versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.7 Rio de Janeiro jul. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.00502016
O objetivo desse artigo é realizar o levantamento da produção sobre sofrimento psíquico e estresse no trabalho de agentes penitenciários nos periódicos nacionais e internacionais entre os anos de 2000 e 2014, tema complexo que envolve a relação entre trabalho e saúde mental. Segundo Minayo et al.1, “do ponto de vista dos riscos e da segurança, entendemos que se o processo de trabalho constitui um lócus privilegiado da realização humana, ele também produz (em escala específica referente às condições em que é exercido) desgaste físico e mental”.
Agentes penitenciários têm papel importante no funcionamento das instituições prisionais, lidando diretamente com a população carcerária e sendo responsáveis pela custódia do apenado recluso. Trata-se de um grupo profissional pouco estudado, que trabalha em instituições totais ou fechadas2, de difícil acesso para investigações3. A complexidade de suas atividades se configura nas especificidades de uma instituição de controle e vigilância e no estigma associado às suas funções4.
Eles precisam trabalhar em equipe, demonstrar atenção, autocontrole, pró-atividade, iniciativa e capacidade de contornar situações adversas. Esses profissionais mantêm o ambiente de segurança nas prisões e estão frequentemente expostos a diversas situações geradoras de tensão, como ameaças e agressões. Trabalham sob pressão constante, sujeitos a risco de morte5 e com pouca visibilidade e reconhecimento social6.
A postura “sempre alerta e à espera constante”, gera ansiedade7 e esse “aguçamento sensorial necessário”3 leva ao maior desgaste psíquico. Estudos5,8,9 têm descrito que a natureza estressante e perigosa de trabalhar dentro do ambiente prisional pode repercutir na saúde desses profissionais através de doenças físicas, estresse, burnout, problemas familiares, ou incapacidade de exercer suas funções, além de vir a comprometer a segurança institucional.
Há algumas décadas discutem-se os efeitos negativos da organização do trabalho taylorista/fordista, destacando-se: a fragmentação do trabalho com separação entre concepção e execução, que associada ao controle gerencial do processo e à hierarquia rígida têm levado à desmotivação e alienação de trabalhadores, bem como a desequilíbrios nas cargas de trabalho10. Em comum com o método taylorista de gestão da produção, o trabalho pensante e de planejamento na instituição penitenciária restringe-se a um pequeno grupo, esperando da maioria a execução das atividades delegadas, com clara divisão entre quem planeja e quem executa.
O estresse foi definido por Selye11 como uma resposta orgânica não específica para situações estressoras ao organismo. Sua presença de forma moderada significa uma normal adaptação às demandas do dia a dia; quando excessivo, é uma manifestação de sofrimento psíquico com reações físicas e emocionais e os sintomas variam dependendo da fase em que se encontra12. Em suas pesquisas, Lipp e Guevara13 relatam sinais físicos que ocorrem com maior frequência: aumento da sudorese, tensão muscular, taquicardia, hipertensão, aperto da mandíbula, ranger de dentes, hiperatividade, náuseas, mãos e pés frios. Em termos psicológicos ocorrem sintomas como ansiedade, tensão, angústia, insônia, alienação, dificuldades interpessoais, dúvidas quanto a si próprio, preocupação excessiva, inabilidade de concentrar-se em outros assuntos que não o relacionado ao sofrimento, dificuldade de relaxar, ira e hipersensibilidade emotiva. Uma vez que o estresse não seja reduzido, através da remoção dos fatores que o geram ou do uso de estratégias de enfrentamento, ele poderá atingir sua fase final, quando doenças graves podem ocorrer nos órgãos mais vulneráveis, como enfarte, úlceras e psoríase. A depressão também faz parte do quadro de sintomas14.
O estresse psicológico, causado pela pressão e agitação da vida do trabalho, vem sendo muito investigado. Segundo a Organização Mundial de Saúde15, mais da metade dos trabalhadores, em geral de países considerados industrializados, julgam seu trabalho “mentalmente pesado”. Alguns fatores têm efeitos psicológicos adversos como o trabalho isolado, monótono, o que exige concentração constante, o trabalho em turnos, o trabalho sob a ameaça de violência, como por exemplo, no sistema prisional. Estresse psicológico e sobrecarga têm sido associados a distúrbios do sono, síndromes de burnout e depressão. Há também evidências de elevado risco de doenças cardiovasculares, particularmente as coronarianas e hipertensão. Nos últimos anos vem se destacando o construto estresse ocupacional, para Paschoal e Tamayo16 este é um enfoque mais abrangente que enfatiza tanto os fatores estressores organizacionais quanto suas respostas fisiológicas, psicológicas e comportamentais. Tal abordagem acentua o caráter relacional do conceito que atribui importância às percepções individuais como mediadoras do impacto estressor do ambiente de trabalho.
