando as frequências de haplótipos CAR e Benin encontradas (Adorno et al., 2004, p.269).
O artigo conclui com a afirmação de esperar contribuir para “as pesquisas sobre as rotas de tráfico escravo no Brasil e as origens africanas da população da Bahia, que, à primeira vista, parece ser bastante diferente da população de outros estados” (Adorno et al., 2004, p.269). A mesma argumentação sobre a relevância dos estudos dos haplótipos da hemoglobina S para o estudo das rotas de tráfico escravo e as origens étnicas da população brasileira é encontrada no trabalho de Silva, Gonçalves e Rabenhorst (2009), que analisa dados da cidade de Fortaleza, Ceará.
A confiança na capacidade da genética de populações de contribuir com os estudos sobre a escravidão é ainda mais evidente no trabalho de Fleury (2000, 2007). Analisando dados obtidos na cidade do Rio de Janeiro, o autor argumenta ser capaz de aliar os estudos genéticos à história da colonização brasileira, no que diz respeito à origem dos escravos trazidos para o Brasil. Segundo Fleury (2007, p.90), a escravidão transformou o Brasil num
imenso continente negro fora da África, influenciando, com sua cultura, a formação genética e cultural de nosso povo. O tráfico, desta forma, poderia ter resultado numa mistura de usos e costumes completamente estranhos uns dos outros. Ao contrário, o jogo das trocas comerciais estabeleceu relações precisas entre clientes e fornecedores dos dois lados do Atlântico e, assim sendo, os reagrupamentos de negros de certas ‘nações’ africanas foram realizados insensivelmente em algumas regiões do Novo Mundo. Os negros oriundos de golfo de Benin foram na maior parte encaminhados para a Bahia, enquanto que os escravos bantos, do Congo e Angola, eram mais frequentes no resto do Brasil. Em resumo, pode-se concluir que o Brasil recebeu, principalmente, elementos pertencentes às culturas sudanesas e bantas. Os sudaneses, portadores de cultura mais elevada e procedentes da Costa da Guiné, espalharam-se pelo recôncavo da Bahia e vizinhanças. Já os bantos, de cultura mais rudimentar e oriundos do Congo (Zaire), de Angola e de Moçambique, difundiram-se pelo Maranhão, Zona da Mata Nordestina, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
Aqui, considero relevante informar ao leitor que, no artigo de Fleury, do qual essa citação é extraída, podemos encontrar uma bibliografia composta de 37 títulos. Trinta e três deles são de periódicos pertencentes à área de estudos da hematologia, três da história, e um é o relato de um viajante do século XIX, não havendo qualquer menção a textos da área da antropologia. Essa parca bibliografia na área de humanidades e ciências sociais não inibe o autor de se pronunciar sobre as práticas culturais resultantes do tráfico negreiro e escravidão no Brasil, ou sobre a suposta superioridade ou inferioridade de certas culturas em relação a outras. Fleury ignora, completamente, mais de três décadas de debates, na história, sobre escravidão e identidade escrava, tanto ao afirmar a inexistência da “mistura” de usos e costumes dos escravos com origens geográficas diferentes quanto ao empregar o termo “nações” para se referir a unidades autônomas com afinidade entre seus membros, definidas e estáveis ao longo do tempo. Mais ainda: o autor ignora a crítica da antropologia em relação a essa suposta superioridade nagô e inferioridade banta (Dantas, 1988), além da produção historiográfica sobre a forte presença dos bantos (“angolas”) na Bahia (Reginaldo, 2011).
Dentre os trabalhos que contrariam a inexistência da “mistura” apontada por Fleury podemos destacar o de Mintz e Price (1976), que discute a suposta “permanência” de traços culturais africanos nas Américas a partir do conceito de “crioulização”. Para esses autores, os sistemas culturais das regiões de origem dos escravos, vivenciados no contexto das relações estabelecidas dentro do sistema escravocrata, seriam transformados em uma nova configuração cultural e, portanto, num novo modo de viver. Não aconteceu, por conseguinte, uma manu-tenção, nas Américas, da cultura tal qual era vivenciada na África. Para Mintz e Price, a cultura não é pensada enquanto fixa, mas sim como estando sob constante modificação e reformulação, sendo influenciada pelo contexto social mais amplo no qual é vivida, numa conceituação teórica que incorpora a agência dos sujeitos nesse devir. Essa nova cultura, diga-se de passagem, englobaria tanto escravos quanto não escravos, pois estes últimos também são considerados participantes dessa reconfiguração cultural, não estando restrita, na visão desses autores, somente aos africanos e aos seus descendentes.
