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Sobrecarga em cuidadores de usuários de um centro de atenção psicossocial infanto-juvenil no sul do Brasil

Sobrecarga em cuidadores de usuários de um centro de atenção psicossocial infanto-juvenil no sul do Brasil

Autores:

Clarisse de Azambuja Farias,
Pedrita Oliveira Conde Lima,
Lidiane Aguiar Ferreira,
Ana Laura Sica Cruzeiro,
Luciana de Avila Quevedo

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.12 Rio de Janeiro dez. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320141912.19182013

ABSTRACT

The scope of this article is to compare the work overload averages among caregivers assisting frequenters of a Psychosocial Care Center for children and adolescents (CAPSi) in Pelotas-Brazil in relation to the mental health of the children and adolescents and the caregivers themselves. It involved a cross-sectional study conducted with the primary caregiver of CAPSi frequenters. The work overload was evaluated using the Zarit Burden Interview scale and the mental health problems of frequenters were assessed using the Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ). To verify the presence of common potential mental disorders of caregivers, a Self-Report Questionnaire (SRQ-20) was used. T-test and ANOVA was used for data analysis. The average work overload was significantly higher in caregivers of frequenters with behavioral problems (p = 0.000), hyperactivity (p = 0.001) and relationship problems with peers (p = 0.001). IT was also significantly higher among those classified as potential cases of common mental disorders (p = 0.000); women caregivers (p = 0.032) and those with past problems with the Judiciary and/or Guardianship Council involving a frequenter (p = 0.039). The importance of work geared to caregivers to enhance the quality of care and quality of life of the caregivers themselves should be highlighted.

Key words: Overload; Caregiver; Mental health; Childhood; Adolescent

Introdução

Nos últimos anos, vem aumentando a necessidade de espaços destinados ao cuidado da saúde mental infanto-juvenil, pois no Brasil, estima-se que de 10% a 20% de crianças e adolescentes sofrem de transtornos mentais e que de 3% a 4% necessitam de cuidado intensivo1. Assim, hoje, pode-se contar com o Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil (CAPSi), o qual tem sido considerado um importante dispositivo comunitário de atenção a saúde mental de crianças e adolescentes (03 a 18 anos) portadores de sofrimento psíquico (PSP). Pode-se encontrar nesta população transtornos globais do desenvolvimento, transtornos neuróticos graves e psicóticos, bem como outros transtornos que causem prejuízos nas relações sociais1 , 2.

Ao mesmo tempo em que esta modalidade de assistência busca a reinserção social e a melhora da qualidade de vida do PSP, pode também acarretar sobrecarga familiar. Visto que a responsabilidade do cuidado deixou de ser exclusiva das instituições voltadas à saúde mental, passando a ser compartilhada com a família. O cuidado diário do PSP pode causar prejuízos nos familiares tanto na qualidade de vida quanto na saúde, principalmente, pelo fato de muitos cuidadores ajustarem suas rotinas em torno da doença, deixando de lado suas atividades sociais, profissionais e até mesmo o seu próprio cuidado3 - 5. Considera-se o cuidador principal a pessoa que pertence ao convívio familiar do PSP, a qual passa a maior parte do tempo sendo responsável pelo cuidado, exercendo este papel sem qualquer tipo de remuneração econômica6.

A sobrecarga do cuidador tem sido definida em objetiva e subjetiva. A primeira refere-se a efeitos negativos concretos decorrentes da conduta e sintomas do PSP sobre a organização habitual da vida de seu responsável. Caracteriza-se por um conjunto de efeitos adversos no que diz respeito à saúde, à situação financeira e ao convívio social, bem como perturbações nas relações entre os membros da família. Já os aspectos subjetivos incluem a percepção que o próprio cuidador faz sobre o cuidado e de como se sente emocionalmente diante desta responsabilidade7. Portanto a sobrecarga é um fator que influencia diretamente no manejo do cuidado e na qualidade de vida de quem é responsável pelo PSP8.

