versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.11 Rio de Janeiro nov. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172211.26352015
A sobrevida e a evolução do quadro clínico-laboratorial de pacientes com AIDS melhoraram consideravelmente após o início da disponibilização da terapia antirretroviral de alto impacto (HAART) pelo Ministério da Saúde a partir de 1996. Além disso, observa-se redução no número de internações de pessoas vivendo com HIV/AIDS, diminuição de infecções oportunistas e aumento de doenças crônicas, como as hepáticas, as cardiovasculares, as renais, entre outras1–5.
Apesar do impacto positivo na sobrevida dos pacientes, a falta de acesso à medicação, aos serviços de saúde – principalmente os de assistência especializada – e as dificuldades referentes à adesão ao tratamento ainda causam impacto negativo na evolução dos casos, sendo influenciados pela situação socioeconômica1,6,7. Além dos fatores sociais e médico-assistenciais também se associam ao prognóstico da AIDS a ocorrência de infecções oportunistas, entre elas a tuberculose e as comorbidades.
O estudo da sobrevida de pessoas com AIDS é uma das formas de avaliar a situação de epidemia, particularmente o impacto de medidas e políticas de intervenção. Em coorte de pacientes da região Sul e Sudeste diagnosticados em 1998 e 1999, registrou-se que 59,4% dos adultos sobreviveram 108 meses2. Estas estimativas foram maiores que a encontrada em estudo nacional de pacientes notificados em 1996 com sobrevida média de 58 meses3 e ainda maior se comparada com a sobrevida de 5,1 meses estimados no início da epidemia, de 1982 a 1989, anterior à terapia antirretroviral8.
Os casos de coinfecção AIDS-Tuberculose são frequentemente descritos em várias partes do mundo9, particularmente em regiões com alta prevalência da tuberculose atingindo principalmente os segmentos marginalizados e empobrecidos da sociedade10,11.
O Brasil apresentou em 2013 o maior número de casos de tuberculose da América Latina. Embora se observe tendência de diminuição da morbidade e mortalidade por tuberculose, o país12–14 apresentou incidência de 46 casos por 100.000 habitantes naquele ano15.
É possível considerar que a pandemia da AIDS produziu um grande impacto na epidemiologia da tuberculose. A coinfecção é preocupante quando se tem presente que o HIV é o maior fator de risco para o desenvolvimento da tuberculose10,16, doença ainda não controlada em países em desenvolvimento mesmo havendo meios para o diagnóstico e a cura.
Entre as doenças associadas com a AIDS, a tuberculose tem particular importância porque é contagiosa, tratável e, frequentemente, uma das primeiras manifestações clínicas da deficiência imunológica. Mantém-se como uma das principais doenças definidoras de AIDS, tendo ultrapassado a pneumonia por Pneumocystis jiroveci em 200117.
Há no Brasil grandes diferenças na incidência e mortalidade da tuberculose, particularmente mais elevada em regiões com maiores prevalências da infecção pelo HIV18,19. Além disso, a coinfecção AIDS-Tuberculose é identificada como fator associado à internação de casos de tuberculose20. Outras variáveis têm sido consideradas para a compreensão do prognóstico da coinfecção, particularmente os níveis de CD4 em outras partes do mundo13,14,21,22.
A tuberculose é uma doença de alta prevalência no Brasil, porém são poucos os estudos de base populacional sobre os fatores associados à sobrevida de pacientes com a coinfecção e de seu impacto na mortalidade6,23–25.
O objetivo deste estudo foi analisar o tempo de sobrevida de pacientes com a coinfecção AIDS-Tuberculose segundo características sociodemográficas, epidemiológicas, clínicas e de utilização de serviços de saúde nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.
Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo de amostra de prontuários de indivíduos com 13 anos ou mais com diagnóstico de AIDS, notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) nos anos de 1998 e 1999 com seguimento de 10 anos.
As regiões de estudo foram Sul e Sudeste, as quais apresentam população de 29.016.114 e 85.115.623 habitantes e área territorial de 576.773,368 km2 e 924.616,968 km2, respectivamente26. A coorte estudada foi formada por sorteio de municípios das regiões onde houve notificação de mais de 40 casos no ano, distribuídos em 33 e 90 municípios, respectivamente, nas regiões Sul e Sudeste2.