Por sua vez, os historiadores Robert Slenes (1995) e João José Reis (2003) enfatizam, em seus trabalhos, possíveis vínculos entre escravos de grupos étnicos diferentes. Assim, João Reis mostra como a breve revolta escrava de 1835, liderada por escravos islamizados, na cidade de Salvador, conseguiu reunir cativos de origens étnicas diversas. Já Slenes, analisando dados da região Sudeste do Brasil, mostra como a experiência de escravidão pode criar novos vínculos e instituições culturais. O termo “malungo” é traduzido por Slenes como “companheiro de travessia”, no percurso para “uma nova vida”. A experiência compartilhada da travessia da África para as Américas ressignificava a vida dos cativos, criando vínculos e práticas que iam para além de diferenças étnicas prévias à experiência de cativeiro.
Da mesma maneira, o termo “nações”, que Fleury equipara a “cultura, usos e costumes”, tem sido reinterpretado à luz da noção do termo cultura como permanentemente em fluxo (Barth, 1989). Luís Nicolau Parés (2006) aponta para como o termo “nação”, tal como era empregado nos séculos XVII e XVIII pelos traficantes de escravos, missionários e oficiais coloniais, estava permeado por noções europeias sobre identidade coletiva, prevalentes nos estados monárquicos europeus que dominavam o tráfico e comércio de escravos. Apesar de realmente existirem noções de pertencimento coletivo vinculadas a uma afiliação, a uma chefia ou monarquia, a identidade coletiva na África não se esgotava nesse pertencimento, sendo multidimensional e articulada em torno de outras esferas, tais como a religiosa, de grupos de parentesco, território e lugar de moradia ou linguística. Essas identidades coletivas estavam sujeitas a transformações a partir de processos como alianças e guerras, migrações, agregação de linhagens, mudanças políticas ou incorporação de cultos de outras regiões. Os nomes que designavam um coletivo podiam, aliás, ter sido criados originariamente por alguém de fora do grupo, como, por exemplo, grupos vizinhos. Essas novas denominações podiam ser aceitas e incorporadas pela própria coletividade, que era designada pelo termo ou imposta à força, num processo que podia incluir sob o mesmo nome grupos previamente designados por termos diferentes. As “nações” de escravos, apesar de em alguns casos coincidirem com coletividades já existentes, não eram necessariamente termos referentes a grupos políticos ou étnicos preexistentes na África, mas distinções elaboradas de acordo com a lógica do comércio de escravos.6
Ao privilegiar o relato de Henry Koster, viajante inglês do século XIX, Fleury ignora não somente a produção acadêmica de corte historiográfico, mas, também, os debates dentro da antropologia e em especial as discussões sobre a impossibilidade de “hierarquizar” culturas e caracterizá-las enquanto “rudimentares” ou “elevadas” (Lévi-Strauss, 1952). A afirmação acerca da superioridade nagô em relação aos bantos, que pode ser remetida aos escritos de Nina Rodrigues, no século XIX, e corroborada posteriormente por autores como Gilberto Freyre (1933, p.382), seria objeto de crítica, dentro da antropologia, por autores como Beatriz Góis Dantas (1988), que aponta para os processos de construção de legitimidade, dentro e entre comunidades religiosas de candomblé na Bahia, como um dos fatores que contribuiu para a difusão do discurso da superioridade nagô.