Estudos mostram que entre os fatores associados a maiores níveis de sobrecarga estão algumas características do próprio cuidador de PSP como: sexo, idade, escolaridade9, o grau de parentesco9 , 10 e a presença de transtornos mentais9 - 13. Contudo, outros ressaltam que a sobrecarga do cuidado, bem como o da presença de problemas de comportamento do PSP, torna os cuidadores mais suscetíveis a apresentarem sintomas depressivos e ansiosos14 , 15.

A literatura já evidencia a sobrecarga em cuidadores de pacientes esquizofrênicos5 , 7 , 16, com depressão11 e portadores de demência10 , 17. Estudo realizado com cuidadores de PSP que frequentam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) verificou que cuidadores de usuários com esquizofrenia, retardo mental, transtorno não especificado, abuso de substâncias e transtornos de personalidade apresentaram maiores níveis de sobrecarga do que os cuidadores de usuários com transtornos neuróticos e de humor9.

No que diz respeito aos cuidadores da população infantil PSP, pesquisa direcionada a estes evidenciou que o auxílio cotidiano e preocupações com a criança estiveram relacionados à sobrecarga objetiva e subjetiva, respectivamente18. Tais evidências igualmente foram encontradas em um estudo com cuidadores de jovens adultos PSP16. Foi visto também que preocupações quanto ao futuro da criança PSP, bem como o cansaço que causam perante as suas demandas e o ressentimento na família tendem a estar relacionados ao estresse parental, no que se refere à sobrecarga emocional em cuidadores de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)19.

Diante da nova proposta de cuidados voltada para a reabilitação e reintegração social dos PSP houve um aumento no interesse de avaliar a saúde e a qualidade de vida dos cuidadores. Contudo são escassos os estudos que apontam os fatores associados à sobrecarga de cuidadores de crianças e adolescentes PSP, bem como a relação desta com os problemas de saúde mental da população infanto-juvenil. Partindo do princípio de que os familiares e/ou responsáveis são figuras fundamentais no processo de tratamento de PSP, principalmente quando o cuidado é direcionado a crianças e adolescentes, o presente estudo teve por objetivo comparar as médias de sobrecarga de cuidadores de usuários do CAPSi da cidade de Pelotas (RS) em relação à saúde mental de crianças e adolescentes e a do próprio cuidador.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, com cuidadores de crianças e adolescentes usuários do CAPSi. A seleção amostral foi realizada por conveniência, tendo como critério de inclusão entrevistar o principal cuidador das crianças e dos adolescentes, ou seja, a pessoa que fica mais tempo e que tem maior responsabilidade no cuidado dos usuá rios do CAPSi. O estudo teve como critério de exclusão aquelas crianças e adolescentes que estivessem vivendo em abrigos, por não terem um principal responsável, bem como os cuidadores que não conseguissem entender os instrumentos.

Os dados das crianças e dos adolescentes que estavam frequentando o CAPSi foram levantados no mês de março de 2013. Após a identificação, foi realizado contato telefônico para informar aos cuidadores sobre o objetivo do estudo e agendar as entrevistas. As entrevistadoras foram graduandas do curso de Psicologia da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), as quais receberam treino prévio. Os encontros foram realizados em salas disponibilizadas pela coordenação do CAPSi e pela UCPel. As entrevistas foram realizadas no período de abril a maio de 2013 com todos os cuidadores ativos no CAPSi que aceitaram participar do estudo.

Para avaliar a sobrecarga dos cuidadores, utilizou-se a escala Burden Interview (BI), validada para o Brasil, a partir da versão original, por Scazufca11. Este instrumento é composto por 22 itens que avaliam a sobrecarga em relação à incapacidade funcional e comportamental da pessoa que está sendo cuidada. Possibilita que os cuidadores reflitam sobre como se sentem em relação ao cuidado no que diz respeito às áreas da saúde, vida pessoal, apoio e desempenho de atividades sociais, bem-estar emocional, relacionamento interpessoal e situação financeira.

