versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1897
As β-talassemias são causadas por mutações dos genes que codificam a síntese de cadeias beta-globina, reduzindo ou tornando ausente a síntese dessas cadeias. O excesso relativo de síntese de cadeias alfa-globina provoca aumento da apoptose dos precursores eritroides, causando uma eritropoise ineficaz, expansão extramedular e esplenomegalia(1,2). Em conjunto com a redução da sobrevida das hemácias, essas anormalidades resultam em anemia. Indivíduos com as formas grave a moderada de β-talassemia aumentam sua absorção intestinal de ferro. A absorção intestinal de ferro, bem como sua reciclagem, é regulada pela hepcidina. A concentração de hepcidina é baixa nos portadores de β-talassemia e não aumenta, independentemente das transfusões de hemácias realizadas nesses indivíduos. Níveis baixos de hepcidina estimulam a absorção e a estocagem de ferro(1).
O ferro habitualmente é transportado ligado à transferrina e tipicamente se liga a 30% de todos os sítios de ligação dessa proteína. Pacientes com β-talassemia podem desenvolver acúmulo de ferro além da capacidade de ligação das proteínas carreadoras do ferro, gerando acúmulo de ferro plasmático lábil (LPI, do inglês labile plasma iron). Esse ferro livre causa dano oxidativo nos tecidos, resultando em morbidade e mortalidade(1).
As β-talassemias são prevalentes em populações do Mediterrâneo, Oriente Médio, Transcáucaso, Ásia Central, subcontinente indiano e no Extremo Oriente. São comuns também em populações de herança africana. A alta frequência do gene das β-talassemias nessas regiões provavelmente está relacionada à pressão seletiva da malária. Essa distribuição é muito semelhante à da endemia de malária causada pelo Plasmodium falciparum. Contudo, em função da migração populacional e, com importância limitada, o tráfego de escravos, as β-talassemias atualmente também são comuns no norte da Europa, Américas do Norte e do Sul, no Caribe e na Austrália(2,3).
Estima-se que, no Brasil, existam cerca de 500 pacientes portadores de β-talassemia major, entretanto acredita-se que esse número esteja subestimado, uma vez que, segundo essa estimativas, os pacientes estão concentrados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste(4).
Transfusões regulares para manter um nível de hemoglobina ao redor de 9-10 g/dL começaram a ser instituídas a partir de 1960, como tratamento padrão de portadores de talassemia major e alguns casos de talassemia intermedia. Essa terapia proporcionou uma boa qualidade de vida a curto prazo, mas as mortes por sobrecarga transfusional de ferro aconteciam nos indivíduos entre 12 e 24 anos de idade(5).
Os pacientes recebem em média 3 unidades de concentrado de hemácias, em intervalos de 3 a 4 semanas, totalizando cerca de 39 unidades de hemácias/ano. Estima-se que cada unidade contenha cerca de 200 a 250 mg de ferro. Dessa forma, calcula-se que o acúmulo médio seja de 7,8 g de ferro ao final de 1 ano, em adição ao aumento de absorção intestinal. O organismo humano não possui mecanismos para excreção de ferro. O uso crônico transfusões regulares causa uma sobrecarga de ferro e lesões de diversos órgãos, como coração, fígado, baço, pâncreas, hipófise, cérebro e medula óssea(6).
Ainda hoje, a causa mais comum de morte em pacientes com talassemia major é a insuficiência cardíaca secundária à sobrecarga de ferro. Essa cardiopatia pode ser prevenida ou revertida, se forem utilizadas drogas que reabsorvem o ferro depositado nos tecidos. No entanto, o diagnóstico de depósito anormal de ferro com métodos como ecocardiograma e eletrocardiograma, somente detectam alterações quando os pacientes já apresentam sintomas(7,8).
A decisão terapêutica de uso e acompanhamento de quelantes baseada nos níveis de ferritina, nem sempre mostra correlação direta entre os níveis laboratoriais e o grau de depósito de ferro tecidual. Muitas vezes, os níveis de ferritina podem estar expressando situações inflamatórias ou mesmo lesão hepática(9).
