On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.30 no.4 São Paulo July/Aug. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201700054
A violência é um fenômeno que se manifesta sob diferentes formas e contextos, como a família, tanto em áreas urbanas quanto rurais.(1) Dentre as formas de violência, este estudo aborda a violência doméstica, compreendendo qualquer ação ou omissão praticada no ambiente doméstico por indivíduos que convivam neste, com ou sem função parental, mesmo que esporadicamente.(2)
A violência doméstica atinge especialmente populações vulneráveis, como crianças, mulheres e idosos. Neste sentido, observando o cenário internacional, estudo desenvolvido na Romênia com participantes entre 18 e 75 anos, evidenciou que 53,7% destes vivenciaram situações de violência no âmbito doméstico,(3) denotando o seu caráter intergeracional.(4) Outro estudo aponta reflexos negativos desta violência na saúde e bem estar dos que a vivenciam.(5)
No cenário rural esta violência encontra-se potencializada devido às singularidades desse cenário, como o distanciamento geográfico em relação aos serviços de saúde, educação, assistência social e segurança, como também pela reprodução geracional desse agravo.(6) Destaca-se que embora a violência doméstica seja objeto de inúmeras pesquisas no campo da saúde, no cenário rural, as produções são incipientes e tem como foco as mulheres, o que revela uma lacuna de estudos que envolvam também outros indivíduos que vivenciam situações de violência.
Diante da complexidade da problemática apresentada, agrega-se ao estudo a Teoria das Representações Sociais, método de conhecimento oriundo e compartilhado a partir do senso comum, em que o indivíduo é inserido no ambiente e se torna capaz de construir uma realidade prática, permitindo com que os participantes compreendam seu mundo social, atribuindo-lhe sentido.(7) Nesta direção, justifica-se apreender as representações sociais da violência doméstica sobre o olhar da população que está inserida nos cenários rurais, o que pode possibilitar a compreensão dos significados pautados nas construções históricas e sociais, e assim, subsidiar a elaboração de novas práticas de atenção e cuidado neste contexto singular.
A partir do exposto, buscou-se responder a questão norteadora: quais são as representações sociais da violência doméstica em cenários rurais para mulheres e homens residentes nesses contextos? Para respondê-la, o estudo teve como objetivo compreender as representações sociais da violência doméstica em cenários rurais, na perspectiva de mulheres e homens residentes nesses contextos.
Estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa ao qual agregou-se a perspectiva teórico-metodológica das Representações Sociais. Estas buscam tornar familiar algo não familiar, ou a própria não familiaridade, utilizando a ancoragem e a objetivação, que tem por base a memória dos participantes frente a um acontecimento e suas observações acumuladas.(7)
O cenário foi composto por dois municípios de pequeno porte do estado do Rio Grande do Sul, em que mais da metade da população reside no meio rural.(8) Os participantes foram 16 pessoas que residiam em áreas rurais destes municípios e eram vinculados a grupos de saúde organizados pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) rural. Como critério de inclusão elencou-se: estar residindo há pelo menos cinco anos em área rural, pois o fator tempo é um determinante na elaboração das representações sociais. O critério de exclusão consistiu em residir há menos de cinco anos em área rural. Nenhum outro atributo se constituiu como critério de exclusão justificável.
Considerando o caráter plurimetodológico das Representações Sociais, recomenda-se adotar procedimentos diversificados para geração e análise dos dados. Assim, neste estudo empregaram-se para a geração dos dados técnicas projetivas(7) e entrevistas semiestruturadas.(9) As técnicas projetivas são a objetivação e ancoragem. Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou seja, reproduzir um conceito em uma imagem.(7) A ancoragem, compreende a assimilação da imagem obtida na objetivação, tornando-a familiar.(7)
Para a organização da coleta de dados primeiramente foi realizado contato com a enfermeira responsável pela ESF rural em cada município, que juntamente com Agentes Comunitários de Saúde auxiliou na escolha da comunidade rural, visto que foi utilizado como pré-requisito possuir um grupo de saúde em funcionamento, com participação de mulheres e homens. Após agendamento, a equipe de pesquisa, composta pela pesquisadora responsável e três acadêmicas do curso de graduação em Enfermagem, deslocou-se até o salão comunitário de cada comunidade, em que os grupos eram realizados.
Para a efetivação da técnica projetiva realizou-se uma oficina de colagem, na qual foram disponibilizadas aos participantes jornais e revistas. A partir do questionamento: “para vocês o que representa a violência doméstica nos cenários rurais?” foram recortadas imagens e realizada a objetivação. Quanto à ancoragem, esta permitiu que os participantes expusessem seus pensamentos frente às figuras que representavam a violência doméstica nos cenários rurais. Foram realizadas duas oficinas, uma em cada município, em salões comunitários das comunidades rurais. Estas tiveram duração média de três horas, sendo gravadas em áudio e as observações anotadas em diário de campo.