O instrumento avalia a sobrecarga nas dimensões objetivas e subjetivas, contudo não fornece escores independentes. Os itens são pontuados em uma escala de 0 a 4, sendo 0 = nunca, 1 = raramente, 2 = algumas vezes, 3 = frequentemente e 4 = sempre. O último item da escala refere-se quanto o cuidador se sente sobrecarregado de uma maneira geral, tendo como opções de resposta 0 = nem um pouco, 1 = um pouco, 2 = moderadamente, 3 = muito e 4 = extremamente. As pontuações obtidas podem diversificar entre 0 a 88 pontos. A sobrecarga mais alta corresponde à maior pontuação total.

Em relação aos problemas de saúde mental das crianças e dos adolescentes que frequentavam o CAPSi no período da pesquisa, inicialmente foram consultados os diagnósticos, baseados na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), nos prontuários. Como havia certa dificuldade com os registros, principalmente devido ao fato do diagnóstico nessa fase do desenvolvimento ser mais difícil de ser firmado, optou-se por aplicar nos cuidadores o questionário Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ). O instrumento foi desenvolvido por Goodman20 validado para o Brasil por Fleitlich et al.21.

O SDQ é um questionário que permite fazer o rastreamento de problemas de saúde mental de crianças e adolescentes. Avalia sintomas emocionais, problemas de conduta, hiperatividade, problemas de relacionamento com colegas e comportamento pró-social. O instrumento é composto por 25 itens ordenados em 5 escalas, contando com 5 itens cada. Há três opções de respostas que variam entre mais ou menos verdadeiro, a qual geralmente é calculada como 1, verdadeiro e falso. Ambas as últimas variam o seu valor de acordo com o item. A pontuação para cada uma das 5 escalas pode variar entre 0 e 10. Quanto maior a pontuação nas escalas, maior o número de queixas, exceto na de comportamento pró-social. Todas as escalas são somadas, permitindo a classificação da criança em três categorias: Desenvolvimento Normal (DN), Limítrofe (DL) ou Anormal (DA). Devido à escala de comportamento pró-social não computar no escore de dificuldades totais, optou-se por não utilizá-la. Para análise dos dados optou-se em categorizar ausência de problemas (normal/limítrofe) e presença de problemas (anormal).

A saúde mental dos cuidadores foi avaliada através do Self-Report Questionnaire (SRQ-20), o qual foi validado para o Brasil, por Mari e Wiliams22. O instrumento possibilita fazer o rastreamento de transtornos mentais comuns como: depressão, ansiedade, distúrbios somatoformes e neurastenia. É composto por 20 itens, cada um destes apresentam duas opções de respostas referentes a concordar ou não (escores 0 e 1) com a presença de certas dores e problemas nos últimos 30 dias. As pontuações podem variar de 0 a 20, sendo que escores > 8, indicam possíveis casos de transtornos mentais comuns.

Além dos instrumentos citados, os cuidadores responderam a um questionário com variáveis sociodemográficas (sexo, idade, estado civil, estar trabalhando, número de filhos), socioeconômica, comportamentais (uso de álcool e tabaco), de saúde e relacionadas ao cuidado com o usuário. Para avaliar a classificação econômica foram utilizados os critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP)23, os quais são baseados no acúmulo de bens materiais e na escolaridade do chefe da família, classificando em cinco níveis (A, B, C, D e E), sendo A o nível mais alto e E o mais baixo.

Após a coleta de dados, estes foram duplamente digitados no programa Epi Info 6.04 para comparação e eliminação de inconsistências. O pacote estatístico SPSS 13.0 foi utilizado para a análise dos dados. A análise univariada foi realizada para descrever as características da amostra. A sobrecarga (BI) foi analisada através da comparação das médias utilizando-se o Teste t e ANOVA.

Todos os cuidadores que participaram do estudo assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, afirmando terem conhecimentos sobre a finalidade da pesquisa, sendo também assegurados quanto à confidencialidade de seus dados. Os cuidadores que foram classificados como possíveis casos de transtornos mentais comuns foram encaminhados para o Ambulatório de Pesquisas em Saúde Mental do Programa de Pós-graduação em Saúde e Comportamento da UCPel. Já os que estavam muito sobrecarregados foram orientados a procurarem a Unidade Básica de Saúde próxima ao seu domicílio. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da UCPel.