Segundo Harvey17, estudos têm documentado as reações emocionais da equipe prisional relacionadas com seu trabalho e têm usado diferentes termos para se referirem as dificuldades psicológicas enfrentadas por esses trabalhadores, como work stress, stress, burnout, tedium, psychological distress e trauma.
O sofrimento psíquico (psychological distress) é uma dificuldade emocional que associa sintomas psicológicos e físicos, sendo considerado9 um transtorno mental comum (TMC), caracterizado por sintomas não psicóticos como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas como dor de cabeça, dor abdominal, tosse ou fraqueza. Essas queixas são manifestações ou respostas a um tipo de sofrimento psicológico18,19 e não estão necessariamente associadas à existência de uma patologia orgânica diagnosticável.
Na pesquisa bibliográfica sobre sofrimento psíquico e estresse, o conceito de burnout surgiu em vários trabalhos e será analisado com destaque no item referente ao estresse, pela sua relevância para a compreensão do tema. Burnout é descrito20 como uma síndrome tridimensional composta por exaustão emocional, despersonalização e sensação de falta de realização pessoal; é o resultado de um processo crônico de estresse. Foi inicialmente identificado entre trabalhadores que lidam com pessoas doentes ou internadas, no entanto, não é uma psicopatologia do trabalho, mas da relação com os outros. Em outros termos, o burnout parece surgir quando as pessoas compartilham relações estressantes, crônicas e violentas com outras pessoas, o que acontece no exercício profissional do agente penitenciário.
A “psicodinâmica do trabalho” de Dejours21 concentra seus estudos na dinâmica saúde/doença e define o “sofrimento no trabalho” como o campo que separa a doença da saúde. Essa perspectiva teórica se concentra no impacto da organização do trabalho sobre o funcionamento psíquico do trabalhador: “quando estão bloqueadas todas as possibilidades de adaptação entre a organização do trabalho e o desejo dos sujeitos, então emerge o sofrimento” O sofrimento psíquico no trabalho surge como uma estratégia de não adoecimento: um espaço de luta contra o enlouquecimento e é nesse processo dinâmico entre saúde e doença que os trabalhadores criam estratégias defensivas individuais e coletivas para se protegerem21.
Para conhecer sobre a existência de sofrimento psíquico e estresse profissional entre agentes penitenciários, foi realizado levantamento bibliográfico sobre o tema, cuja metodologia e resultados serão apresentados a seguir.
A pesquisa bibliográfica que fundamenta este estudo contemplou os artigos das bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Web of Science e Scopus. O software Zotero foi utilizado para gerenciar as referências.
Na BVS, escolhendo como campos de busca o título, o resumo e o assunto, foram utilizados os descritores (incluindo suas formas no feminino e no plural): inspetor, agente ou guarda penitenciário, prisional ou prisão. E ainda “estresse psicológico”, “sofrimento mental”, “saúde mental”, “sofrimento psíquico” ou “estresse ocupacional”. Na Web of Science e Scopus (campos de busca: title, abstract e key) foram utilizados os descritores equivalentes em inglês: “prison agent”, “prison worker”, “prison staff”, “correctional staff” ou “correctional officers” e também “working conditions”, “occupational health”, “occupational safety”, “stress”, “mental health” ou “stress psychological”.
Inicialmente, a pesquisa foi aberta: os estudos poderiam pertencer a qualquer fonte, idioma e ano de publicação, seu resultado obteve 525 publicações. Após a leitura de todos os títulos e resumos excluíram-se os estudos: referentes à saúde dos prisioneiros, sobre outros grupos de profissionais que trabalham em prisões que não agentes, referentes a transtornos relacionados ao uso de substâncias, sobre delinquência juvenil e psiquiatria legal. Restaram 202 artigos dos quais foram excluídos os trabalhos repetidos (n = 51), aqueles publicados em outras línguas que não português, inglês, francês ou espanhol e os anteriores ao ano de 2000 (n = 31), uma vez que pesquisas sobre o tema aumentaram significativamente a partir desse período22.