A ressonância nuclear magnética (RNM) T2* tem sido utilizada como método direto de monitoração de ferro depositado no miocárdio, assim como no fígado e em outros tecidos. Vários trabalhos demonstram seu alto poder preditivo para detectar precocemente depósito de ferro nesses diversos órgãos, antes que o dano tecidual comprometa a função dos mesmos(7–11).
Descrever os resultados encontrados por meio da realização de RNM T2* na mensuração do ferro cardíaco, hepático e pancreático, utilizando uma técnica de medida do T2*, bem como suas correlações com níveis séricos de ferritina e LPI, na população de talassêmicos brasileiros, até então não estudados por essa metodologia.
Foram analisados os resultados da primeira RNM realizada por 115 pacientes (102 com talassemia major e 13 com talassemia intermedia dependentes de transfusão) no período de Março de 2004 a Agosto de 2007.
Todos os pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein.
Todas as RNM foram realizadas no Hospital Israelita Albert Einstein em São Paulo (SP).
O sistema de imagem MR 1,5 T (General Electric, Milwaukee, Wisconsin, USA) foi usado com uma técnica de medida de T2*, para quantificação do ferro. Para os dados da imagem cardíaca (análise funcional e T2*), foi utilizado o software Report Card V3.3 (General Electric, Milwaukee, Wisconsin, USA).
Todos os pacientes foram submetidos a multieco (8 ecos, espaço eco de 8 mm), sequência gradiente-eco RNM para o coração (visão do eixo curto), e no plano axial do abdome superior para o fígado, pâncreas e baço. As regiões de interesse (ROIs) para cálculo de T2* foram traçadas no septo interventricular cardíaco, fígado, pâncreas e parênquima esplênico.
A musculatura paraespinhal foi também avaliada para análise, bem como a relação do sinal de intensidade (SIR) no pâncreas/músculo paraespinhal em T2*. A fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) foi mensurada por técnicas padrão de RNM.
Os decaimentos em crescente da intensidade do sinal na RNM foram medidos em tempo de eco.
A sobrecarga de ferro nos tecidos escurece rapidamente e a meia-vida de decaimento do sinal (escurecimento da imagem) foi usada para quantificar o conteúdo de ferro. O resultado foi expresso em milissegundos (ms), como tempo T2*. T2* mais curtos se relacionam a um elevado conteúdo de ferro.
Os valores normais de T2* para o fígado, o pâncreas e o coração usados no estudo foram baseados em dados de estudos prévios(12,13).
A sobrecarga de ferro no pâncreas foi estimada por meio da correlação entre os valores de T2* (SIR) de cada paciente e a musculatura paraespinhal, que não foram afetados pela deposição de ferro e foram considerados como referência normal (padrão interno). A sobrecarga de ferro do pâncreas pode ser considerada quando a relação pâncreas/musculatura paravertebral (SIR) em pacientes talassêmicos < 1(13).
A precisão e a acurácia das medidas T2* RNM foram avaliadas medindo-se uma série de soluções de MnCl2 com diferentes concentrações, conforme já descrito, para a calibração do phantom. Medidas de T2* para uma série de dez soluções aquosas de MnCl2 do phantom, com uma variação de concentração iônica resultante em valores teóricos de T2* de 1 a 24 ms, foram feitas nos escâneres CHLA (um escâner) e HIAE (três escâneres).
Com objetivo de realizar uma validação interna, 11 pacientes talassêmicos (idades entre 12 e 23 anos), que tiveram indicação de seus médicos para realizar biópsia hepática com objetivo de investigar sobrecarga férrica ou outras lesões hepáticas, foram submetidos ao estudo de RNM T2*. As amostras foram embebidas em parafina e avaliadas no Centre Hospitalier Universitaire de Rennes, Laboratoire de Biochimie Pr. A. Le Treut Rennes, France. As amostras eram separadas do bloco de parafina embebidas em xileno. A quantificação da concentração de ferro por grama de tecido seco de fígado foi realizada utilizando-se a técnica de espectrometria de absorção atômica, de acordo com o método de Barry and Sherlock(14).