Resultados

Foram levantados os dados de 131 prontuários de crianças e adolescentes que estavam no registro de usuários do CAPSi. Dos 131, foram excluídos 7 (5,3%) por viverem em abrigos e 23 (17,5%) por já estarem desligados do serviço no período do levantamento. Resultando assim em 101 cuidadores a serem entrevistados. Destes cuidadores de usuários ativos no serviço do CAPSi, 7 (6,9%) se recusaram a participar do estudo e 4 (3,9%) foram perdas (falta de contato). Portanto a amostra total foi constituída por 90 cuidadores.

Em relação às características dos cuidadores, 95,6% eram mulheres; com idades entre 25 a 70 anos (média 43,1 dp ± 10,3); 38,9% eram casados ou viviam com o companheiro; 60% pertenciam à classe econômica C e 66,7% não trabalhavam. Quanto ao número de filhos 36% tinham de 4 a 8 filhos. A pontuação média na escala de sobrecarga dos cuidadores foi de 37,4 (dp ± 16,7). Esta foi significativamente maior entre as mulheres (p = 0,032) (Tabela 1).

Tabela 1 Características sócio demográficas e médias de sobrecarga de cuidadores de usuários do CAPSi. Pelotas-RS, 2013. 

Variáveis N (%) Média BI (desvio padrão) p-valor
Sexo 0,032
Feminino 86 (95,6) 38,2 (± 16,6)
Masculino 4 (4,4) 20,0 (± 5,2)
Idade 0,141
De 25 a 34 22 (24,4) 36,4 (± 13,6)
De 35 a 43 25 (27,8) 36,6 (± 19,3)
De 44 a 50 22 (24,4) 43,9 (± 17,4)
De 51 a 70 21 (23,3) 32,2 (± 13,9)
Estado Civil 0,382
Solteiro 32 (35,6) 37,7 (± 13,4)
Casado/ vive junto 35 (38,9) 34,4 (± 18,4)
Divorciado 16 (17,8) 43,2 (± 16,8)
Viúvo 7 (7,8) 36,4 (± 20,5)
Classe Econômica 0,068
B 5 (5,6) 21,2 (± 0,8)
C 54 (60,0) 37,5 (± 17,8)
D+E 31 (34,4) 39,7 (± 14,5)
Trabalha atualmente 0,607
Não 60 (66,7) 38,0 (± 16,0)
Sim 30 (33,3) 36,0 (± 18,1)
Número de filhos 0,413
De um a dois 31 (34,8) 39,9 (± 15,6)
Três 26 (29,2) 36,8 (± 16,8)
De quatro a oito 32 (36,0) 34,3(± 17,1)
Total 90 (100) 37,4 (± 16,7)

A Tabela 2 refere-se às características dos cuidadores em relação aos usuários do CAPSi. Do total de cuidadores, 80% eram mães; 94,4% eram familiares. Em relação ao cuidado, 61,1% tinham mais dependentes além do usuário; 48,9% cuidavam de quatro ou mais pessoas e 53,3% contavam com a ajuda de mais alguma pessoa no cuidado da criança ou adolescente PSP. As médias de sobrecarga não apresentaram diferenças significativas entre tais variáveis.

Tabela 2 Características relacionadas ao cuidado e médias de sobrecarga de cuidadores de usuários do CAPSi. Pelotas-RS, 2013. 