Poder-se-ia argumentar que essas questões são parte menor do objetivo do trabalho de Fleury, e que não se pode esperar de um profissional da área da genética dominar a bibliografia das humanidades sobre o tema, o que em si já é questionável. No entanto, se consideramos que um dos objetivos explicitados pelo autor é realizar “uma série de considerações de interesse sobre a origem e as migrações internas dos escravos no Brasil” torna-se completamente inaceitável sua falta de debate com a literatura especializada sobre o tema. Ainda mais se formos à conclusão do artigo, que inclui o seguinte parágrafo:
Analisando as referências bibliográficas relativas ao período colonial, nota-se uma grande escassez de dados sobre a escravidão no Brasil principalmente em relação ao século XIX. Uma grande parte dos documentos sobre a questão dos escravos e do tráfico foi destruída em 1891, após a abolição da escravatura. Este ato ‘abolicionista’ atribuído a Ruy Barbosa, então Ministro das Finanças, é controverso e discutível. Desta forma, acreditamos que a determinação dos haplótipos do ‘cluster’ da globina beta seja de grande importância não só para o acompanhamento e prognóstico dos pacientes de anemia falciforme, como também como ferramenta para estudos antropológicos que contribuam no esclarecimento da origem dos africanos que tanto contribuíram na formação etnológica, econômica, cultural e social do Brasil (Fleury, 2007).7
Somente omitindo a produção contemporânea do campo da história sobre escravidão e dinâmicas sociais no século XIX é possível afirmar a “escassez de dados sobre a escravidão no século XIX”.8 O tipo de dados que Fleury lamenta ser escasso é o que diz respeito à origem e ao porto de entrada dos escravos africanos no Brasil, ignorando a produção do campo da história que se baseia em outras fontes para elaborar suas análises, como, por exemplo, em processos criminais.
No entanto, não considero que essa falta de atenção à produção da história ou da antropologia, por parte de Fleury, seja somente reflexo da má vontade ou indisposição desse autor de se engajar com a literatura dessas disciplinas. Acredito que o que possa estar em jogo seja mais uma questão, extensível em certa medida aos outros artigos aqui mencionados, de diferenças epistemológicas entre as abordagens desses autores e aquelas de trabalhos originados dentro da história ou das ciências sociais. A questão central nessa diferença seria a ênfase dada às noções de “origem” nos estudos de genética analisados, em contraste com o destaque dado aos “processos” no campo da história ou das ciências sociais. Retomarei esse ponto na seção final do artigo, em que discuto a importância de olharmos para a produção do conhecimento e a maneira como o tipo de questão e as respostas a buscar mudam em diferentes campos de conhecimento.
Porém, antes de passar para essa discussão sobre epistemologia, gostaria de introduzir o segundo estudo de caso dentro das análises da genética sobre haplótipos da hemoglobina S: os estudos de associação entre ancestralidade genômica e o grau de severidade das manifestações da doença falciforme. A intenção ao analisar esse segundo estudo de caso é mostrar como a produção da genética tem-se estendido para se pronunciar sobre questões referentes a identidade, mobilização social e políticas públicas.
O interesse da genética pela hemoglobina S não se limita aos estudos sobre haplótipos. Assim, um novo campo de estudos que tem sido desenvolvido recentemente é a identificação, por meio da comparação do genoma de portadores de doença falciforme com indivíduos que não têm a doença, de características do genoma associadas com a gravidade das manifestações da doença. Nessa linha de estudos se encaixa o trabalho de Silva et al. (2011), que estabelece uma análise comparativa de marcadores genômicos de ancestralidade entre um grupo de portadores de doença falciforme e um grupo de controle de doadores de sangue, ambos residentes no estado de Minas Gerais. O estudo desses autores alerta para o risco de esse tipo de pesquisa não incluir na sua análise dados sobre a ancestralidade genômica de populações, especialmente relevante no caso de estudos feitos com portadores de hemoglobina S em países da América Latina, que têm um alto grau de miscigenação na sua população. Analisando os dados sobre marcadores genômicos de ancestralidade, os autores alertam para a necessidade, dado o alto grau de heterogeneidade da ancestralidade da população estudada,9 de incluir esse tipo de população em futuros estudos que empreguem a técnica da comparação global do genoma. Alertam também para a denominação da anemia falciforme enquanto doença “racial/étnica” ser inapropriada no caso estudado, apesar da associação entre hemoglobina S e a ancestralidade africana.