Como critério de inclusão no estudo destacase a confirmação do caso segundo definição vigente do Ministério da Saúde na ocasião da pesquisa, isto é, o Center for Disease Control (CDC) adaptado, Rio de Janeiro/Caracas, Critério Excepcional CDC, Critério Excepcional Óbito, Critério Excepcional de uso de antirretroviral (ARC) + Óbito e a contagem de células T-CD4 (menos de 350/mm3 independente dos sintomas)27. A observação destes critérios foi checada durante a análise de prontuários.
Foram excluídos da investigação as notificações de AIDS de gestantes, casos cujo critério de definição foi o óbito em menos de sete dias, casos diagnosticados pela primeira vez por ocasião da morte, critério ARC + óbito e o critério ignorado.
Foram identificados 29.600 e 8.979 casos, distribuídos por 90 e 33 municípios na região Sudeste e Sul, respectivamente. Os tamanhos de amostra planejados para as regiões Sudeste e Sul foram de 1.484 e 898 pacientes. Esses números permitiriam considerar estatisticamente significantes diferenças de 5 e 9 meses de sobrevida mediana entre grupos a serem comparados em cada região. Optou-se em utilizar partilha desigual da amostra pelos estratos (regiões) para diminuir as diferenças entre suas frações de amostragem2.
Em cada região foi utilizada amostragem por conglomerados em dois estágios: municípios (ou grupos de municípios) e pacientes. O sorteio das unidades primárias de amostragem foi feito com probabilidade proporcional ao número de notificações. Os municípios que não tinham o número mínimo de notificações foram agrupados a outros maiores.
As frações de amostragem foram de 1/13,369 para a região Sudeste e de 1/6,873 para a região Sul, tendo sido sorteados 18 unidades primárias de amostragem no Sudeste e 10 no Sul, correspondentes a 14 e 9 municípios, respectivamente. Para compensar as diferentes probabilidades de seleção utilizadas nas regiões, os dados coletados foram ponderados, sendo que o peso para cada paciente foi dado pelo inverso da fração de amostragem da região a que pertencia.
A análise dos prontuários permitiu o registro das variáveis sociodemográficas: cor referida, escolaridade em anos, faixa etária; epidemiológicas: categoria de exposição ao HIV, prática sexual, número de parceiros. Também foram utilizadas variáveis clínicas como presença de comorbidades, utilização regular de terapia antirretroviral, critério de definição de AIDS, diagnóstico de algum tipo de câncer, doenças oportunistas. Algumas variáveis relacionadas com a utilização e o seguimento clínico dos pacientes: presença de equipe multiprofissional, além do enfermeiro e médico, coleta de marcadores sorológicos para hepatites B, profilaxia para tuberculose e pneumonia por Pneumocystis jiroveci, no serviço onde o paciente foi acompanhado.
Os casos foram classificados segundo a presença do diagnóstico de tuberculose de todas as formas clínicas. Para o cálculo de sobrevida foram consideradas as datas do diagnóstico de AIDS, a data do óbito (falha), o abandono do seguimento (censura) e o término do estudo (censura programada)28.
As informações foram coletadas por profissionais de saúde (enfermeiros e médicos) vinculados aos serviços onde os pacientes eram seguidos. A informação foi checada por coordenadores de campo da pesquisa e revistas pela equipe de pesquisadores quanto aos critérios de inclusão, critérios diagnósticos e consistências dos dados de interesse no estudo.
Após compilação das informações, elaboração do banco de dados e correção de inconsistências, o banco foi explorado quanto à sobrevida de pacientes com a coinfecção AIDS-Tuberculose e covariáveis de interesse possivelmente associadas à mortalidade.
Inicialmente foram comparados os casos com ou sem o desfecho óbito, entre os grupos de coinfectados e sem a coinfecção. O coeficiente de letalidade na população estudada foi estimado tomando-se como numerador os óbitos e como denominador, o total de indivíduos no início das coortes de coinfectados e sem a coinfecção seguidos no estudo29. Foram utilizados testes de associação qui-quadrado de Pearson e o teste exato de Fisher, quando necessário, com significância de 5%. Para a análise de sobrevida foi considerada como variável resposta o tempo decorrido da notificação de AIDS até o evento óbito ou abandono, ou final do estudo, sendo as demais variáveis preditoras.