Antes da realização da RNM, os pacientes submetiam-se à coleta de amostras sanguíneas, para a dosagem dos níveis séricos de ferritina e LPI.
A dosagem de ferritina sérica foi realizada pelo método de quimiluminescência (valor normal de 10 a 291 ng/mL). A média das dosagens de ferritina dos últimos 6 meses foi utilizada para análise estatística.
Os níveis de LPI foram mensurados por meio do método de fluorescência. São considerados níveis normais de LPI valores < 0,6 μM(15).
Para minimizar os erros intraobservador, todos os exames foram analisados por dois radiologistas, que, em consenso, calculavam os valores de T2* das RNM. Quando artefatos impossibilitavam as análises, os valores não eram registrados.
Houve casos de impossibilidade de realização do LPI, por problemas com envios de amostras ao centro de referência ou por amostras inadequadas. Por esse motivo, nem todos os pacientes obtiveram sua dosagem.
Análise estatística e figuras foram realizadas utilizando os software Statistical Package for Social Sciences (SPSS®) para Windows versão 17.0 e Microsoft® Office Excel 2003.
Os dados são apresentados como média ± 1 desvio padrão. Análises de regressão não linear foram usadas para estabelecer a correlação entre concentração hepática de ferro medida nas biópsias hepáticas e as medidas de T2* hepático. Coeficiente de correlação de Pearson e Spearman foi usado para estabelecer o grau de correlação entre os valores de T2* do coração, do fígado, do pâncreas, entre si, bem como a correlação entre T2* desses órgãos e os valores séricos de ferritina e LPI.
O teste de Mann-Whitney foi usado para avaliar o nível de signifi cância entre os diferentes parâmetros do estudo.
Analisando-se os valores de concentração hepática de ferro no fígado encontrados nas biópsias hepáticas e correlacionando-os aos valores de T2* dos estudos de RNM, encontrou-se uma relação não linear inversa entre os valores de T2* hepático e as concentrações de ferro medidas pela biópsia hepática, na amostra de 11 pacientes que foram biopsiados (r = −0.878, p < 0.001) (Figura 1A). Em escala logarítmica, as medidas são altamente correlacionadas (quanto maior o log do T2* menor o log da concentração de ferro). Assim, foi possível estimar satisfatoriamente a concentração de ferro a partir do valor de T2* obtido na ressonância. Segundo o modelo de regressão linear, a cada acréscimo de uma unidade no log T2* há uma redução de 1,12 unidades no log da concentração hepática de ferro (HIC) (intervalo de confiança – IC 95%: 0,73-1,51) (Figura 1B). Esses dados foram importantes para a validação da metodologia instituída no estudo, já que demonstraram que conseguimos obter reprodutibilidade de estudos pregressos.
Figura 1 (A) Curva de regressão demonstrando uma forte correlação entre a medida de T2* hepático (ms) e a concentração de ferro nas biópsias de tecido hepático (mg/g peso seco de fígado). (B) Existe uma forte correlação entre as duas variáveis após transformação logarítmica
Foram avaliados 115 pacientes portadores de β-talassemia major e intermedia. Destes, 65 (56,6%) eram do sexo feminino. A média de idade foi de 21,25 anos (7 a 54 anos).
Sobrecarga de ferro foi defi nida para valores de T2* fígado, coração e pâncreas: T2* < 6,3 ms, T2* < 20 ms e T2* < 21 ms, respectivamente, considerando valores defi nidos em trabalhos publicados previamente(5,10).