Entre os 40 artigos selecionados, cinco não estavam livremente disponíveis, na íntegra, nos sites específicos e por esse motivo foram analisados a partir de seus resumos23-27. Todos os demais 35 artigos foram integralmente lidos e analisados. O material coletado foi classificado visando evidenciar: o estado do conhecimento em relação ao assunto, os fatores de risco e de proteção abordados, as estratégias de enfrentamento propostas para estes agravos à saúde mental dos trabalhadores e, finalmente, as lacunas no conhecimento e os aspectos que podem ser mais explorados em futuras pesquisas.
A revisão da literatura mostra que internacionalmente estudos com foco na saúde mental desses profissionais vêm despertando muito interesse acadêmico principalmente nos EUA e nas revistas sobre Justiça Criminal desse país. No Brasil, ainda são poucos os estudos sobre esse tema, concentrados nas revistas de Psicologia.
Mais da metade dos textos (n = 21) é produção norte-americana: 16 dos EUA e cinco do Canadá. A Europa também se interessa pelo tema (n = 11), com três artigos apresentando a realidade francesa, três sobre a Espanha e os restantes sobre o contexto da Itália, Reino Unido, Portugal, Polônia e Holanda. A produção da América Latina se limita à do Brasil, com quatro artigos brasileiros19,28-30: dois com pesquisas no Sistema Penitenciário de São Paulo, um no Rio Grande do Sul e um na Bahia/Salvador. Encontram-se ainda dois trabalhos realizados na Austrália, um na Turquia e outro na África do Sul.
As produções se intensificam gradualmente ao longo dos anos: oito entre 2000 e 2004, 15 entre 2005 e 2009 e 17 entre 2010 e 2014. Acompanhando todo o período percebe-se a relevância das revistas sobre Justiça Criminal: cinco delas apresentaram 11 artigos. A área da Psicologia/Psiquiatria tem produções a partir de 2005: nove revistas publicaram 11 artigos. Alguns jornais sobre o tema específico das prisões concentram estudos: Prison Journal (n = 05) e Journal of Correctional Health Care (n = 01). Revistas sobre Saúde Pública apresentaram apenas quatro trabalhos e sobre Saúde Ocupacional, três artigos. Periódicos sobre comportamento humano apresentaram dois artigos e os sobre trabalho e ergologia mais duas produções. Uma revista específica sobre estresse (Stress and Health) expôs um trabalho.
A maioria aborda o tema do estresse (n = 22), seguida do burnout (n = 12) e do sofrimento psíquico (n = 08). Entre as 40 publicações, temos 34 relatos de pesquisas, a maioria com abordagem quantitativa (n = 25), utilizando escalas de estresse, burnout, entre outras; dois estudos31,32 combinaram instrumentos quantitativos (questionários baseados em escalas psicométricas) e qualitativos (entrevistas semidirigidas e espaços nos questionários liberados para expressão escrita). Apenas três estudos brasileiros28-30 utilizaram exclusivamente o método qualitativo em suas pesquisas, por meio de entrevistas semidirigidas.
Quatro artigos são revisões de literatura e dois foram destinados à avaliação das propriedades psicométricas de escalas sobre estresse: Escala de Estresse no Trabalho para Agentes Penitenciários - WSSCO33 e Escala de Estresse Ocupacional - JDCS34. Entre as revisões sistemáticas da literatura, na Holanda em 2000, Schaufeli e Peeters35 analisaram a produção sobre estresse ocupacional e burnout em instituições correcionais. Posteriormente outras duas revisões foram realizadas no Canadá: em 2004, Dowden e Telier36 analisaram os preditores de estresse no trabalho de agentes penitenciários e desenvolveram meta-análise sobre o tema. Recentemente, em 2013, Finney et al.37 revisaram a literatura sobre estresse e burnout nesses profissionais, identificando as áreas em que intervenções podem vir a reduzir tais problemas. Outra revisão38 investigou sobre o estresse de mudança de turno entre agentes penitenciários.
Constata-se a tendência na utilização de escalas entre os estudos que abordam o estresse (Quadro 1). Algumas escalas medem especificamente o estresse no trabalho e outras, mais gerais, medem o estresse na vida. Três diferentes instrumentos aferem o sofrimento psíquico nos textos avaliados.