Após, visando complementar os dados oriundos das oficinas, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os 16 participantes. Para tanto, foi construído um roteiro dividido em duas partes: a primeira continha questões fechadas referentes aos dados sóciodemográficos; a segunda compôs-se por questões abertas referentes ao objeto de estudo. Para definir o tamanho da amostra utilizou-se o critério de exaustão dos dados, segundo o qual o término da coleta de dados se dá quando todos os participantes elegíveis participaram do estudo.(10)
As entrevistas foram agendadas previamente quanto à data e horário, realizadas no domicílio dos participantes, com duração média de uma hora e também gravadas em áudio. Quando os participantes referiam que não se sentiriam à vontade no domicílio, a entrevista foi agendada para ser realizada em uma sala da ESF rural. Nos casos em que havia outras pessoas no domicílio na data agendada, esta não foi realizada sendo remarcada, visando à garantia da privacidade e anonimato dos participantes.
Destaca-se que antes do início da coleta de dados a pesquisadora responsável realizou a leitura e explicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após, aqueles que concordaram em participar do estudo, o assinaram em duas vias, ficando uma com o participante e a outra com a pesquisadora. Tendo em vista o anonimato dos participantes da pesquisa, utilizaram-se as nomenclaturas (P) para participante, seguido de (M) masculino ou (F) feminino para diferenciar o sexo dos participantes e do respectivo número ordinal referente à ordem de realização das entrevistas (Ex.: P.F.1, P.M.2, P.M.16). A coleta de dados ocorreu no período de novembro de 2015 a janeiro de 2016.
Para análise dos dados obtidos mediante a oficina empregou-se o referencial teórico-metodológico das Representações Sociais, seguindo passos de Padilha.(11) No 1° momento foi realizada a objetificação, processo de tornar real algo pensado. Através da colagem, formaram-se núcleos figurativos, correspondentes aos temas, os quais são representados e expressam a concretude da ideia.
No segundo momento que corresponde à ancoragem ocorreu a interpretação dos participantes sobre o material produzido nas colagens, atribuindo-lhes um significado. Esse momento permitiu a coleta de simbolizações e percepções a partir dos relatos verbais sobre o objeto de estudo. Na sequência, pode-se identificar os temas que representam esse conhecimento, constituindo-se os núcleos simbólicos.
No terceiro momento realizou-se a validação pelos participantes das configurações dadas pelo pesquisador à representação social da violência doméstica em contextos rurais, confirmando ou não a identificação de núcleos dessa representação. No 4° e último momento houve a sistematização das informações, onde agruparam-se os temas em núcleos figurativos e núcleos simbólicos.
Para apreciação dos dados das entrevistas semiestruturadas foi utilizada a análise de conteúdo temática que se divide em três etapas: pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação.(9)
Por fim, o material empírico da oficina e das entrevistas semiestruturadas, após analisado foi reunido em duas categorias: “Representações Sociais da violência doméstica nos cenários rurais ancorada nas relações desiguais entre mulheres e homens” e “Representações Sociais da violência doméstica nos cenários rurais ancorada nas relações familiares e geracionais”.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, parecer número 514.865. Foram atendidas as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Os participantes são, em sua maioria, do sexo feminino (81%) e apresentam média de idade de 55 anos. Quanto ao grau de instrução, 68% dos participantes tem o primeiro grau incompleto, 6,25% primeiro grau completo, 12,5% segundo grau completo e 6,25% segundo grau incompleto. Quanto ao estado civil, 75% são casados, sendo que os solteiros (as), viúvos (as) e em união estável somaram 25%.
A primeira categoria revela que as relações violentas no espaço doméstico em áreas rurais ancoram-se nas assimetrias de poder e autoridade entre homens e mulheres. Estas se manifestam dentre outras situações na divisão desigual do trabalho.
Eu acho que (a violência doméstica) é contra a esposa […] a mulher é empregada do homem. (P.M.2)
Acho que a mulher rural é mais agredida que a mulher urbana porque têm certos homens que dizem: vai te virando com o serviço enquanto me viro de lado na cama […] isso aconteceu perto de casa. (P.F.15)
Estas relações assimétricas também se manifestam através da violência psicológica, mediante o emprego de palavras que prejudicam a autoestima das mulheres e reforçam a dominação masculina.