Os valores médios de T2* mensurados no fígado foram de 3,91 ± 3,95 ms. Cento e cinco pacientes (92,1%), de um total de 114 avaliações de medida de T2* hepático, apresentavam-se com sobrecarga nesse órgão. Convertendo tais valores em HIC, por meio da fórmula: HIC = R2* x 0,0254 + 0,202, sendo R2* = 1/T2* x 1.000, obtivemos valores de HIC que variaram de 1,0 a 42,5 mg/g de peso seco. Os valores médios de HIC foram de 9,8 ± 5,2 mg/g de peso seco. Nesse caso, o índice de pacientes com sobrecarga de ferro chegou a 114 pacientes (97,3%), uma vez que consideramos sobrecarga hepática valores de HIC >2,0 mg/g de peso seco. Classificamos a sobrecarga de ferro hepática de acordo com HIC em mg/g de peso seco, nas formas leve (HIC: 2,0-5,6), moderada (HIC: 5,7-11,2) e grave (HIC > 11,2). Nossos dados mostram que 19 pacientes (16,6%) apresentaram sobrecarga leve; 52 (45,6%), sobrecarga moderada; e 40 (35%), sobrecarga grave de ferro no fígado.
Os valores médios de T2* mensurados no coração em 115 pacientes foram 24,96 ± 14,17 ms e a incidência de siderose cardíaca (T2* < 20 ms) foi de 36% (42/115). Destes, 22 (19%) pacientes do total de 115, já demonstravam sinais de sobrecarga grave no coração, expressada por medidas de T2* < 10 ms.
Sobrecarga de ferro também foi bastante frequente no pâncreas, acometendo 91/109 pacientes analisados, representando 83,5% da população estudada. O valor médio de T2* nesses 109 pacientes foi 11,12 ± 11,20 ms. Os valores médios foram compilados na tabela 1.
Tabela 1 Média do valores de T2*(ms) hepático, cardíaco e pancreático e proporção de pacientes acometidos
Valores | Fígado Normal T2* > 6.3ms | Coração Normal T2* > 20 ms | Pâncreas Normal T2* > 21 ms |
---|---|---|---|
T2* (ms) | 3,91 ± 3,05 | 24,96 ± 14,17 | 11,12 ± 11,20 |
%pacientes acometidos | 92,1% (105) | 36% (42) 19% (22)§ | 83,5% (91) |
Total de pacientes avaliados# | 114 | 115 | 109 |
Valores expressos em média ± desvio padrão
§T2* < 10 ms - sobrecarga cardíaca grave;
#as medidas que não apresentavam concordância entre os 2 operadores ou situações em que artefatos impossibilitaram a mensuração do T2* não foram registradas.
O coeficiente de correlação de Spearman entre os valores de T2* do fígado e coração foi de r = 0,149 (p = 0,112) e entre T2* fígado e pâncreas de r = 0,249 (p = 0,009). Esses valores indicam que não houve correlação entre sobrecarga de ferro hepática e sobrecarga cardíaca ou pancreática.
Entre pâncreas e coração, o coeficiente de correlação foi de r = 0,546 (p < 0,0001). Esse valor mostra que existe uma correlação discreta entre os dois órgãos e ela foi mais forte após a transformação logarítmica do T2* pancreático (Figura 2A e 2B).
Figura 2 (A) Correlação entre T2* cardíaco e pancreático. (B) Correlação entre T2* cardíaco e log T2* pancreático
Dividimos a população em jovens (≤ 20 anos) e adultos (21 anos) e analisamos se existia diferença no acometimento dos órgãos de acordo com essas faixas etárias. Os grupos eram praticamente iguais, com 58 pacientes na faixa etária até 20 anos e 57 maiores que 21 anos. Os valores de T2* hepático, cardíaco e pancreático não apresentavam aumento com a idade e ambas as populações eram igualmente afetadas. Os valores estão descriminados na tabela 2.
Tabela 2 Valores de T2*(ms) hepático, cardíaco e pancreático, de acordo com faixas etárias (jovens e adultos)
T2* (ms) | Adultos (> 21 anos) | Jovens (≤ 20 years) | Valor p* |
---|---|---|---|
Fígado | 4,38 ± 4,75 | 3,44 ± 2,92 | 0,671 |
Coração | 24,77 ± 16,03 | 25,15 ± 12,21 | 0,795 |
Pâncreas | 12,91 ± 13,83 | 9,5 ± 7,88 | 0,959 |
Valores expressos em média ± desvio padrão.
