versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.12 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014RC2729
Trombocitopenia neonatal aloimmune (TNA) é uma doença em que a mãe produz anticorpos contra antígenos plaquetários fetais herdados do pai que estão ausentes na mãe.(1-3) É o equivalente plaquetário da doença hemolítica do feto e do recém-nascido por incompatibilidade RhD. Entretanto, a TNA afeta a primeira gestação e pode causar hemorragia intracraniana (HIC), com tendência a ocorrer mais precocemente e com apresentação mais grave nas gestações subsequentes.(1-5)
Relatamos o caso de uma mulher de 37 anos com TNA diagnosticada no primeiro filho e a estratégia utilizada para conduzir esta segunda gestação de risco.
Uma mulher branca de 37 anos, natural de São Paulo, Brasil, deu à luz um bebê do sexo masculino em fevereiro de 2009, por parto vaginal (40 semanas), peso ao nascimento 3510g, Apgar de 9 a 10, sem complicações obstétricas. Em menos de 24 horas de vida, o recém-nascido apresentou trombocitopenia grave com petéquias (14.000/mm3), apesar de hemoglobina e leucograma normais (Tabela 1) sem infecções concomitantes. O bebê foi transferido para a unidade de terapia intensiva neonatal (UTI neonatal) para investigação.
Tabela 1 . Parâmetros hematimétricos do primeiro recém-nascido até a alta hospitalar
26/2 | 27/2 | 28/2 | 2/3 | 3/3 | 4/3 | 5/3 | 6/3 | 8/3 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
D1 | D2 | D3 | D5 | D6 | D7 | D8 | D9 | D11 | |
Eritrócitos (mm3) | 5,05 | 4,89 | 4,16 | 3,57 | 3,79 | 3,32 | 3,31 | 3,28 | 3,27 |
Hemoglobina (g/dL) | 16,5 | 15,6 | 13,9 | 11,3 | 12,4 | 10,6 | 11,1 | 10,5 | 10,3 |
Hematócrito (%) | 49,5 | 48,2 | 41,9 | 35,8 | 38,1 | 32,6 | 33,5 | 31,2 | 31,6 |
VCM (fL) | 97,6 | 98,6 | 100,7 | 100,3 | 100,5 | 98,2 | 99,7 | 95,1 | 96,6 |
HCM (g/dL) | 33,4 | 32,3 | 33,2 | 31,7 | 32,5 | 32,5 | 33,6 | 33,8 | 32,7 |
RDW (%) | 15,1 | 16,5 | 15,7 | 15,0 | 15,8 | 15,5 | 14,9 | 15,6 | 16,6 |
Leucócitos (mm3) | 37.200 | 25.500 | 19.700 | 12.900 | 18.300 | 19.000 | 17.800 | 14.000 | 12.000 |
Plaquetas (mm3) | 14.000 | 21.000 | 20.000 | 9.000 | 16.000 | - | 27.000 | 51.000 | 81.000 |
A contagem de plaquetas teve o menor índice no 4º dia (9.000/mm3), mesmo com transfusões diárias de plaquetas e administração de imunoglobulina IV 1g/kg. No 8º dia de vida, as plaquetas finalmente chegaram a 51.000/mm3. O bebê teve alta no 9º dia de vida, com contagem plaquetária de 81.000/mm3 e sem complicações hemorrágicas.
A genotipagem de antígenos plaquetários humanos (HPA) mostrou que a mãe era HPA-1b1b, o pai HPA-1a1a, e a criança HPA-1a1b (Figura 1). Os anticorpos maternos anti-HPA-1a foram detectados por pesquisa de anticorpos antiplaquetários (MAIPA, monoclonal immobilization of platelet antigens), que confirmou o diagnóstico de TNA.
Esta paciente engravidou novamente em março de 2012. O bebê foi classificado como risco padrão de sangramento e foi administrada imunoglobulina intravenosa (IgIV) 1g/kg/semana, a partir da 17ª semana. Foram realizados exames de ultrassonografia periódicos para monitorar hemorragia intracraniana (HIC) fetal. Na 20ª semana, foi realizado MAIPA no soro da mãe, que confirmou a presença de anti-HPA-1a.
Em vez de cordocentese, optou-se por seguimento não invasivo através de MAIPA quantitativo para avaliar o risco de trombocitopenia neonatal. A pesquisa foi feita na 25ª, 29ª e 32ª semanas e os resultados foram 29UI/mL, 21,69UI/mL e 32,51UI/mL, respectivamente (Figura 2). Foi iniciada prednisona 40mg/dia VO na 32ª semana e optou-se por parto cesáreo para minimizar o risco de sangramento durante o parto. Além disso, doadores HPA-1b1b foram agendados para doação de plaquetas por aférese próximo à data provável do parto.
Figura 2 . Curva de titulação de anti-HPA-1a no soro materno durante a segunda gestação, pela técnica de MAIPA (Monoclonal immobilization of platelet antigens)
A mãe teve anemia moderada durante a gestação (menor concentração de Hb=8,7g/dL na 36ª semana). Excluiu-se a hipótese de anemia hemolítica por IgIV devido a níveis normais de desidrogenase lática (DHL) (383mg/dL) e teste direto da antiglobulina negativo. Como os níveis de ferro (87µg/dL) e ferritina (47,9hg/mL) estavam normais, a anemia foi considerada dilucional e a IgIV não foi interrompida.