Outras medidas, não apresentadas no Quadro 1, surgiram no levantamento bibliográfico e foram utilizadas para: (a) avaliar o estresse fisiológico, através de mensuração de cortisol, colesterol, triglicérides, frequência cardíaca e pressão arterial, entre outros39; (b) medir burnout, sendo o Maslach Burnout Inventory40 o único instrumento utilizado para esse fim.
Dentre os doze artigos que abordaram o tema do burnout20,23,25,35,37,41-47, nove usaram o Maslach Burnout Inventory Survey35, que engloba três escalas: (a) exaustão emocional, que mede sentimentos de estar sobrecarregado e exausto pelo trabalho; (b) despersonalização, que afere a resposta insensível e impessoal em relação às pessoas com quem se trabalha; (c) realização pessoal, que avalia sentimentos de competência e realização bem sucedida na atividade. Os demais três artigos se referem a revisões de literatura.
Um último aspecto geral observado refere-se à diferenciação de gênero. Sete artigos abordam essa temática22,30,41-43,48,49 de forma diferenciada segundo o foco do texto: (a) o ambiente prisional predominantemente masculino leva as mulheres a enfrentarem desafios específicos em seu trabalho nessas instituições; (b) homens e mulheres têm estilos diferentes de lidar e se relacionarem com os presos, por exemplo, mulheres são menos propensas do que os homens em responder aos reclusos de forma impessoal ou com falta de atenção ou interesse; (c) características socialmente aceitas como femininas (compaixão, orientação familiar) podem ser desvalorizadas no ambiente prisional onde as noções de “resistência” e força física são muito respeitadas; (d) as diferenças entre os gêneros podem levar as mulheres a se sentirem pressionadas em concordar com as características do trabalho desempenhado pelos seus colegas homens.
Para Cheeseman et al.49 e Dial et al.22, gênero é um fator significante para estresse no trabalho mais do que qualquer outra variável demográfica, mesmo assim, na pesquisa de Griffin48 houve poucas diferenças entre ambos os sexos. Carlson et al.43 testaram a relação entre gênero e burnout em uma prisão de segurança máxima nos EUA e ao contrário de estudos anteriores, as mulheres agentes penitenciárias demonstraram maior sensação de realização pessoal e satisfação relacionada com o trabalho do que seus colegas do sexo oposto. Elas também seriam mais propensas a usar técnicas de enfrentamento ao lidar com situações estressantes46.
Os quatro artigos brasileiros encontrados se inserem em publicações sobre saúde: Psicologia Ciência e Profissão (n = 2), Estudos Psicológicos e Cadernos de Saúde Pública. Três deles utilizam a abordagem teórica da psicodinâmica do trabalho, de Dejours21, e metodologia qualitativa. Outra publicação utiliza duas escalas para medir estresse e sofrimento psíquico.
Dois trabalhos sobre o sofrimento psíquico de agentes penitenciários28,29 se originaram de pesquisa realizada em uma unidade prisional de regime fechado em São Paulo. O primeiro deles utiliza entrevistas para identificar várias situações ansiogênicas21 entre elas: risco constante de exposição à violência física, temor em relação à segurança de seus familiares, exposição a doenças como tuberculose, hepatite C e HIV, percepção da degradação de sua saúde mental, trabalho monótono, entre outras. A partir dessas descobertas, um serviço de saúde mental foi proposto e organizado na unidade pesquisada, oferecendo aos profissionais encontros individuais com estagiários de psicologia sob supervisão, durante a jornada de trabalho.
O segundo artigo29, também com abordagem qualitativa, se originou da pesquisa anterior e teve como objeto as experiências profissionais e o sofrimento psíquico relatado durante os atendimentos psicológicos. Os resultados demonstraram que diversas formas de manifestação da violência conferem condições para que o sofrimento psíquico surja entre esses trabalhadores. Também se evidenciou a presença de sintomas psicossomáticos, distúrbios do sono e o impacto sobre as relações fora do trabalho.
No Rio Grande do Sul, Tschiedel e Monteiro30 pesquisaram mulheres agentes penitenciárias através de entrevistas semiestruturadas. As autoras concluíram que a vivência de sofrimento psíquico está relacionada ao contexto da organização, condições e relações de trabalho. Elas sofrem com a precariedade das condições materiais e humanas de trabalho, com a falta de reconhecimento institucional e com a atividade da “revista íntima”, momento em que a visitante é revistada e precisa ficar sem roupa e agachada na frente da agente penitenciária. As agentes também relataram vivências de prazer relacionadas ao seu salário, ao horário de trabalho “flexível” (plantões) e à estabilidade no emprego. As estratégias defensivas apresentadas foram a negação e a racionalização.