*Teste de Mann-Whitney
Os valores das médias do nível sérico de ferritina dos últimos 6 meses variaram de 59 a 12.362 (média de 2.676,5 ± 2.051,7 ng/mL). Os coeficientes de correlação de Spearman foram: −0,397 (p < 0,001) entre níveis séricos de ferritina e T2* fígado; −0,220 (p = 0,019) entre ferritina e T2* cardíaco e −0,295 (p = 0,002) entre ferritina e pâncreas. Nossos resultados mostraram que siderose hepática, cardíaca e pancreática não podem ser preditas pelos níveis séricos de ferritina.
Mensuração dos níveis de LPI foi realizada em 83 dos 115 pacientes. As medidas de atividade redox do LPI (normal até 0,6) variaram de 0,001-11,455 e os resultados estavam alterados em 48/83 (57%). Assim como a ferritina, não encontramos correlação entre os níveis de LPI e as medidas de T2* do fígado, coração e pâncreas. O coeficiente de correlação de Pearson foi de: −0,259 (p = 0,019); 0,019 (p = 0,866) e −0,022 (p = 0,846) entre LPI e T2* do fígado, coração e pâncreas, respectivamente. Ferritina e LPI também não demonstraram correlação entre si.
As manifestações clínicas relacionadas à sobrecarga de ferro, os sintomas e sinais clínicos dependem do tipo de sobrecarga de ferro (primária ou secundária), sobretudo da quantidade de ferro em excesso, da velocidade de instalação do acúmulo de ferro e do tempo de exposição do organismo ao ferro livre. Os sintomas iniciais são geralmente inespecíficos, sendo que os mais comumente referidos são: fadiga, artralgia/artrite, dor abdominal, diminuição da libido ou impotência, perda de peso. Os sinais clínicos mais frequentes ao diagnóstico são: hepatomegalia, esplenomegalia, baixa estatura e artropatia. Com o decorrer do tempo e sem a instituição de tratamento adequado, outros sintomas e sinais somamse àqueles, como: fibrose portal, já observada após 2 anos de transfusão; cirrose hepática e insuficiência hepática; adelgaçamento e hiperpigmentação da pele (decorrente do aumento da melanina nas camadas basais, aliado à atrofia da pele). Das manifestações endócrinas, destacamse hipogonadismo hipogonadotrófico, diabetes mellitus (secundário ao acúmulo excessivo de ferro nas células beta-pancreáticas e ao desenvolvimento de resistência à insulina) e hipotireoidismo. As principais alterações relacionadas ao hipogonadismo hipogonadotrófico incluem: diminuição da libido, impotência, amenorreia, atrofia testicular, ginecomastia e queda de pelos corporais. Essas alterações resultam primariamente da diminuição da síntese de gonadotropinas resultante do acúmulo excessivo de ferro na hipófise e no hipotálamo(2,9,13,16).
Atualmente, as complicações cardíacas ainda são responsáveis por 54% das mortes nos pacientes com talassemia major no Reino Unido. Modell et al., em estudo recente, entretanto, perceberam uma redução significativa nas causas de morte como um todo, mas especialmente daquelas atribuídas à sobrecarga férrica após o ano 2000. Esses mesmos autores são enfáticos em afirmar, em suas análise, que a utilização da RNM T2* na prática médica é um dos principais fatores que contribuíram pra esse declínio de mortalidade, já que, por meio dos resultados obtidos pela RNM, houve uma intensificação dos esquemas de quelação(5). Assim, o órgão-alvo letal é o coração. Uma vez instalada a insuficiência cardíaca, o prognóstico tende a piorar. A cardiomiopatia pode ser reversível se a terapia quelante for intensificada a tempo, mas o diagnóstico é frequentemente retardado devido à imprevisibilidade da deposição de ferro cardíaco, bem como início tardio de sintomas e achados ecocardiográficos. O diagnóstico precoce da cardiomiopatia por técnicas clínicas, como a ecocardiografia, eletrocardiograma e medicina nuclear, tem tido sucesso limitado. A disfunção, em geral, apresenta-se tardiamente no processo da doença, e a progressão de parâmetros moderados para insuficiência fulminante são frequentemente rápidos e irreversíveis. Sem uma intensa terapia quelante, estes pacientes sucumbem, geralmente, de complicações cardíacas e endócrinas na segunda década de vida(17).