Após verificação de proporcionalidade das variáveis selecionadas por meio do teste de “Log menos Log”, a análise das curvas de sobrevida foi realizada utilizando-se o método Kaplan-Meier e teste de Log-rank28, com nível de significância de 5%, com a probabilidade acumulada de sobrevida em meses, segundo cada variável de interesse. Para calcular a razão de riscos ou hazard ratio (HR) foi utilizada a análise de Mantel Hanzel. Após análise univariada, foi ajustado o modelo de regressão múltipla de Cox ou modelo de riscos proporcionais, com intervalo de confiança de 95%. Teve-se como pressuposto que o HR para uma variável independente seja proporcional no decorrer do tempo28, permitindo assim, a inclusão de várias covariáveis simultaneamente na modelagem do tempo de sobrevida30.
Para todos os testes de comparação e análise de sobrevida foram ignoradas todas as categorias “sem informação” de todas as variáveis do estudo. Para o cálculo de sobrevida segundo a cor referida foram comparados brancos com preto/pardos, ignorando outras categorias referidas devido ao pequeno número de indivíduos. Como existiam pacientes com mais de um tipo de tuberculose diagnosticada, foram consideradas as formas mais graves para o cálculo das curvas de sobrevida por forma clínica da doença.
Foram utilizados os programas de computador Microsoft Excel 2013 e o Software IBM SPSS Statistics 21 para Windows para a análise estatística.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp – Campus Campinas.
Dos 2.091 casos de AIDS em maiores de 13 anos estudados, 517 (24,7%) tinham diagnóstico de tuberculose com pelo menos uma das formas clínicas de infecção, sendo 379 (73,3%) do sexo masculino. A relação homem/mulher foi de 2,7:1 entre os coinfectados e de 1,6:1 entre os sem a coinfecção. Observa-se maior percentual de óbitos entre os pacientes que apresentaram pelo menos uma forma clínica de tuberculose (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição dos casos de AIDS com e sem tuberculose, segundo óbito (letalidade), variáveis sociodemográficas, categoria de exposição, prática sexual, transmissão sanguínea e número de parceiros, regiões Sul e Sudeste, Brasil, 1998-2008.
Tuberculose | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Não (N = 1574) | Sim (N = 517) | Total (N = 2091) | ||||||
Freq | % | Freq | % | Freq | % | p-value | ||
Óbito | Sim | 511 | 32,5 | 242 | 46,8 | 753 | 36,0 | |
Não | 1063 | 67,5 | 275 | 53,2 | 1338 | 64,0 | 0,00* | |
Sexo | Masculino | 978 | 62,1 | 379 | 73,3 | 1357 | 64,9 | |
Feminino | 596 | 37,9 | 138 | 26,7 | 734 | 35,1 | 0,00* | |
Faixa etária em anos | 13 a 25 | 186 | 11,8 | 46 | 8,9 | 232 | 11,0 | |
26 a 39 | 892 | 56,7 | 318 | 61,5 | 1210 | 57,9 | ||
40 a 59 | 464 | 29,5 | 144 | 27,9 | 608 | 29,1 | ||
Mais de 60 | 32 | 2,0 | 9 | 1,7 | 41 | 2,0 | 0,17 | |
Cor referida | Branca | 853 | 54,2 | 242 | 46,8 | 1095 | 52,4 | |
Preta | 104 | 6,6 | 53 | 10,3 | 157 | 7,5 | ||
Amarela | 3 | 0,2 | 1 | 0,2 | 4 | 0,2 | ||
Parda | 180 | 11,4 | 82 | 15,9 | 262 | 12,5 | ||
Indígena | 2 | 0,1 | 2 | 0,4 | 4 | 0,2 | ||
Sem Informação | 432 | 27,4 | 137 | 26,5 | 569 | 27,2 | 0,00 | |
Escolaridade | ≤ 4 Anos | 870 | 55,3 | 307 | 59,4 | 1177 | 56,3 | |
5 - ≤ 8 Anos | 305 | 19,4 | 78 | 15,1 | 383 | 18,3 | ||
> 8 Anos | 129 | 8,2 | 22 | 4,3 | 151 | 7,2 | ||
Sem Informação | 270 | 17,2 | 110 | 21,3 | 380 | 18,2 | 0,00* | |
Categoria de exposição | Sexual | 1105 | 70,2 | 283 | 54,7 | 1388 | 66,4 | |
Sanguínea | 282 | 17,9 | 158 | 30,6 | 440 | 21 | ||
Sem Informação | 187 | 11,9 | 76 | 14,7 | 263 | 12,6 | 0,00* | |
Prática sexual | Homossexual | 211 | 13,4 | 46 | 8,9 | 257 | 12,3 | |
Bissexual | 119 | 7,6 | 40 | 7,7 | 159 | 7,6 | ||
Heterossexual | 995 | 63,2 | 313 | 60,5 | 1308 | 62,6 | ||
Sem Informação | 249 | 15,8 | 118 | 22,8 | 367 | 17,6 | 0,09 | |
Transmissão sanguínea | UDI | 266 | 16,9 | 154 | 29,8 | 420 | 20,1 | |
Outras** | 13 | 0,8 | 2 | 0,4 | 15 | 0,7 | ||
Sem informação | 1295 | 82,3 | 361 | 69,8 | 1656 | 79.02 | 0,00 | |
Número de parceiros | Único | 245 | 15,6 | 58 | 11,2 | 303 | 14,5 | |
Múltiplos | 690 | 43,8 | 233 | 45,1 | 923 | 44,1 | ||
Sem Informação | 639 | 40,6 | 226 | 43,7 | 865 | 41,4 | 0,30 |
*A estatística de qui-quadrado é significativa no nível 0,05. Para o cálculo qui-quadrado de cor referida, foram comparados os grupos brancos e preto/pardos.