[…] o jeito que eles tratam, às vezes, eles não dão tapa, mas o que falam para as mulheres coloca elas lá embaixo. (P.F. 5)
[…]a mulher não se libertou desse tipo de coisa […] eu, dentro da minha família, observei o meu pai mandar a minha mãe calar a boca, que não é para se meter, que só ele resolvia os problemas. (P.M.16)
Outra forma de violência doméstica que permeia as relações nos cenários rurais é a de natureza física.
[…]homem que maltrata mulher[…]. (P.F.9)
No geral a gente vê os vizinhos, a gente sabe que chegam em casa quebrando tudo e a mulher tem que aguentar […] estoura na parte mais fraca (mulher). (P.M.16)
A segunda categoria apresenta a violência doméstica em cenários rurais como parte das relações familiares, geracionais e de trabalho, revelando que além da mulher, as crianças e idosos também estão suscetíveis a esta violência.
As falas a seguir revelam a figura paterna como detentora do poder, exercendo domínio sobre os demais membros da família, que estão suscetíveis a violência doméstica no contexto rural.
Antigamente se tirava leite de umas dez vacas, a mulher fazia. Quando começou a dar dinheiro, os homens começaram a entrar nesse ramo, daí o leite virou uma produção de alta escala […] aí botaram 20, 30 vacas, e se explorou mais ainda a mão-de-obra da mulher e dos filhos. Muitos homens acham isso normal: deixar a mulher, os filhos trabalhando. (P.F.11)
Identificou-se que o núcleo familiar nos cenários rurais comumente é composto por várias gerações, o que favorece a representação da violência doméstica também contra os idosos, relacionada ao abandono pela família e a institucionalização.
Essa imagem é uma velinha abandonada em um asilo. Está triste e isso é uma violência doméstica porque não tem ninguém cuidando dela. (P.M.2)
A violência doméstica em cenários rurais contra os idosos também se ancora no uso indevido de seus recursos financeiros pelos cuidadores, em geral os filhos. Muitas vezes os idosos fornecem as senhas de suas contas bancárias e como consequência, não recebem integralmente seu dinheiro.
Nós íamos a uma casa que a mulher dizia meu salário é assim (pequeno), eu não recebo todo o salário […] os filhos faziam os empréstimos e quando iam receber o dinheiro diziam ‘seu salário não veio inteiro. (P.F.15)
Os participantes ainda representam a violência doméstica nos cenários rurais contra as crianças, ancorada nos maus tratos e na violência sexual, praticados na maioria das vezes pelos pais.
[…] a violência é como o pai que não gosta do filho e maltrata. (P.F.4)
A violência sexual também atinge as crianças. (P.F.15)
As limitações do estudo em tela relacionam-se a estudos qualitativos descritivos, em especial, ao número restrito de participantes. Contudo seus resultados apresentam a potencialidade de dar visibilidade às particularidades da violência doméstica nos cenários rurais, para as quais devem ser revistas e implementadas políticas públicas tendo em vista a equidade e humanização do cuidado em diferentes cenários.
Na primeira categoria, os participantes sinalizam as heterogeneidades de gênero nos cenários rurais estabelecidas na relação homem-mulher, as quais resultam, dentre outros, na divisão desigual do trabalho, tendo como consequência a sobrecarga das mulheres rurais. Estudo corrobora esses achados, ao identificar que as mulheres rurais estão subordinadas a duplas ou triplas jornadas de trabalho, ao realizarem além de serviços domésticos, o cuidado com os filhos e a casa, o trabalho na lavoura. Este último, embora seja desenvolvido pelas mulheres rurais de modo semelhante ou igual aos homens, é considerado apenas ajuda,(12) o que situa estas mulheres a uma posição secundária e confere invisibilidade ao seu trabalho.(13) Deste modo, o trabalho feminino rural configura-se como uma das principais fontes de desigualdade entre homens e mulheres.(14)
Outro elemento representativo da violência doméstica expresso nos resultados é a violência psicológica, que busca manter o domínio da figura masculina sobre a mulher. Estudos têm apontado que esta forma de violência doméstica é uma das mais presentes no cotidiano das relações, se caracterizando por xingamentos, ameaças, intimidação e cerceamento da liberdade das mulheres.(15) Ainda, pesquisa fenomenológica com mulheres que vivenciaram a violência doméstica revelou que a violência não física possui consequências mais impactantes na relação com o marido e/ou companheiro, apresentando efeitos prolongados.(16)
A violência física também é citada pelos participantes como uma das formas de violência doméstica perpetrada contra as mulheres em cenários rurais. Estudo apontou que as mulheres que residem nesse contexto vivenciam a violência física com maior frequência e gravidade em relação às que vivem no meio urbano, sendo o isolamento um fator potencializador dessa situação, uma vez que dificilmente haverá pessoas para testemunhar tais situações de violência.(17) Neste sentido, destaca-se que as agressões físicas, em geral, são acompanhadas de formas não físicas, como isolamento social, controle e coerção,(15) empregados de modo a manter a submissão e dominação do homem sobre a mulher no ambiente doméstico.
