versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.2 São Paulo ago. 2019 Epub 02-Set-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190151
A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome complexa, de mau prognóstico e com estigma de alta mortalidade.1 A prevalência atual estimada nos Estados Unidos é de seis milhões de casos, com uma incidência prevista de mais dois milhões de pacientes até 2030.2 No Brasil, especificamente, ocorreram mais de 26 mil mortes por IC em 2012, com aproximadamente 230 mil internações sendo atribuídas a essa doença.3
Os principais sintomas da IC incluem dispneia progressiva, fadiga, intolerância ao esforço físico e sinais de sobrecarga volêmica, gerando redução na capacidade funcional e qualidade de vida dos pacientes e aumentando consideravelmente o risco de morbimortalidade.4 Nesse sentido, não é raro que o consumo de oxigênio de pico (maxVO2) seja, em média, aproximadamente 50% menor em pacientes com IC quando comparados a indivíduos saudáveis pareados por variáveis como idade e sexo.5 Por sua vez, o teste de exercício cardiopulmonar (TECP) é um método amplamente utilizado e confiável nesse cenário, com papel consistente na estratificação de risco de pacientes com IC e com diversas variáveis obtidas com valor prognóstico consolidado. O maxVO2 é um importante marcador de mortalidade em 1 ano, superando a fração de ejeção e a pressão capilar pulmonar; sendo utilizado como Classe I para definição de candidatura para transplante cardíaco.6 Outros marcadores prognósticos obtidos do TECP, como a medida da eficiência ventilatória através da inclinação VE/VCO2, a presença de ventilação periódica, inclinação da eficiência de captação do oxigênio (OUES), a recuperação da frequência cardíaca no primeiro minuto, a competência cronotrópica e a pressão parcial de dióxido de carbono no repouso (PetCO2) se mostraram marcadores prognósticos importantes nesta população.7,8
Os pacientes com IC são comumente classificados de acordo com a sua fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE); no entanto, o valor prognóstico da FEVE pode ser controverso.9 Seguindo esse raciocínio, apesar da medida da FEVE ser um método validado e utilizado amplamente há décadas, a avaliação da deformação miocárdica através do Strain Longitudinal Global (SLG) vem demonstrando maior eficácia na análise do desarranjo global do ventrículo esquerdo quando comparado à medida da FEVE. O SLG pode fornecer valor adicional na estratificação prognóstica da IC, independentemente dos valores da FEVE, e servir como instrumento adicional na tomada de decisão terapêutica em situações clínicas específicas nessa população, como: implante de cardiodesfibriladores e ressincronizadores, indicação de dispositivos de assistência ventricular e seguimento de pacientes com cardiotoxicidade por quimioterápicos.10
Recentemente, Park et al.11 avaliaram o valor prognóstico do SLG em mais de 4 mil indivíduos com IC aguda, divididos em FEVE preservada (≥50%), midrange (40-49%) e reduzida (<40%). O desfecho primário analisado foi mortalidade por todas as causas, avaliada num período de 5 anos. Os pacientes com FEVE reduzida e FEVE preservada apresentaram menor e maior SLG, respectivamente. O SLG, mas não a FEVE, foi um preditor independente de mortalidade em todo o grupo de pacientes. Não houve diferença significativa de mortalidade entre os 3 grupos; todavia, aqueles com FEVE reduzida tiveram mortalidade ligeiramente maior comparados com FEVE midrange ou preservada (41%, 38% e 39%), respectivamente.11 Corroborando com esses resultados, Sengelov et al.12 em análises ecocardiográficas de mais de mil pacientes, mostraram que o SLG foi o maior preditor de mortalidade em pacientes com IC e FEVE reduzida. Mesmo após ajuste para diversas variáveis, como idade, sexo, colesterol, pressão arterial, frequência cardíaca, cardiopatia isquêmica e parâmetros ecocardiográficos convencionais, nenhum outro parâmetro ecocardiográfico permaneceu como preditor independente após ajuste para essas variáveis. Portanto, apesar da necessidade de ensaios clínicos randomizados futuros para confirmação da aplicabilidade do método na prática clínica, as evidências apontam para uma superioridade do SLG para a predição de mortalidade em pacientes com IC, mais do que a própria FEVE.
Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Maia et al.13 conduziram um estudo transversal para verificar a correlação entre achados do SLG e parâmetros do TECP em uma amostra composta por 26 pacientes com IC de ambos os sexos, sedentários, classe funcional II e III da NYHA, FEVE reduzida e idade média de 47 anos. Os pacientes apresentaram um strain médio de -7,5 ± 3,92, maxVO2 de 19,09 ± 9,52 mL.kg.min, inclinação de VE/VCO2 de 39,43 ± 9,91, recuperação da frequência cardíaca (RFC) de 19,65 ± 17,42 e um T1/2VO2 (s) de 168,61 ± 43,90. Foi observada uma correlação estatisticamente significativa entre o SLG e todas as variáveis do TECP analisadas, leia-se: RFC, maxVO2, inclinação de VE/VCO2 e T1/2VO2 (s).
Em relação à RFC no primeiro minuto pós-esforço, naqueles pacientes cuja redução da FC foi mais demorada, observou-se uma forte correlação com valores mais baixos no SLG. Quando a FEVE foi confrontada aos dados obtidos pelo TECP, houve correlação significativa apenas com o maxVO2 (direta) e com o T1/2VO2 (s) (inversa). Todavia, o SLG foi capaz de predizer todas as variáveis analisadas pelo TECP. Em síntese, a mensagem central do estudo é a demonstração da correlação da capacidade funcional e de outras variáveis do TECP ao SGL, ambos com papel prognóstico estabelecido, e a demonstração de que o SLG pode ser mais preciso para classificação da gravidade dos pacientes com IC comparado à FEVE, o que agrega importante conhecimento e possíveis aplicações futuras nesse cenário.
Entretanto, no estudo de Maia et al.13 há ressalvas importantes que devem ser consideradas. O baixo tamanho da amostra é uma limitação importante do estudo, o que não permite que os dados sejam extrapolados e usados ainda de maneira rotineira na prática clínica. O estudo também não teve desenho e poder para a demonstração do impacto prognóstico dos achados. Por outro lado, os dados corroboram com achados prévios da literatura, indicando que quanto menor o valor encontrado no SLG encontrado, menor tende a ser a capacidade funcional do indivíduo; esses dados são relevantes, pois predizem pior prognóstico. Esses achados ajudam a abrir novas portas e perspectivas para maiores estudos nesse cenário, os quais podem confirmar as importantes mensagens apresentadas na literatura e fortalecida pelos autores brasileiros.