**Foram consideradas outras formas de transmissão sanguínea: hemofilia, histórico de transfusão e acidente de trabalho com material biológico.
Quanto à faixa etária, embora a maioria dos casos tinha entre 26 e 39 anos no momento do diagnóstico, não se verificou diferença entre os sem e os com a coinfecção por tuberculose (Tabela 1).
Em relação à cor referida, comparando-se brancos e pretos/pardos houve maior proporção de brancos entre os não coinfectados, 853 (54,2%) (p < 0,001). Diferenças significativas foram verificadas com maior proporção de mulheres, escolaridade maior que oito anos, transmissão sexual e prática homossexual entre os indivíduos sem a coinfecção AIDS-Tuberculose (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta algumas variáveis clínicas e de utilização dos serviços de saúde. Observou-se que a proporção de pessoas que fazia uso regular de antirretroviral (ARV) foi alta em ambos os grupos, maior que 85%. Em relação ao critério diagnóstico de AIDS por contagem CD4 o percentual entre os coinfectados 203 (39,3%) foi menor que entre os sem a coinfecção AIDS-Tuberculose, 931 (59,1%).
Tabela 2 Distribuição percentual dos casos de AIDS com e sem tuberculose, segundo variáveis clínicas (critério diagnóstico, uso de antirretroviral, presença de câncer e doenças oportunistas) e variáveis de utilização e seguimento nos serviços de saúde, regiões Sul e Sudeste, Brasil, 1998-2008.
Tuberculose | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Não (N = 1574) | Sim (N = 517) | |||||
Freq | % | Freq | % | p-value | ||
Critério diagnóstico de AIDS | RJ Caracas | 262 | 16,6 | 186 | 36 | |
CDC Modificado | 348 | 22,1 | 120 | 23,2 | ||
CD4 | 931 | 59,1 | 203 | 39,3 | ||
Sem Informação | 33 | 2,1 | 8 | 1,5 | 0,00* | |
Uso de ARV | Regular | 1366 | 86,8 | 442 | 85,5 | |
Irregular | 116 | 7,4 | 54 | 10,4 | ||
Sem Informação | 92 | 5,8 | 21 | 4,1 | 0,03* | |
Câncer** | Sim | 58 | 3,7 | 26 | 5 | |
Não | 1516 | 96,3 | 491 | 95 | 0,18 | |
Doenças oportunistas*** | Nenhuma | 864 | 54,9 | 250 | 48,4 | |
Pelo menos uma | 491 | 31,2 | 182 | 35,2 | ||
Duas ou mais | 219 | 13,9 | 85 | 16,4 | 0,03* | |
Exame para hepatite B | Realizado | 815 | 51,8 | 273 | 52,8 | |
Não realizado | 275 | 17,5 | 98 | 19 | ||
Sem Informação | 484 | 30,7 | 146 | 28,2 | 0,65 | |
Profilaxia para PPC**** | Realizada | 637 | 40,5 | 247 | 47,8 | |
Não realizada | 937 | 59,5 | 270 | 52,2 | 0,00* | |
Profilaxia para Tuberculose | Realizada | 67 | 4,3 | 43 | 8,3 | |
Não realizada | 1507 | 95,7 | 474 | 91,7 | 0,00* | |
Consulta com outros profissionais de saúde***** | Sim | 1020 | 64,8 | 384 | 74,3 | |
Não | 554 | 35,2 | 133 | 25,7 | 0,00* |
*A estatística de qui-quadrado é significativa no nível 0,05.