As variações da ferritina sérica são úteis dentro do seguimento da resposta à terapia, são relativamente baratas e amplamente disponíveis. No entanto, a ferritina pode sofrer intensas variações em estados inflamatórios, instituindo-se em fator confusional, dando estimativas não acuradas do ferro corpóreo total em alguns pacientes(9,10,18). Nossos resultados demonstraram, assim como descritos na literatura, que a ferritina não apresentou correlação com os achados da RNM, o que é esperado na análise cardíaca e pancreática, mas quando comparados com valores hepáticos, a literatura é bastante discordante, já que alguns autores encontram uma boa correlação entre valores de ferritina e sobrecarga hepática e outros não(7,19–21).
Embora a concentração hepática de ferro seja um bom marcador para a avaliação do ferro corpóreo total, a maioria das ações tóxicas ocorre em tecidos que se impregnam de maneira desproporcional àquela do ferro corpóreo total. Esses tecidos têm diferentes maneiras de impregnação pelo ferro(22,23). No tecido endócrino e no coração, impregnam-se as partículas lábeis de ferro, não ligadas à transferrina (NTBI ou LPI), enquanto o fígado capta principalmente o ferro via transferrina(22). Assim, a ferritina sérica e os valores de ferro hepático quase não têm valor preditivo na deposição cardíaca de ferro, quando avaliados de maneira transversal(7,8,24)
Altas concentrações hepáticas de ferro levam a suspeição de risco para os pacientes, prospectivamente. No entanto, baixas concentrações não são necessariamente tranquilizadoras. Os pacientes podem acumular ferro cardíaco de maneira silenciosa, mesmo com a utilização de protocolos adequados de quelação, levando-se em consideração os valores de ferritina sérica e do ferro hepático(25,26).
A habilidade da ressonância em detectar e monitorar a impregnação cardíaca silente tem realmente revolucionado o manejo dos pacientes com sobrecarga férrica(5).
A prevalência de disfunção do ventrículo esquerdo aumenta progressivamente conforme cai o T2*, entretanto nem todos os pacientes com T2* abaixo de 20 ms têm alteração na fração de ejeção. A utilidade dessa informação está no fato de que T2* anormais representam estágios pré-clínicos de sobrecarga cardíaca de ferro. Westwood et al. demonstraram um aumento na prevalência de disfunção cardíaca nos pacientes com T2* curtos(27).
De maneira prática, Wood(10) dividiu os pacientes em três zonas baseando-se nos valores de T2*. Os pacientes com T2* cardíaco acima de 20 ms estão na “zona verde” e a quelação é guiada pelas concentrações hepáticas. Os pacientes com T2* entre 10 e 20 ms estão na “zona amarela,” na qual a deposição já ocorreu e existe um risco maior de descompensação clínica. Na “zona vermelha” estão os pacientes com T2* abaixo de 10 ms, na qual o risco de descompensação clínica é eminente, necessitando eventual revisão e intensificação no protocolo de quelação(10).
Nossos achados são alarmantes, quando se percebe que 36% dos indivíduos estudados já apresentam sobrecarga férrica cardíaca e, mais ainda, quando 19% dessa população encontra-se na “zona vermelha” (T2* < 10ms), considerada a faixa crítica de risco para lesão cardíaca irreversível e complicações que podem levar à morte. Nesses casos em particular, a informação obtida pela RNM deve ser utilizada, e protocolos intensivos e, muitas vezes, terapia combinada devem ser utilizados para evitar lesão cardíaca definitiva com evolução para fibrose miocárdica(23–25,28).