Variáveis N (%) Média BI (desvio padrão) p-valor
Cuidador Principal 0,174
Mãe 72 (80,0) 38,6 (± 16,8)
Outros 18 (20,0) 32,6 (± 15,5)
Tipo de relação com a criança 0,569
Familiar 85 (94,4) 37,6 (± 16,8)
Não familiar 5 (5,6) 33,2 (± 15,4)
Tem mais pessoas que dependem do cuidador 0,385
Não 35 (38,9) 35,4 (± 17,9)
Sim 55 (61,1) 38,6 (± 15,9)
Número de dependentes 0,111
Um 19 (34,5) 41,3 (± 15,2)
Dois 14 (23,5) 44,0 (± 11,4)
Três 13 (23,6) 38,4 (± 18,0)
Quatro ou mais 44 (48,9) 33,3 (± 17,6)
Tem alguém que ajuda o cuidador a fazer o cuidado 0,097
Não 42 (46,7) 40,5 (± 17,0)
Sim 48 (53,3) 34,6 (± 16,1)
Total 90 (100) 37,4 (± 16,7)

Quanto às características comportamentais e de saúde dos cuidadores, dos 90 participantes, 73,3% fumavam mais de 20 cigarros por dia e 12,2% ingeriam bebida alcoólica. No que diz respeito à saúde em geral 62,2% dos entrevistados mencionaram ter problemas de saúde. Em relação à saúde mental, 68,9% relataram problemas mentais; 34,4% já fizeram tratamento com psicólogo e/ou psiquiatra e 38,9% usavam psicofármacos. Verificou-se que 66,7% participantes apresentaram possíveis casos de transtornos mentais comuns e que a média de sobrecarga foi significativamente maior entre estes (p = 0,000). (Tabela 3)

Tabela 3 Características comportamentais e de saúde e médias de sobrecarga de cuidadores usuários do CAPSi. Pelotas-RS, 2013. 

Variáveis N (%) Média BI (desvio padrão) p-valor
Quantidade de cigarros que fuma por dia 0,400
Até cinco 7 (7,8) 29,7 (± 6,6)
De 6 a 12 8 (8,9) 31,8 (± 11,6)
De 13 a 20 9 (10) 40,7 (± 11,8)
Mais de 20 66 (73,3) 38,4 (± 18,2)
Bebe 0,422
Não 79 (87,8) 37,9 (± 16,8)
Sim 11 (12,2) 33,5 (± 15,8)
Problemas de saúde em geral 0,242
Não 34 (37,8) 34,7 (± 17,7)
Sim 56 (62,2) 39,0 (± 16,0)
Problemas de nervos 0,088
Não 28 (31,1) 32,9 (± 15,8)
Sim 62 (68,9) 39,4 (± 16,8)
Já fez tratamento com psicólogo e/ou psiquiatra 0,895
Não 59 (65,6) 37,1 (± 2,3)
Sim 31 (34,4) 37,6 (± 2,4)
Toma medicação para problemas de nervos 0,164
Não 55 (61,1) 35,4 (± 15,3)
Sim 35 (38,9) 40,4 (± 18,5)
Transtornos Mentais Comuns 0,000
Não 30 (33,3) 23,8 (± 9,3)
Sim 60 (66,7) 44,1 (± 15,4)
Total 90 (100) 37,4 (± 16,7)

Em relação às características das crianças e dos adolescentes, observou-se que as idades variaram entre 6 e 18 anos, sendo 12,1 a média de idade (dp ± 3,1). Quanto à escolaridade 96,7% estavam estudando; sendo que 55,6% encontravam-se entre 1ª e 4ª série. Do total de usuários, 34,4% já tiveram algum problema na Justiça e/ou Conselho Tutelar; 48,3% tinham sintomas emocionais; 77,8% problemas de conduta; 84,3% hiperatividade e 56,2% problemas de relacionamento com colegas. As médias de sobrecarga foram significativamente maiores nos cuidadores que tiveram problemas na Justiça e/ou Conselho Tutelar envolvendo a criança ou adolescente (p = 0,039) e entre aqueles que faziam o cuidado de usuários com problemas de conduta (p = 0,000), hiperatividade (p = 0,001) e problemas de relacionamento com colegas (p = 0,001). (Tabela 4)

Tabela 4 Características dos usuários do CAPSi e médias de sobrecarga dos cuidadores. Pelotas-RS, 2013. 