O quarto artigo brasileiro19 originou-se de um estudo epidemiológico sobre sofrimento psíquico e estresse entre agentes penitenciários de Salvador/Bahia. Duas escalas foram utilizadas: o Self-Reported Questionnaire - SRQ2018 que afere sofrimento psíquico ou transtornos psíquicos menores e o Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos (ISSL)13 que avalia a existência de sintomas, tipo de estresse predominante (físico ou psicológico) e a fase em que ele se encontra (alerta, resistência, quase exaustão e exaustão). Entre os resultados, queixas de adoecimento foram apresentadas por 91,6% dos trabalhadores, manifestação de estresse persistente em 15,1% dos entrevistados e a prevalência de distúrbios psíquicos menores foi encontrada em 30,7% dos agentes penitenciários, índice maior que o apresentado por professores, metalúrgicos, trabalhadores de processamento de dados e de hospitais.
Sofrimento psíquico no trabalho foi o tema abordado em oito artigos17,19,26,28-30,50,51,53,54, entre eles os quatro trabalhos brasileiros que apontam várias situações ansiogênicas ligadas à precariedade das condições de trabalho dos agentes penitenciários: esvaziamento do sentido do trabalho, sensação de enclausuramento em algumas funções e representação social pejorativa de sua atividade29,30. Entre outros fatores de risco para o sofrimento no trabalho são apontados a exposição cotidiana à violência física, o temor em relação à segurança de seus familiares, o medo da exposição a doenças como tuberculose, hepatite C e HIV28.
Fernandes et al.19 verificaram distúrbios psíquicos menores (não psicóticos) entre esses trabalhadores que enfrentam um ambiente psicologicamente inadequado, condições infraestruturais insuficientes, longas jornadas de trabalho, falta de tempo para o lazer e inadequada organização do trabalho. Na França26 e no Canadá36 foram citadas como causadoras de sofrimento, as “missões paradoxais” ou a “dupla missão” ou o “conflito de papéis” dos agentes penitenciários, ou seja, o trabalho de custódia e vigilância concomitante ao de ressocialização ou reabilitação. Outra pesquisa no Canadá53 apontou que esses profissionais são mais expostos a fatores psicossociais adversos no trabalho e relatam mais problemas de saúde (como sofrimento psíquico, saúde regular ou ruim e uso de serviços de saúde ou social) do que uma amostra comparável de outros trabalhadores. Os fatores associados com o aumento do sofrimento psíquico foram o baixo apoio social no trabalho, e os conflitos com colegas e superiores, dentre outros.
A maioria dos artigos encontrados é sobre o tema do estresse. Estresse e burnout são dois constructos relacionados, mas distintos. Estresse em condições normais pode ser uma resposta adaptativa a situações difíceis, enquanto o burnout é uma resposta comportamental ao estresse que é debilitante, custosa e problemática43.
O trabalho de Finney et al.37 constatou que estresse no trabalho e burnout afetam entre 19-30% dos trabalhadores em geral. Ambos derivam de uma combinação de fatores de risco individuais e estressores organizacionais, seus efeitos são mais pronunciados nos agentes penitenciários do que na população em geral20,37, devido ao ambiente tenso, de alto risco e das exigências das tarefas52-54, o que também pode levá-los a ficarem mais suscetíveis a problemas físicos de saúde8,17. Estresse e burnout vivenciados pelos agentes penitenciários podem deixar ainda mais inseguro o ambiente laboral, levar a altas taxas de rotatividade entre os servidores, alto absenteísmo e baixa produtividade35.
Revisões de literatura35-37 apontam os fatores que mais contribuem para o estresse no trabalho prisional: problemas de relacionamento (com colegas, supervisores ou prisioneiros); sobrecarga de trabalho; baixo status social da profissão e a falta de apoio social. Também foram citados o “conflito de papéis” e as poucas oportunidades de promoção, que ao interagirem com fatores individuais como personalidade e conflitos familiares, podem gerar problemas de saúde mental e física. Conflito de papéis é definido como qualquer situação de demanda de trabalho conflitante, como ambiguidade de papéis. De acordo com Misis et al.52 existem agentes penitenciários orientados para a custódia que defendem abertamente as estratégias de punição para lidar com os presos e que não apoiam a reabilitação como uma filosofia correcional. Por outro lado, existem profissionais que acreditam na reabilitação enquanto objetivo correcional primário e que exercem sua função voltada para o aconselhamento. Os resultados indicam que agentes que veem seu trabalho mais orientado para o tratamento do preso teriam níveis mais elevados de estresse. Nos Estados Unidos, agentes penitenciários que têm percepções de características pessoais dos presos mais negativas (hostis, antissociais e frios) apresentam níveis mais elevados de estresse, o que coincide com a investigação sobre conflito de papéis: quanto mais conflito, mais estresse.