Esse alerta está relacionado tanto a discussões dentro da medicina, quanto a debates mais gerais com participação da genética e das ciências sociais. No Brasil, esses debates mais gerais se intensificaram na última década do século XX e início do século XXI com as discus- sões sobre a implementação de políticas de ação afirmativa de corte racial no país.10 Essas discussões tenderam a direcionar seu foco para a implementação dessas políticas no campo da educação e, secundariamente, analisaram o desenvolvimento de políticas de ação afirmativa no campo da saúde (Oliveira, 2003, 2004; Fry, 2005; Maio, Monteiro, 2005). As questões levantadas centravam-se nas desigualdades de corte “racial” mostradas em estudos estatísticos, nas medidas mais adequadas para reduzir essas iniquidades, no caráter miscigenado da história do país e na dificuldade em estabelecer categorias raciais/de cor bem definidas para usar na implementação dessas ações afirmativas.
A posição de alguns geneticistas proeminentes nesse debate pode ser resumida na conclusão do artigo intitulado “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?” (Pena, Bortolini, 2004). Nela, os autores respondem com um “enfático não” à pergunta que formulam no título do trabalho.11 Baseiam sua argumentação em dados da genética que mostram o alto grau de heterogeneidade da ancestralidade genô-mica da população brasileira, produto de processos históricos de miscigenação, assim como a não correspondência entre a ancestralidade genômica e a classificação por raça/cor de muitos brasileiros, devido ao sistema de classificação racial no país privilegiar a aparência em detrimento da ancestralidade (Nogueira, 1955). Esse “não”, apesar de enfático, não retira o papel da genética dos debates sobre ações afirmativas. Assim, apesar de argumentar que a genética não pode ter um papel prescritivo, motivo pelo qual essa área de conhecimento não pode definir individualmente quem teria o direito de se beneficiar desse tipo de políticas, os autores afirmam acreditar que “a genética moderna pode oferecer subsídios para as decisões políticas e que o perfil genético da população brasileira certamente deve ser levado em conta em decisões políticas” (Pena, Bortolini, 2004). Portanto, para esses autores, a genética e os dados que ela fornece continuariam a ter contribuições a fazer para os debates sobre essas políticas, e, de maneira mais geral, sobre a identidade nacional. No entanto, e como abordarei na próxima seção, para essa contribuição não ficar presa a uma análise centrada nas “origens” é preciso dialogar com a produção de outras áreas, engajando-se com outras maneiras de produção do conhecimento.
Ao longo deste artigo tenho mostrado algumas tentativas dentro do campo da genética de contribuir com os estudos sobre a história e características da população brasileira, seja no campo do conhecimento do tráfico escravo, ou com as discussões contemporâneas sobre a identidade do país e os rumos que ele deve tomar. Não é meu papel aqui julgar o mérito desses trabalhos, ou da incorporação desses dados em discussões gerais, não acadêmicas, sobre o país. O que tenciono é pensar a contribuição que a genética pode trazer aos estudos acadêmicos em temas tradicionalmente objeto de análise das ciências humanas e sociais. Nesse sentido, uma das questões principais a ser levantada é como a ênfase dada à “origem” nesses tra-balhos diz respeito a questões de produção de conhecimento em diferentes áreas científicas, e a postura de não fazer uma diferenciação epistemológica entre ciência natural e ciência social, considerando ciência enquanto termo único. A pretensão explícita, em alguns desses trabalhos, de contribuir, por exemplo, para o estudo da escravidão, sem necessariamente se engajar com a literatura produzida por historiadores, traz consigo a possibilidade de transpor o mesmo processo epistemológico, de objetivos e conclusões, de uma ciência natural para as humanidades e ciências sociais. Essa discussão sobre as diferentes epistemologias remonta ao século XIX e início do século XX, e ainda se mantém atual porque é fonte de equívocos e confusões relacionados à capacidade das ciências naturais de dissertar sobre os objetos das ciências humanas.