Variáveis N (%) Média BI (desvio padrão) p-valor
Idade 0,879
6 a 10 anos 28 (31,1) 37,0 (± 16,2)
11 a 12 anos 19 (21,1) 37,1 (± 14,1)
13 a 15 anos 31(34,4) 39,0 (± 19,0)
16 anos ou mais 12 (13,3) 34,4 (± 16,8)
A criança/adolescente estuda 0,447
Não 3 (3,3) 54,7 (± 33,0)
Sim 87 (96,7) 36,8 (± 15,9)
Série 0,699
1ª a 4ª 50 (55,6) 36,8 (± 15,5)
5ª a 8ª 37 (41,1) 38,7 (± 18,2)
2º grau 3 (3,3) 31,0 (± 19,1)
Problemas na Justiça ou Conselho Tutelar 0,039
Não 59 (65,6) 34,7 (± 16,9)
Sim 31(34,4) 42,4 (± 15,4)
Sintomas emocionais 0,207
Não 45 (51,7) 35,6 (± 18,6)
Sim 42 (48,3) 40,1(± 14,4)
Problemas de conduta 0,000
Não 20 (22,2) 24,2 (± 9,6)
Sim 70 (77,8) 41,1 (± 16,4)
Hiperatividade 0,001
Não 14 (15,7) 25,1 (± 11,4)
Sim 75 (84,3) 39,9 (± 16,5)
Problemas de relacionamento com colegas 0,001
Não 39 (42,8) 31,0 (± 14,2)
Sim 50 (56,2) 42,6 (± 16,9)
Total 90 (100) 37,4 (± 16,7)

Discussão

De acordo com os sintomas e os comportamentos verificados nos usuários do CAPSi da cidade de Pelotas, os transtornos do comportamento e os emocionais foram identificados como os mais predominantes nos registros de sete unidades do CAPSi, distribuídas em alguns estados do Brasil24. No presente estudo observou-se que os cuidadores de crianças e adolescentes com sintomas de hiperatividade, problemas de conduta e de relacionamento com colegas apresentaram maiores níveis de sobrecarga do que os cuidadores de usuá rios que portavam sintomas emocionais. Visto que os sintomas de hiperatividade e problemas de conduta se expressam de forma externalizada, por meio de atos comportamentais, muitas vezes relacionados à agressividade, pode-se pensar que tal externalização acarreta maior impacto negativo sobre o ambiente25 e maior nível de sobrecarga do cuidador.

Corroborando com os resultados encontrados, um estudo destinado a cuidadores da população infantil evidenciou que cuidadores de crianças com TDAH combinado e com TDAH e comorbidade com o Transtorno Opositor Desafiador (TOD) apresentaram mais estresse parental quando comparados com os cuidadores de crianças sem tais problemas. Sendo a sobrecarga emocional a dimensão de estresse que apresentou média mais alta entre os cuidadores de crianças com problemas de comportamento. O estudo verificou também que quanto maior a severidade dos sintomas de hiperatividade maior a sobrecarga emocional19.

Em relação aos problemas com colegas, muitas crianças e adolescentes PSP sofrem por não se enturmarem, podendo gerar certa resistência quanto ao ambiente escolar e dificuldades nos demais relacionamentos interpessoais. Isto pode acarretar a necessidade de auxílio cotidiano, provocando maior grau de dependência, bem como preocupações e maior sobrecarga do cuidador9 , 18. No que diz respeito à presença de sintomas emocionais, a prevalência destes foi menor comparada aos demais problemas avaliados. Pode-se pensar que pelo fato de tais sintomas serem mais internalizados, os quais são mais facilmente percebidos pelos próprios sujeitos, sem muita manifestação comportamental25, seja possível que muitos cuidadores não tenham os identificado com tanta clareza, bem como não tenham sentido um grande impacto destes em suas vidas.

Contudo, outra pesquisa destinada a verificar possíveis problemas na saúde mental em escolares de Ribeirão Preto (SP) evidenciou que de acordo com os pais os sintomas emocionais predominaram mais entre os escolares do que os problemas de conduta, hiperatividade e problemas de relacionamento interpessoal26. A diferença entre as percepções dos pais de escolares e dos cuidadores do presente estudo, pode ser pensada devido a maior intensidade das manifestações de comportamentos problemáticos dos usuários do CAPSi. Exigindo, assim, mais atenção dos cuidadores diante das possíveis consequências dos sintomas externalizados.