Percebem-se nas pesquisas algumas divergências em relação ao impacto das características individuais (gênero, etnia, idade, nível educacional, experiências na prisão) nos níveis de estresse no trabalho. Em alguns textos não foram encontradas relações estatísticas significativas22,32, ou com pequena capacidade explicativa de impacto no estresse ocupacional, indicando que outras características mais latentes ou menos explícitas, como a satisfação no trabalho, por exemplo, ou características da própria atividade (tipo de prisão, por exemplo) podem ter maior impacto no esforço de trabalho47. A variável “satisfação no trabalho” está intimamente ligada ao estresse49,56 sendo a mais forte preditora sobre quaisquer outras variáveis.
São vários os fatores de risco para estresse indicados nas pesquisas. De um modo geral, eles se relacionam principalmente com a sobrecarga de trabalho: falta de recursos materiais e humanos14,24; percepção do trabalho como sendo perigoso31,51,52; medo de contrair doenças como HIV/AIDS, hepatite e tuberculose51; nível de contato com os presos57,59; e conflito de papéis8,52. A rejeição da sociedade ou a percepção da imagem pública negativa também foi citada como fator de risco para estresse8,57, assim como a superlotação dos presídios31, concluindo-se que os agentes que atuam em prisões mais lotadas têm mais medo dos detentos e são mais estressados.
Destacando-se o tema do burnout, estudo na Espanha47 mostra que 43,6% dos agentes sofrem burnout severo e que os mais jovens apresentam atitudes mais negativas em relação a seus empregos (despersonalização) do que os mais velhos. Para Morgan et al.41, os agentes menos experientes também evidenciaram aumento dos níveis de despersonalização e exaustão emocional e diminuição dos níveis de realização pessoal. Já os mais velhos e mais instruídos relataram níveis elevados de realização pessoal.
O apoio social recebido dentro da prisão (pelos colegas e pelos supervisores) ameniza os efeitos da tensão do trabalho sobre a saúde, ele é um fator relevante e protetivo evidenciado nos estudos sobre estresse (incluindo burnout) e sobre sofrimento psíquico. Uma liderança de boa qualidade52 é analisada como um fator de proteção contra o estresse no trabalho, assim como uma de baixa qualidade se relaciona de forma significativa com ele37. Agentes que percebem apoio de seus supervisores ou chefes relataram menos estresse e níveis de satisfação mais elevados51,52.
Na pesquisa de Owen32 nos Estados Unidos, três variáveis se mostraram como fatores protetivos em relação ao estresse: altos níveis de satisfação no trabalho e de apoio social, além da percepção de estar no controle das situações relacionadas ao seu ofício.
Baseados nos resultados encontrados em suas pesquisas sobre o sofrimento no trabalho de agentes penitenciários, alguns estudos propõem estratégias de enfrentamento, com destaque para as relacionadas à formação profissional, ao suporte social e à oferta de espaços de acolhimento para reflexão, reestruturação e reorientação emocional.
Tradicionalmente, durante sua formação, esses profissionais aprendem que os infratores são “o inimigo” e que o seu trabalho é garantir que eles permaneçam sob controle dentro da penitenciária51. Autores sugerem uma abordagem diferente na formação, que permita uma maior reflexão sobre as condições de vida das pessoas presas. Na mesma direção, Moon e Maxwell8 apontam a necessidade de se reexaminar a forma como os agentes interagem com os presos e os procedimentos utilizados nas correções e no tratamento deles. Hartley et al.51 sugerem incluir informações contínuas e aprofundadas sobre doenças infecciosas na formação dos agentes, a fim de prevenir a contaminação de doenças e o estresse. Gould et al.46 propõem treinamento anual com foco específico nos sintomas de estresse e burnout, além do ensino do uso de técnicas efetivas em seu enfrentamento e gerenciamento.