A diferença epistemológica entre as ciências naturais (ou “ciências nomotéticas”) e ciências sociais (“ciências idiográficas”), formulada inicialmente pelos neokantianos Windelband e Rickert, seria refinada por Wilhelm Dilthey, um dos autores que mais contribuiu para o debate sobre a caracterização dos epistemes no período de consolidação das ciências sociais enquanto área independente de conhecimento, sendo posteriormente incorporada às reflexões epistemológicas de Max Weber (1992).
O pensamento de Dilthey se articula em torno do contraste entre a “vida”, enquanto experiência humana em mudança constante e sempre incompleta, e a “matéria inerte”. Esse contraste se daria também nas oposições levantadas por Dilthey para o estudo dos fenômenos. Assim, podemos encontrar no seu pensamento a oposição entre “mundo histórico”, articulado pelo homem, e “natureza”, não criada por ele. Os fenômenos relacionados à “natureza”, composta de “matéria inerte”, seriam estudados a partir do “estudo de segmentos”, isolados do real, pelas ciências naturais. Já no caso dos fenômenos do “mundo histórico”, criados pelo homem, seu estudo teria que ser baseado na sua “compreensão” interna, numa “apreensão integradora” das experiências vividas que caracterizaria as “ciências do espírito”. A necessidade de compreensão das “ciências do espírito” (termo que Dilthey usa para denominar as ciências sociais) estaria relacionada ao seu próprio objeto. O que interessa a Dilthey não é simplesmente a noção genérica de “vida”, mas sua unidade constitutiva, a “vivência”. Toda experiência humana é formada por vivências, e essa experiência é de caráter intrinsecamente histórico. Seu estudo, por isso, também terá um caráter intrinsecamente histórico, e, por conseguinte, validade histórica datada. Compreender o fenômeno da “vivência” é dar conta dos significados culturais de um objeto. Em vez de analisar um campo constituído de “objetos” já dados, como fazem as ciências naturais, a análise das ciências sociais centra-se na problematização do processo pelo qual o mundo e as experiências se constituem enquanto tais (Cohn, 1979).
Movimento parecido pode ser encontrado na história, especificamente nos textos da École des Annales e sua noção de historiografia. Para autores dessa corrente, como Marc Bloch (2001), a noção de “compreensão” seria central ao fazer do historiador, para o qual “as causas, em história como em outros domínios, não são postuladas. São buscadas”. Em paralelo à teorização desenvolvida por Dilthey, para Bloch o “ofício do historiador”, título de uma das suas obras escrita meses antes de sua morte em 1944, não seria coletar documentos que “falam por si sós”, como pretendia a história de corte positivista. Ao contrário, esses documentos, sem a formulação de uma pergunta, não poderiam fornecer nenhuma “verdade” histórica. Bloch critica o que ele denomina obsessão pela “embriogenia”, a noção de que as origens seriam “um começo que explica. Pior ainda, que basta para explicar”. A formulação das perguntas “feitas” aos documentos, e não os documentos em si, seria o que condicionaria as análises do historiador. Essas análises estariam influenciadas pela época na qual o historiador, enquanto ser cultural, estaria imerso. Cada época teria suas próprias inquietações, que se veriam refletidas nos temas e perguntas da história realizada nesse período.