Quanto à submissão das mulheres, destaca-se que esta se apresenta como modelo social aceitável para as mulheres,(12) no qual o emprego de violência na resolução dos problemas nas relações homem-mulher encontra-se naturalizado nestas relações.(18) Neste contexto, há a dificuldade das mulheres em identificar a violência doméstica que vivenciam, pelo fato de que esta se encontra enraizada culturalmente em nossa sociedade, fruto da construção social do homem como superior em relação à mulher.
A segunda categoria indica que a violência doméstica em contexto rural está presente nas relações familiares, atingindo mulheres, idosos e crianças. Esta diversidade de membros que vivenciam essa problemática se explica pelo núcleo familiar que tende a ser composto por várias gerações. Ainda, deve-se ao fato de que a violência doméstica se tornou um modo de resolução de problemas dentro do espaço doméstico, manifestando-se de modo heterogêneo para cada membro, a depender dos papeis e poderes historicamente construídos.(19)
Deste modo, uma das manifestações da violência doméstica se dá mediante o emprego do poder da figura masculina sobre os demais membros da família, especialmente no âmbito do trabalho. A exploração do trabalho da família referida pelos participantes do estudo está alicerçada na hierarquização de poder arraigada no modelo do patriarcado. Este se trata de uma das mais remotas formas de controle, legitimada pela tradição e níveis hierárquicos, em que a imposição do poder ocorre em geral, do pai aos filhos e do homem à mulher.(20) Ainda hoje percebem-se resquícios deste modelo no espaço doméstico, o qual acaba muitas vezes sendo instituído com o emprego de violência.
No que se refere à violência doméstica contra os idosos que vivem nesse contexto, identificou-se que se relaciona ao abandono pela família, institucionalização e também ao uso indevido do dinheiro dos idosos por seus cuidadores, que geralmente são os seus próprios filhos. Estudo corrobora estes achados, ao revelar que os familiares deixam de prover as necessidades básicas aos idosos, os isolam socialmente e ainda apropriam-se de seus recursos financeiros, causando-lhes sofrimento.(21)
Os participantes ainda representam a violência contra as crianças expressa pelos maus-tratos e violência de natureza sexual. Estudo evidencia que crianças ou adolescentes, em geral, sofrem violência por alguém com quem possui relação de consanguinidade ou se encontra na condição de cuidador, podendo ser avô, tio, primo, irmão, padrasto, madrasta. Assim, sua ocorrência se dá dentro do espaço doméstico, e não se torna pública pela dependência dos menores em relação ao agressor, sendo potencializada pelo distanciamento dos serviços.(22)
Os maus-tratos contra as crianças têm menos chances de serem punidos, pois não existe fiscalização e as crianças por serem vulneráveis não possuem suporte para ir buscarem ajuda, pois os pais são no momento inicial sua referência.(23) Ainda, a violência sexual contra crianças, é considerada uma face oculta da violência contra estas, visto que em sua maioria, não conseguem verbalizar suas apreensões e sofrimentos.(24)
Os resultados indicam que a violência doméstica atinge em diferentes níveis e intensidades os membros que se encontram no ambiente doméstico, com destaque para as gerações imaturas e os idosos. Assim, essa problemática extrapola as relações homem-mulher, atingindo uma rede de relações intergeracionais amplas, prejudicando as gerações que se encontram no início e no final da vida.
Pode-se considerar a partir das representações sociais da violência doméstica nos cenários rurais que essa problemática está introjetada nas relações do espaço privado e é passada através das gerações de forma natural, como parte das estruturas que sustentam as relações no ambiente doméstico.
Os achados deste estudo apontam que a violência doméstica em cenário rural, a partir das representações sociais de homens e mulheres, se trata de um fenômeno complexo que envolve diferentes gerações que circulam no espaço doméstico. Estas representações ancoram-se nas relações desiguais entre homens e mulheres, manifestadas pela divisão sexual do trabalho, violência física e psicológica contra as mulheres, como forma de manutenção do domínio masculino sobre estas. As representações ancoram-se também nas relações familiares e geracionais, expressas pelo emprego do poder da figura paterna sobre os outros membros da família, bem como pelo abandono de idosos e uso de seus recursos financeiros pelos filhos, e pela violência sexual e maustratos contra as crianças.