Apesar do parto estar agendado para a 38ª semana, a gestante entrou em trabalho de parto com 37 semanas e o bebê nasceu pesando 2750g e com Apgar 9 a 10, sem petéquias ou equimoses, com contagem plaquetária de 59.000/mm3. Ele permaneceu na UTI neonatal para monitoramento contínuo. Os exames de ultrassom intracraniano e abdominal foram normais. No 2º dia de vida, a contagem plaquetária era de 99.000/mm3, tendo alta no 3º dia, assintomático e com 150.000 plaquetas/mm3. Não foi necessário realizar transfusões de plaquetas.
A TNA ocorre em 1:1.000 nascidos vivos e, em casos extremos, evolui para HIC com comprometimento neurológico grave em 10 a 22% das crianças; 75% dos casos de sangramento ocorrem antes do nascimento.(4) Apesar de ser a causa mais frequente de trombocitopenia grave em fetos e neonatos e a causa mais comum de HIC em recém-nascidos,(4) é subdiagnosticada na prática clínica de rotina. Apenas 37% dos casos graves são detectados quando não há triagem pré-natal.(2) Os anticorpos anti-HPA-1a são responsáveis por mais de 80% dos casos em indivíduos caucasianos; anti-HPA-3a, -4a e -5a também foram descritos.(1) As mães têm o raro genótipo HPA-1b1b, ao passo que os fetos herdam do pai um alelo HPA-1a.
Deve-se suspeitar de TNA em um feto com sangramento intracraniano ao ultrassom e em neonatos com hemorragia ou trombocitopenia grave não justificada e/ou isolada. A mãe apresenta contagem normal de plaquetas e não tem história de doença autoimune ou trombocitopenia induzida por drogas.(1-3)
A investigação de TNA deve ser realizada em qualquer recém-nascido com trombocitopenia <50.000/mm3 não justificada, independente da causa presumida.(2) O diagnóstico é feito por genotipagem plaquetária, que confirma a incompatibilidade HPA materno-fetal, além da detecção de anticorpos anti-HPA no soro da mãe.(1)
Há uma tendência de optar-se pelo monitoramento não invasivo durante a gestação, considerando-se que 1,3% dos casos de morte fetal por procedimento e 5,5% dos casos de complicações obstétricas por gestação afetada foram atribuídos à cordocentese.(2,5-8) O valor preditivo do MAIPA quantitativo na trombocitopenia aloimune neonatal foi descrito por Bertrand et al.(9) em 2005 e os resultados foram confirmados por Killie et al. em 2008.(10) O papel exato das medidas quantitativas sequenciais de anti-HPA ainda não foi estabelecido, mas o desaparecimento dos anticorpos ao longo da gestação parece ter um melhor prognóstico.(11)
O tratamento materno da TNA(2,4-8,11-14) é baseado no desfecho da primeira criança afetada e classifica-se como: (a) risco padrão: primeiro filho com plaqueta >20.000/mm3 e sem história de sangramento; (b) alto risco: plaqueta <20.000/mm3 ou sangramento neonatal; (c) risco muito alto: sangramento fetal entre 28 e 36 semanas; e (d) risco extremamente alto: sangramento fetal antes de 28 semanas. O tratamento consiste em infusões semanais de IgIV, com variação na dose (1 a 2g/kg/semana) e no momento de início (20 semanas ou antes) em função do risco. As mães de alto risco recebem doses maiores de IgIV e prednisona oral 0,5 -1mg/kg a partir da 16a semana para gestação de risco muito alto, ou a partir de 12 semanas para as de risco extremamente alto.(4,6,12) Parto cesáreo parece ser mais seguro do que o vaginal, especialmente quando a contagem plaquetária fetal não é conhecida.(2,5,6,14)
A transfusão de plaquetas HPA compatíveis está indicada nas primeiras 24 horas de vida quando a contagem plaquetária do recém-nato é inferior a 30.000/mm3 ou quando há sinais de sangramento.(5,15) Não se recomenda IgIV isolada, pois há uma demora de 24 a 48 horas para o efeito clínico, havendo risco de sangramento no sistema nervoso central (SNC) nesse período.(5) Os doadores de plaquetas HPA-1b1b por aférese devem ser contatados para doar próximo à data provável do parto. Outra opção é a mãe doar plaquetas, quando possível.(15) A imunoglobulina IV 1g/kg por 2 dias pode ser associada à transfusão de plaquetas no recém-nascido nos casos graves.(5,15)
A trombocitopenia neonatal aloimune é uma doença grave e subdiagnosticada, que afeta o primeiro filho e está associada à morbidade significativa. O monitoramento mais amiúde durante a gestação com ultrassonografia seriada e o tratamento materno com imunoglobulina IV e/ou corticosteroides e transfusão de plaquetas HPA compatíveis no recém-nato pode propiciar um suporte médico adequado para esta doença e reduzir a incidência de sequelas neurológicas no recém-nascido.