Essas discussões sobre epistemologia nas ciências sociais e na história podem nos fornecer ajuda para compreender tanto o motivo da recepção morna dos estudos da genética aqui analisados no campo da história da escravidão no Brasil quanto as controvérsias entre cientistas sociais e geneticistas nos debates sobre ação afirmativa em relação ao uso do conceito “raça” enquanto categoria que tem vigência no cotidiano social vivenciado pelos brasileiros. Assim, o que estaria em jogo é uma problematização de quais as perguntas a serem feitas e quais as disciplinas que poderiam nos fornecer as respostas a essas perguntas. Exemplo dessa confusão entre o tipo de perguntas e metodologia em diferentes disciplinas pode ser encontrado no texto de uma geneticista baiana, Eliane Azevedo, publicado em importante periódico internacional da área da antropologia, no qual analisa a associação entre sobrenomes de origem religiosa e a presença de fenótipo “negroide” no estado da Bahia.12 Para essa autora, escrevendo em 1980, a antropologia cultural estaria atravessando uma crise em relação aos seus métodos e resultados. Essa crise seria devida à dificuldade em produzir variáveis confiáveis a partir de material de pesquisa sobre cultura e comportamento. O problema seria não existir, dentro da antropologia, definições-padrão para “agressão, responsabilidade, religiosidade, ou misticismo, dentre outras”. Como consequência, sua mensuração e interpretação seriam sempre suscetíveis a críticas sobre sua “validade e confiabilidade”. Já na área da genética de populações, segundo Azevedo, a situação seria bem diferente, pois, apesar de essa ser disciplina próxima à antropologia cultural, a genética de populações trabalharia com
variáveis que, como regra, permitem definições concisas, mensuração rigorosa e uma análise estatística adequada. A antropologia cultural, por outro lado, trabalha com variáveis pouco definidas, de difícil mensuração, e altamente susceptíveis a erro. A identificação de variáveis confiáveis parece-me ser a tarefa mais urgente para os antro-pólogos. Gostaria aqui de definir um tipo de variável para os estudos da antropologia que denomino de variável universal, sendo que (a) não necessita de definição por parte do pesquisador, (b) não é produzida artificialmente pelo pesquisador, e (c) é presente de maneira natural em toda população. O valor metodológico de uma variável do tipo universal está em ser adequada para estudos em diferentes culturas, ser livre de ‘bias’ do pesquisador, e sua riqueza de informação. Uma dessas variáveis é o sobrenome (Azevedo, 1980, p.360; destaque meu).
Interessante que, após quase um século de debates sobre a necessidade de relativismo para lidar com questões culturais (Boas, 1911; Benedict, 1934; Kroeber, 1948; Kluckhohn, 1949; Herskovits, 1972; Geertz, 1984), a suposta crise metodológica da antropologia pudesse ser resolvida com “variáveis universais”. Seria a noção de “sobrenome” de fato uma noção universal? A antropologia do parentesco há muito tempo enfatiza o fato de o parentesco não ser “natural”, e sim culturalmente constituído (Schneider, 1980; Daniel, 1984; Strathern, 1992; Carsten, 1995, 2000). Trabalharia a antropologia cultural com “variáveis”, por acaso? Ou estaria mais próxima de uma epistemologia baseada na “compreensão”, e, por conseguinte, trabalharia com “conceitos”? A própria noção de “origem”, e sua importância no nosso meio, não pode nos levar a pensar que seja “universal”. A “verdade” que os testes de ancestralidade genômica nos trazem tem que ser considerada enquanto “documento” no trato que Bloch (2001) dá ao termo, e ser submetida a perguntas que vão variar em cada época. Senão, o que fazer no caso de povos que têm suas histórias orais e mitos de origem “negados” pelos dados de testes de ancestralidade genômica? A necessidade de retomar a discussão sobre diferentes epistemologias e produção de conhecimento sobre temas caros a disciplinas diversas torna-se mais necessária do que nunca. Como já dizia Bloch (p.55):
Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre os quais muitos escapam à medida matemática. Para bem traduzi-los, portanto, para bem penetrá-los (pois será que se compreende alguma vez perfeitamente o que não se sabe dizer?), uma grande finesse de linguagem é necessária. Onde calcular é impossível, impõe-se sugerir. Entre a expressão das realidades do mundo físico e a das realidades do espírito humano, o contraste é, em suma, o mesmo que entre a tarefa do operário fresador e a do luthier: ambos trabalham no milímetro; mas o fresador usa instrumentos mecânicos de precisão; o luthier guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade do ouvido e dos dedos. Não seria bom nem que o fresador se contentasse com o empirismo do luthier, nem que este pretendesse imitar o fresador. Será possível negar que haja, como o tato das mãos, um das palavras?
Resta esperar o diálogo entre luthiers e fresadores.