**Foram considerados como cânceres: câncer cervical invasivo, linfoma não-Hodgkin, linfoma primário do cérebro e sarcoma de Kaposi.
***Foram consideradas como doenças oportunistas: candidíase (esôfago, traquéia, brônquios e pulmão), citomegalovirose (em local que não o olho, fígado, baço, linfonodos), criptococose extrapulmonar, criptosporidíase, doença por micobactéria (outra que não a tuberculose), herpes simples muco-cutâneo, histoplasmose disseminada, isosporíase, leucoencefalopatia multifocal progressiva, neurotoxoplasmose, pneumonia por Pneumocystis jiroveci, retinite por citomegalovírus, salmonelose e outras pneumonias.
****Profilaxia para pneumonia por Pneumocystis jiroveci.
*****Foram considerados como outros profissionais de saúde: psicólogo, dentista, assistente social, psiquiatra, fisioterapeuta, nutricionista, terapeuta ocupacional (exceto médico infectologista e enfermeiro).
A frequência de diagnóstico do câncer não foi diferente entre os grupos com e sem a coinfecção (p = 0,18), porém observou-se maior percentual de doenças oportunistas entre os pacientes com diagnóstico de tuberculose (p = 0,03) (Tabela 2).
Variáveis associadas ao seguimento dos pacientes e acesso a outros profissionais são apresentados na Tabela 2. Observou-se que 1.020 (64,8%) dos pacientes sem a coinfecção foram atendidos por outros profissionais, além do médico e enfermeiro, frequência menor que a observada entre os pacientes coinfectados (74,3%). Em relação à investigação de hepatite B, não se observou diferença estatística na solicitação de exame. (Tabela 2).
A análise das curvas de sobrevida de Kaplan Meier (Figura 1-A) sugere que os pacientes com a coinfecção AIDS-tuberculose tiveram menor sobrevivência até 60 meses após o diagnóstico de AIDS comparadas com os sem a coinfecção. A sobrevivência acumulada foi de 70% nos não coinfectados e 58% nos coinfectados. A comparação das curvas de sobrevida por meio do teste de igualdade de distribuições de sobrevivência de Log-rank (Mantel-Cox) evidenciou diferenças entre os grupos (p < 0,01).
Figura 1 A. Curvas de sobrevida Kaplan-Meier de pacientes com AIDS segundo a coinfecção por tuberculose. B*. Curva obtida do modelo ajustado (Cox), região Sul e Sudeste, Brasil 1998-2008.* Foram consideradas as covariáveis sexo, faixa etária em anos, escolaridade, critério diagnóstico de AIDS, uso de ARV, exame para hepatite B e doenças oportunistas, com significância de p ≤ 0,05 para a construção da curva.
Após o ajuste do modelo múltiplo de Cox, a sobrevivência acumulada foi de 71% para os coinfectados e de 82% para os sem a coinfecção após 60 meses do diagnóstico (Figura 1-B). A sobrevida média relacionada à coinfecção por tuberculose foi de 69 meses para a região Sudeste e de 73 meses para a região Sul.
A Tabela 3 apresenta os estimadores de risco em análise univariada e múltipla por meio do modelo de Cox, via stepwise. O risco entre os coinfectados AIDS-Tuberculose foi 1,65 (IC95%: 1,30–2,08) vezes os não coinfectados no modelo múltiplo.
Tabela 3 Razão de riscos proporcionais de variáveis associadas à sobrevida em modelo univariado e múltiplo (Cox) em pacientes com AIDS, regiões Sul e Sudeste, Brasil 1998-2008.