É importante manter o foco na qualidade do suporte da chefia ou da supervisão53 e considerar o uso de um estilo mais participativo e flexível de liderança e gestão50, a fim de que as necessidades e os valores individuais dos agentes penitenciários possam ser considerados. O suporte social dos pares pode ser útil no enfrentamento e na prevenção do burnout41,46: Gould et al.46 sugerem a organização de grupos de diálogo entre os agentes, com ênfase no que lhes aflige em relação ao trabalho. As estratégias de intervenção a fim de reduzir o risco de estresse e burnout devem ser no sentido de melhorar a estrutura organizacional e o clima da instituição prisional37. Outra sugestão seria aumentar o número de reuniões de colaboração entre as gerências e os agentes penitenciários a fim de melhorar a comunicação entre eles15,36.
Investigou-se nos EUA39 um novo programa de redução de estresse e de riscos à saúde entre agentes penitenciários, baseado na autorregulação emocional, que incorpora uma série de técnicas de reestruturação e reorientação. Houve melhora significativa do grupo experimental quanto ao nível de colesterol, glicemia, frequência cardíaca, pressão arterial e em relação às perspectivas positivas. Também foram significativas as reduções do sofrimento psíquico em geral e os aumentos significativos de produtividade, motivação, clareza de metas e apoio percebido. Em três trabalhos brasileiros28-30 foi proposta a organização de um “serviço de assistência psicológica” a fim de acolher o sofrimento psíquico dos agentes, além de políticas públicas de valorização e qualificação profissional.
Estratégias disfuncionais como a negação e o abuso de substâncias devem ser desencorajadas, pois elevam os níveis de burnout em suas três dimensões46.
Sofrimento psíquico, estresse e burnout são constructos que se interrelacionam, mas que não são idênticos, porém seus fatores desencadeadores são muito parecidos. Podem ser consideradas teorias que nascem no contexto da explosão da produção e consumo no capitalismo e que se referem ao desenvolvimento de sentimentos negativos em conexão com a atividade do trabalho59.
A partir desses três grandes temas outros assuntos se destacam na abordagem do problema, como os conceitos de satisfação no trabalho, apoio social, riscos psicossociais, comprometimento organizacional, bem estar psicológico e violência. Os temas também se ampliam a partir dos fatores de risco e proteção revelados nas pesquisas como: sobrecarga de trabalho, falta de recursos materiais e humanos, nível de contato e percepções sobre o preso, superlotação, percepções sobre medo ou perigo, paradoxo punir/reeducar, estresse de mudança de turno, entre outros.
A diversificação das áreas temáticas dos periódicos que abordam o tema é um fator positivo, pois amplia a possibilidade de se obter novos conhecimentos e gerar resultados propositivos. Porém, percebe-se que o campo da saúde pública não vem dando ênfase às discussões sobre o sofrimento psíquico dessa categoria profissional e que a produção vem se concentrando em revistas com vocação de estudos em saúde mental e na área da criminologia22.
Algumas características relacionadas com o trabalho e a saúde de agentes penitenciários se mostram gerais como a violência dos ambientes prisionais discutida em vários artigos e também evidenciada por Santos60, que mostra no fenômeno da superlotação os riscos iminentes de ataques violentos entre os encarcerados e os agentes. Também geral é a necessidade de controle a fim de manter a segurança, sendo essa a maior preocupação dos agentes, em detrimento até de sua própria saúde61. O mal estar da privação da liberdade é outra peculiaridade enfrentada por esses trabalhadores, para Moraes3 “o mal está no ar”, se referindo à energia negativa ou pesada que circula em uma unidade prisional. Essas características nivelam a vivência profissional desses sujeitos que são apresentados nos estudos com relativamente pouca saúde física e problemas psíquicos associados aos problemas físicos17.
Questões específicas relacionadas à realidade de cada território são evidenciadas. Os EUA, país que mais encarcera no mundo, com 2.228.000 pessoas custodiadas em 201262 é o que mais produz academicamente sobre saúde mental de trabalhadores prisionais, porém com abordagem predominantemente criminológica e não de saúde (apenas uma publicação na temática psicológica), o que indica o interesse mais voltado para a indústria da prisão do que para a saúde dos profissionais que ali trabalham. Como se evidencia no trabalho de Dial et al.22, os temas abordados voltam-se para as preocupações gerenciais e administrativas, com foco na importância do apoio social interno (supervisão/liderança), treinamento, problemas causados pela superlotação, aumento da motivação e da produtividade.