No presente estudo verificou-se que 66,7% dos cuidadores foram classificados como possíveis casos de transtornos mentais comuns e que a média de sobrecarga destes foi significativamente maior ao ser comparada com a dos que não foram classificados. Estes resultados são consistentes com a literatura que aponta que a presença de morbidades psiquiátricas nos cuidadores de crianças e adolescentes PSP está estatisticamente associada à sobrecarga13. Corroborando com estudos destinados a cuidadores de adultos jovens e adultos PSP9 - 12.

Observou-se também neste estudo, que as mulheres apresentaram maiores níveis de sobrecarga. Além de estas comporem a maior parte dos cuidadores, o que também foi reforçado em outros estudos5 , 9 - 13 , 16 - 18. Percebe-se que a demanda do cuidado principal ainda está direcionada às mulheres, o que contribui para o aumento da responsabilidade, tempo de dedicação, acarretando maiores níveis de sobrecarga9 , 18 , 27. Diante deste resultado, torna-se importante que haja maior participação da família para que o cuidado seja compartilhado, evitando possíveis efeitos danosos à qualidade de vida das mulheres28.

Outro resultado importante encontrado neste estudo foi que os cuidadores que tiveram problemas na Justiça e/ou Conselho Tutelar, envolvendo a criança ou adolescente, apresentaram média de sobrecarga significativamente maior do que os que não relataram tais problemas. Contudo, o presente estudo não descreveu os motivos que levaram a ocorrência destes problemas. Não foi encontrada na literatura tal associação, o que nos leva a pensar na necessidade de estudos futuros, destinados a este tema e a esta população de cuidadores.

O presente estudo apresenta algumas limitações a serem destacadas. Por se tratar de um estudo transversal não podemos fazer inferências causais. Não temos como afirmar se os transtornos mentais comuns foram desencadeados devido à sobrecarga do cuidado ou se a existência dos transtornos mentais comuns acarretou maior sobrecarga. Estudos longitudinais poderão contribuir positivamente para maior compreensão sobre a direção em que os fenômenos ocorrem, tal como considerado por outros autores14.

Em relação aos resultados, estes não podem ser generalizados à população geral de cuidadores de PSP, pois a amostra foi limitada aos responsáveis de usuários do CAPSi. No que diz respeito ao rastreamento de problemas de saúde mental das crianças e dos adolescentes, o presente estudo contou apenas com as informações obtidas pelo principal cuidador, podendo haver um viés na confirmação destas. Fazendo-se necessário mais de um informante, além de um método para combinar as informações.

Apesar das limitações, pode-se considerar que o presente estudo revela a importância de investigações relacionadas aos cuidadores de PSP. Destaca-se a necessidade de haver nos serviços de saúde mental coletiva a construção de dispositivos que possibilitem o apoio e que favoreçam a participação da família, desenvolvendo também trabalhos destinados a avaliarem o impacto do cuidado sobre a vida do cuidador e as suas necessidades. Além de proporcionarem orientações quanto à saúde, visto a alta prevalência de possíveis casos de transtornos mentais comuns e de tabagismo.

Quanto ao cuidado, torna-se pertinente a realização de grupos de familiares, visando proporcionar esclarecimentos sobre as formas de manejo do cuidado em relação aos transtornos mentais. Tal como a elaboração de estratégias que auxiliem os cuidadores a estimular as capacidades de socialização das crianças e adolescentes no âmbito familiar, o que irá contribuir para uma orientação diante aos comportamentos e o desenvolvimento da autonomia29. Estas e as demais formas de intervenções poderão contribuir para melhorar a qualidade do cuidado e da vida dos cuidadores. Os resultados deste estudo se tornam relevantes para os serviços e políticas de saúde mental, salientando a importância de apoiar e de estar atento à saúde dos cuidadores.

REFERÊNCIAS

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