Os distúrbios endócrinos decorrentes da sobrecarga de ferro também são frequentes e acredita-se que 9 a 15% dos pacientes talassêmicos desenvolverão diabetes mellitus ou intolerância à glicose ao longo de suas vidas. Percebe-se falência tanto da função endócrina como exócrina do pâncreas(9,12,13,29). Semelhante aos achados de estudo asiáticos, africanos e europeus, nossos dados também demonstram importante comprometimento do pâncreas pelo ferro (83% dos indivíduos acometidos)(9,12,13,29). Quando analisamos a sobrecarga férrica no pâncreas comparando jovens e adultos não encontramos diferenças, semelhante aos achados descritos por Matter et al., cujos pacientes já demonstravam alterações antes dos 10 anos de idade(29). Argyropoulou et al. também descreveram valores menores de T2 (técnica diferente da utilizada por nós) em pacientes jovens quando comparados a adultos e acreditavam que o fato devia-se a um acometimento bastante precoce desse órgão pelo ferro; em decorrência desse fato, ocorria morte celular e, na sequência, uma lipossubstitução do tecido pancreático, que faz com que os valores de T2* possam aumentar ao invés de decair, mas não demonstravam melhor situação funcional desse órgão, ao contrário, esse seria o estágio final(9). Apesar de não ter um alto valor de correlação, percebemos que assim como em outros estudos, podemos predizer o acometimento cardíaco por meio do comprometimento pancreático. Em 2009, Noetzli et al.(30) demonstraram ser possível predizer siderose cardíaca por meio dos achados de RNM do pâncreas com uma década de antecedência; dessa forma, seria possível inicialmente realizar apenas a RNM de abdome com redução de custos. Infelizmente, nossos dados não nos permitem afirmar que, em nosso meio, poderíamos realizar somente a RNM abdominal, conforme sugerido, o que teria um impacto econômico substancial num país em desenvolvimento como o nosso, onde o principal patrocinador da saúde é o sistema público.
LPI, uma fração do ferro não ligado à transferrina (NTBI) mais recentemente tem sido considerado útil no controle da quelação, uma vez que não foi possível determinar correlações entre dosagem de LPI e os achados de RNM, semelhante aos nossos dados. Os trabalhos mais recentes descrevem que, após uso de terapia quelante, seja com deferoxamina ou deferasirox, os níveis de LPI devem se manter baixo durante 24 horas, demonstrando que a medicação está sendo efetiva não só na excreção do excesso de ferro, mas também mantendo níveis baixos de ferro livre na circulação e, com isso, reduzindo a toxicidade dos órgãos, em especial do miocárdio e do sistema endócrino(15,31).
Nosso estudo demonstrou uma elevada taxa de acometimento hepático, pancreático e cardíaco por sobrecarga férrica. Ressalta-se que 19% dos pacientes demonstraram níveis de T2* < 10 ms, o que é bastante preocupante, pois se trata-de níveis mais críticos em relação à siderose cardíaca. A relevância desse estudo foi traçar um panorama da situação desses indivíduos em relação à sobrecarga de ferro, para que medidas de tratamento possam ser intensificadas e melhoradas, atingindo, assim como em outros países, uma melhor e maior sobrevida para os pacientes talassêmicos.
Uma elevada taxa de acometimento hepático, pancreático e cardíaco por sobrecarga férrica foi demonstrada. Os níveis de ferritina não puderam prever sobrecarga de ferro hepático, cardíaco ou pancreáticos medidos por meio da ressonância nuclear magnética T2*. Não houve correlação entre a sobrecarga de ferro no fígado, pâncreas e miocárdio, nem entre a ferritina e os níveis plasmáticos de ferro sérico e os valores de T2* no fígado, coração e pâncreas.