Univariada | Múltipla | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
HR | IC 95% | p-value | HR | IC 95% | p-value | ||
Sexo | Masculino | 1 | - | 1 | - | ||
Feminino | 0,72 | 0,61–0,84 | 0,00 | 0,63 | 0,50–0,81 | 0,00 | |
Faixa etária em anos | 13 a 25 | 1 | - | 1 | - | ||
26 a 39 | 1,12 | 0,87–1,43 | 1,20 | 0,81–1,78 | |||
40 a 59 | 1,18 | 0,91–1,54 | 1,24 | 0,82–1,87 | |||
Mais de 60 | 2,84 | 1,81–4,44 | 0,00 | 2,33 | 1,13–4,84 | 0,02 | |
Cor referida | Branca | 1 | - | - | - | ||
Preta/Parda | 1,32 | 1,11–1,58 | - | - | |||
Indígena/Amarela | 0,62 | 0,15–2,47 | 0,00 | - | - | 0,12 | |
Escolaridade | ≤ 4 Anos | 1 | - | 1 | - | ||
5 ≤ 8 Anos | 0,60 | 0,49–0,75 | 0,68 | 0,51–0,91 | |||
> 8 Anos | 0,47 | 0,33–0,68 | 0,00 | 0,52 | 0,32–0,84 | 0,00 | |
Categoria de exposição | Sexual | 1 | - | - | - | ||
Sanguínea | 1,75 | 1,48–2,07 | 0,00 | - | - | 0,17 | |
Prática sexual | Homossexual | 1 | - | - | - | ||
Bissexual | 1,08 | 0,77–1,53 | - | - | |||
Heterossexual | 1,10 | 0,87–1,40 | 0,43 | - | - | - | |
Número de parceiros | Único | 1 | - | - | - | ||
Múltiplos | 1,42 | 1,11–1,82 | 0,00 | - | - | 0,29 | |
Critério diagnóstico de AIDS | RJ Caracas | 1 | - | 1 | - | ||
CDC Modificado | 0,94 | 0,78–1,13 | 0,95 | 0,68–1,32 | |||
CD4 | 0,37 | 0,31–0,44 | 0,00 | 0,64 | 0,49–0,85 | 0,00 | |
Uso de ARV | Regular | 1 | - | 1 | - | ||
Irregular | 11,6 | 9,47–14,22 | 0,00 | 8,62 | 6,11–12,17 | 0,00 | |
Consulta com outros profissionais de saúde | Sim | 1 | - | - | - | ||
Não | 1,57 | 1,36–1,82 | 0,00 | - | - | 0,63 | |
Exame para hepatite B | Realizado | 1 | - | 1 | - | ||
Não Realizado | 3,10 | 2,56–3,75 | 0,00 | 2,44 | 1,94–3,06 | 0,00 | |
Profilaxia para PPC* | Realizado | 1 | - | - | - | ||
Não Realizado | 1,37 | 1,19–1,59 | 0,00 | - | - | 0,85 | |
Profilaxia para tuberculose | Realizado | 1 | - | - | - | ||
Não Realizado | 1,11 | 0,81–1,53 | 0,50 | - | - | - | |
Diagnóstico de tuberculose | Negativo | 1 | - | - | - | ||
Positivo | 1,62 | 1,39–1,89 | 0,00 | 1,65 | 1,30–2,08 | 0,00 | |
Câncer | Sim | 1 | - | - | - | ||
Não | 0,66 | 0,49–0,90 | 0,01 | - | - | 0,16 | |
Doenças oportunistas | Nenhuma | 1 | - | 1 | - | ||
Presença de uma | 1,78 | 1,51–2,09 | 1,57 | 1,20–2,07 | |||
Duas ou mais | 2,23 | 1,84–2,70 | 0,00 | 1,97 | 1,46–2,66 | 0,00 |
*Profilaxia para pneumonia por Pneumocystis jiroveci.
As variáveis que se apresentaram associadas positivamente à maior sobrevida foram: sexo feminino (HR = 0,63 e IC95%: 0,50–0,81), escolaridade superior a cinco anos de estudo (HR = 0,68 e IC95%: 0,51–0,91), critério diagnóstico CD4 (HR = 0,64 IC95%: 0,49–0,85). As variáveis associadas negativamente à sobrevida foram: faixa etária maior de 60 anos (HR = 2,33 IC95%: 1,13–4,84), não uso regular de ARV (HR = 8,62 IC95%: 6,11–12,17), não investigação para hepatite B (HR = 2,44 IC95%: 1,94–3,06), com diagnóstico de tuberculose (HR = 1,65 IC95%: 1,30–2,08) e duas ou mais doenças oportunistas (HR = 1,97 IC95%: 1,46–2,66) (Tabela 3).