Embora pesquisas sobre burnout tenham uma longa tradição na América do Norte e na Europa63, este levantamento bibliográfico mostrou que, entre profissionais prisionais, o tema é mais investigado na Europa e indica altos índices de incidência.
Os artigos brasileiros apesar de serem apenas quatro, abrangem 10% de toda a produção e são os únicos da América Latina. A abordagem dejouriana combinada com o método qualitativo demonstra uma visão ampla e complexa do problema com foco no bem estar do trabalhador.
No que tange à metodologia quantitativa, a mais utilizada nos artigos analisados, nota-se o desenvolvimento de dois novos instrumentos de verificação de estresse em agentes penitenciários33,55 e adaptação de outros já utilizados anteriormente (Quadro 1).
Apesar de ser cada vez maior o número de agentes mulheres, elas trabalham em um ambiente projetado para custodiar e para o labor de pessoas do sexo masculino. Elas atuam tanto em unidades masculinas quanto femininas, porém em cada uma delas suas funções diferem, assim como o tipo de sofrimento e estresse vivenciados. Nesse sentido, elas se adaptam ao ambiente muito mais do que o ambiente se adapta a elas41.
As estratégias de enfrentamento sugeridas nos artigos encontrados (formação, suporte social e atendimentos psicológicos) também foram evidenciadas em outros trabalhos3,64,65. Elas são consideradas importantes e viáveis, porém apontam mais para um esforço do próprio trabalhador em se qualificar, dar suporte aos seus pares e se “tratar” do que responsabilizam as empresas ou os governos pela negligência com as condições de trabalho ofertadas e seus impactos na saúde dos agentes penitenciários. Na visão de Constantino et al.66, se os estudos identificam que fatores de estresse estão relacionados tanto a questões individuais quanto aos aspectos organizacionais do trabalho, será mais eficiente, a fim de prevenir e minimizar os efeitos desse problema, envolver estratégias em ambos os níveis.
Nesta revisão da literatura demonstra-se o aumento gradativo da produção científica sobre estresse e sofrimento psíquico do agente penitenciário, um trabalhador invisível e desvalorizado, mas imprescindível na estrutura social. São poucas as investigações frente ao aumento constante do número de unidades prisionais nos países.
Quando os agentes penitenciários não dispõem dos recursos necessários para realizar seu trabalho de forma otimizada (por exemplo, falta de pessoal, falta ou inadequação de equipamentos), quase a metade experimenta altos níveis de estresse27. Durante as três décadas passadas muitas pesquisas examinaram os fatores que contribuem para o estresse no trabalho, percebendo-se a importância de analisar criticamente os estressores organizacionais, a fim de contribuir para a constituição de ambientes e trabalhadores mais saudáveis20. As características individuais podem moderar os efeitos do estresse no trabalho, no entanto, elas se tornam pouco úteis em condições de estressores organizacionais duradouros ou esmagadores37.
É importante investir não apenas em nível individual, mas também no contexto do sistema organizacional usando uma perspectiva psicossocial para entender as dificuldades e propor estratégias de mudança a fim de melhorar as condições de trabalho. É relevante frisar que no universo penitenciário, a visão dos seus agentes a respeito da dinâmica do ambiente prisional é apenas uma das percepções possíveis, dentre os diferentes atores envolvidos nesse cotidiano. Outras versões também devem ser consideradas na elaboração de projetos, programas ou políticas públicas.
Um objeto tão complexo quanto a saúde mental, sendo pesquisado em um ambiente violento e insalubre onde se inserem profissionais que presenciam diariamente o sofrimento da privação da liberdade e que têm uma missão perigosa e com poucas retribuições simbólicas, deveria ser investigado também de forma mais complexa. São muito raras as pesquisas que utilizam abordagens qualitativas a fim de compreender mais profundamente seus objetos, principalmente no que diz respeito à análise das múltiplas relações que se travam em uma instituição prisional. Como demonstrado anteriormente, o fator de proteção contra o sofrimento no trabalho mais destacado nas pesquisas analisadas foi o “suporte social” que implica na análise dessas relações. Escutar esses homens e mulheres trabalhadores pode dar mais sentido aos resultados encontrados.
É importante notar que a prevenção e a atenção à saúde mental de agentes penitenciários beneficiam não só os profissionais prisionais, mas também suas famílias, o preso, a família do preso e a sociedade como um todo.