Observou-se menor sobrevivência acumulada em 60 meses nos pacientes que apresentaram a forma clínica da infecção por tuberculose disseminada/extrapulmonar/não cavitária (55%), seguida pela tuberculose pulmonar cavitária (58%), tuberculose ganglionar/não especificada (68%). A comparação entre as curvas por meio do teste de Log-rank não demonstrou diferenças entre elas (p < 0,00) (Figura 2).
Verificou-se neste estudo que a sobrevida em 10 anos dos pacientes diagnosticados em 1998 e 1999 foi superior aos de antes deste período6,8. Registrou-se letalidade de 46,8% e 32,5% nos pacientes com e sem a coinfecção respectivamente (p < 0,0001). Em ambas as regiões a mortalidade entre os coinfectados superou a dos não coinfectados. Os grupos também apresentaram diferenças na distribuição das variáveis sociodemográficas, epidemiológicas, clínicas e de utilização de serviços.
Aos 60 meses após o diagnóstico de AIDS não se observou diferença na sobrevivência acumulada entre as regiões Sul e Sudeste. A mortalidade entre os pacientes coinfectados com AIDS-Tuberculose foi maior nas duas regiões, 39,5% na Sul e 42% na Sudeste. A associação entre as duas doenças justifica a orientação de que em todo paciente com tuberculose deve-se realizar a pesquisa pelo HIV. Por outro lado, em todo paciente com a infecção pelo HIV deve-se investigar a possibilidade deste estar infectado pelo bacilo da tuberculose9.
A proporção de pacientes com a coinfecção AIDS-Tuberculose foi ao redor de 1/4 da população estudada, 517 (24,7%). Percentual semelhante de coinfecção por tuberculose também foi descrito em coorte hospitalar no Rio de Janeiro7. Estudos na região Sudeste apontaram prevalência da coinfecção AIDS-Tuberculose de 34,5% em Belo Horizonte, MG, 52,5% em São José do Rio Preto, SP, 17,5% em Campinas, SP e 14,5% em Vitória, ES25,31–33.
Pode ocorrer nos indivíduos com AIDS a reativação da infecção pelo Mycobacterium tuberculosis devido à queda na resposta imunológica, além de novas infecções.
Observou-se distribuição desigual dos óbitos entre os coinfectados e não coinfectados no período, com letalidade de 46,8% e 32,5% respectivamente (p < 0,001). Os grupos também apresentaram diferenças na distribuição das variáveis sociodemográficas, epidemiológicas, clínicas e de utilização de serviços.
A sobrevida aos 60 meses foi semelhante entre as regiões Sul (78%) e Sudeste (79%), sendo que para os que possuíam diagnóstico de tuberculose, em ambas as regiões, essa sobrevida caiu no período, mesmo na presença de covariáveis. Particularmente entre os pacientes com coinfecção por tuberculose disseminada/extrapulmonar/não cavitária a sobrevida aos 60 meses foi significativamente menor, coerente com a gravidade e disseminação da doença na vigência de um quadro de imunodepressão.
As curvas de Kaplan-Meier bem como o modelo múltiplo mostraram diferenças significativas na sobrevida de pacientes com e sem a coinfecção. Além da tuberculose, a presença de doenças oportunistas também abreviou a sobrevivência da população de estudo5,6.
Uma hipótese para explicar a menor sobrevida entre os coinfectados AIDS-Tuberculose é o abandono de tratamento da tuberculose devido a eventos adversos: interação de drogas das duas terapias combinadas, além de uso de álcool, fumo, presença de doenças oportunistas, células T-CD4 abaixo de 200/mm3 como preditores de abandono de tratamento da tuberculose e com impacto no prognóstico do paciente13,24.
Tanto os casos de AIDS com e sem o diagnóstico de tuberculose são mais prevalentes entre os homens, como verificado em outros estudos1–3,19. A forte relação entre pobreza, baixa escolaridade e tuberculose possivelmente explica o maior risco de morrer entre os indivíduos com até quatro anos de estudo6,12. Esta variável é um marcador das condições socioeconômicas da população, embora muitas vezes não disponível nos prontuários médicos e fichas de notificação7,9,12,34.
Vale ressaltar as diferenças encontradas entre a cor referida nos pacientes com a coinfecção AIDS-Tuberculose, com maior prevalência de pretos/pardos. O uso da categoria raça/cor referida como variável analítica tem contribuído para a compreensão das desvantagens e desigualdades da população negra no acesso aos recursos adequados ao cuidado. Estudo com mulheres com sorologia positiva para HIV em São Paulo registrou situação de vulnerabilidade e menor acesso aos serviços além de maior escolaridade e dificuldades na compreensão sobre a doença e os exames solicitados35. Embora significativa no modelo univariado e maior prevalência de pacientes pretos/pardos entre os coinfectados, esta variável não permaneceu associada ao risco de mortalidade no modelo múltiplo final após ajuste com a variável “anos de escolaridade”, sugerindo maior relevância das condições socioeconômicas na sobrevida, independentemente da cor referida. Vale ressaltar as limitações na interpretação e confiabilidade desta informação, particularmente em prontuários médicos.
Piores condições de vida dificultam o acesso aos serviços de saúde, a compreensão sobre o uso correto da medicação e a possibilidade de cuidados com a alimentação e outras orientações gerais36.
Estudo no Rio de Janeiro verificou que a sobrevida foi fortemente influenciada pela contagem de CD4 acima de 100 células/mm3, diminuindo a incidência de doenças oportunistas37. O uso regular da medicação antirretroviral aumentou consideravelmente, 8,62 vezes a expectativa de vida nesta coorte e mudou o perfil epidemiológico dos pacientes coinfectados pela tuberculose devido à recuperação da imunidade. Resultados semelhantes foram registrados em várias partes do mundo, ressaltando-se o maior impacto de terapias antirretrovirais combinadas (uso de três antirretrovirais) a partir do ano 2.000 e a consequente recuperação das células CD45,6,38–43.
Algumas variáveis foram incluídas neste estudo com o objetivo de analisar a associação da sobrevida com o atendimento ao paciente, entre elas o uso de profilaxias, a solicitação da sorologia para hepatite B e o atendimento multiprofissional, que indicariam indiretamente a adesão ao serviço, seguimento clínico e abordagem integral do paciente.
Entre as variáveis relacionadas aos serviços de saúde, embora associadas na análise univariada, apenas a solicitação de exame para hepatite B permaneceu como preditora de maior sobrevivência dos pacientes com AIDS acompanhados nos municípios. A solicitação destes exames denota atendimento que abrange investigação de outras doenças crônicas uma delas passível de prevenção e ambas de seguimento clínico e terapêutico.
Estudo que avaliou o atendimento ao paciente com AIDS no Brasil, chama a atenção para a heterogeneidade da assistência à saúde e infraestrutura, embora se verifique disponibilidade de medicamentos, exames para seguimento clínico, além da presença de um médico especialista em infectologia na maioria dos serviços44.
Embora a profilaxia com isoniazida tenha reduzido a infecção ativa por tuberculose em indivíduos com AIDS, a adesão ao tratamento, a resistência e a toxicidade tem limitado esta medida alto risco. O atendimento integrado e descentralizado das ações de prevenção, testagem (screening) e tratamento da tuberculose em pessoas vivendo com HIV pode reduzir a coinfecção e limitar a resistência às drogas.
Algumas limitações podem ser apontadas neste estudo, entre elas a qualidade das informações registradas nos prontuários que nem sempre são precisas e podem variar em diferentes regiões do país. A análise de período de 10 anos de década passada (1998-2008) pode não refletir a dinâmica da epidemia nos dias atuais, levandose em consideração mudanças no perfil de pacientes como faixa etária, diminuição dos usuários de drogas injetáveis, a disponibilidade de novas drogas antirretrovirais e associações mais potentes e de mais fácil utilização por parte dos pacientes. Porém, trata-se de um estudo de base populacional com estimativas de sobrevida que contribuem para o registro de parâmetros e indicadores da epidemia em década posterior ao início da HAART, relevantes para o monitoramento da doença no Brasil.
A sobrevida após o início da HAART aumentou entre os pacientes estudados. Tais resultados refletem os investimentos realizados pelos Programas de DST/AIDS nacional, estaduais e municipais, para acesso universal ao tratamento e acompanhamento clínico dos pacientes com AIDS. Apesar dos avanços alcançados nas políticas e serviços de atenção aos indivíduos acometidos, alguns desafios permanecem, entre eles a superação das desigualdades e iniquidades quanto ao diagnóstico precoce e a disponibilidade e adesão ao tratamento tanto da AIDS como da tuberculose. A AIDS e a Tuberculose são duas doenças crônicas que exigem seguimento clínico e adesão ao tratamento e podem ser analisadas como marcadores de dificuldades para a superação das limitações ainda presentes na sobrevida dos pacientes no Brasil.