versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.32 no.4 São Paulo 2020 Epub 10-Fev-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192019068
O estudo da emissão superaguda, muito utilizada por sopranos, representa um desafio no estudo da voz por falta de uma definição precisa. É comum que os cantores utilizem o termo superagudo (ou hiperagudo) para se referir às notas acima do limite superior habitual da extensão vocal de uma soprano, o dó 5 (≈ 1.050 Hz). De fato, alguns estudos sugerem que as notas acima de dó 5 sejam consideradas superagudas(1-3). Na ausência de uma definição, optou-se por adotar a terminologia utilizada pelos cantores.
Historicamente, acredita-se que a proximidade pessoal entre as cantoras e os compositores tenha colaborado para que as notas superagudas fossem escritas, formalizando essa emissão no canto lírico(4). A personagem da Rainha da Noite, na ópera “A Flauta Mágica”, que Mozart escreveu para uma de suas esposas(4) é um exemplo dessa característica. Essa prática se consolidou no Bel Canto, durante o Romantismo, por meio de compositores como Bellini, Rossini e Donizetti(4).
Outras dúvidas a respeito dessa emissão envolvem o mecanismo de produção e a variabilidade da qualidade vocal entre cantoras profissionais e amadoras(2). Além de existir uma confusão a respeito dos superagudos e dos registros vocais de assobio (whistle) ou registro de flauta (flageolet), a falta de informações objetivas e a divergência entre cantores e cientistas da voz contribuem para que ainda não haja um consenso. Alguns autores acreditam que essa emissão apresenta características acústicas e ajustes fonte-filtro que caracterizam registros vocais(5) já conhecidos como: registros de flauta (flageolet), de apito (whistle) ou de sino (bell)(2). A qualidade da voz, entretanto, pode ser soprosa e fraca(6), semelhante ao som de uma flauta (fluty)(7) ou forte e brilhante(1,6) a depender do treinamento vocal da cantora. Assim, alguns estudos tentaram relacionar o conceito de registro vocal com a emissão superaguda(2,7). Para os cantores, por outro lado, os registros de assobio ou de flauta não são suficientemente intensos para preencher uma sala de concerto e isso inviabilizaria o uso dos superagudos em performances para o público.
Além da atividade artística, muitos cantores brasileiros atuam como professores de canto(8) e, por isso, buscam informações teóricas que os ajudem a construir as vozes de seus alunos(9), pautando-se em outros elementos além de sua experiência empírica com o canto. Dessa forma, conhecer mais detalhes sobre os superagudos fornecerá subsídios práticos às cantoras para orientar a própria produção vocal e a de seus alunos. Também, os profissionais ligados ao canto (fonoaudiólogos, professores de canto e médicos otorrinolaringologistas) terão informações úteis para lidar com as queixas relacionadas à emissão superaguda.
Ainda que a quantidade de publicações sobre a emissão superaguda tenha aumentado desde 2010, não existem trabalhos que investiguem a autopercepção do cantor durante essa emissão. As pesquisas nessa área exploram os fenômenos acústicos e os ajustes de trato vocal relacionados à emissão de superagudos(1,2,7,10), desconsiderando a percepção individual do cantor que os produz.
Assim, considerando-se a emissão aguda como a base da emissão vocal de uma soprano, o objetivo deste trabalho foi descrever a emissão de superagudos em sopranos profissionais por meio da avaliação perceptivo-auditiva da voz feita por fonoaudiólogos e de professores de canto e do autorrelato das cantoras.
Trata-se de um estudo descritivo com análise de dados quantitativos e qualitativos aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo sob o parecer 107/10.
Cinco sopranos profissionais participaram voluntariamente da pesquisa após convite feito por meio de contato pessoal dos pesquisadores. Todas elas se voluntariaram para participar da pesquisa por considerar a emissão superaguda um tema controverso e necessário na pedagogia vocal de uma soprano em formação. Como critérios de inclusão, a soprano deveria ter a música como atividade profissional há pelo menos 5 anos, ser capaz de executar a nota superaguda desta pesquisa (ré 5, ≈ 1.175 Hz) com conforto, em performances públicas, e não apresentar queixas vocais ou de saúde geral no momento da gravação. Todas as cantoras assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O trecho musical escolhido (dueto Fini, me lassa, da ópera I Puritani de Vincenzo Bellini) continha uma nota superaguda (ré 5, ≈ 1.175 Hz) precedida por uma nota aguda (lá 4, ≈ 880 Hz), emitidas, respectivamente, com as vogais /a/ e /e/, conforme mostrado na Figura 1. Este trecho foi escolhido por representar a realidade profissional de uma soprano lírico-ligeiro ou lírico-coloratura(4), sendo capaz de emitir notas agudas e superagudas, repetidas vezes e com qualquer vogal. Além disso, a nota aguda serviu de parâmetro de comparação para a avaliação perceptivo-auditiva, sendo considerada como a emissão basal da soprano.
Figura 1 Trecho do dueto Fini, me lassa da ópera I Puritani de Vincenzo Bellini. As notas em destaque correspondem à nota aguda (lá 4, ≈ 880 Hz) e à nota superaguda (ré 5, ≈ 1.175 Hz)
Antes da gravação, a participante realizou aquecimento vocal durante 10 minutos. Em seguida, ela foi posicionada em pé, a uma distância fixa do pedestal no qual se situava o microfone (40 cm da boca em ângulo de 45° a fim de evitar distorção pela intensidade da voz no canto lírico). Para garantir esta distância, utilizou-se uma ripa de madeira afixada paralela e lateralmente ao corpo do microfone. As vozes foram captadas na frequência de amostragem de 44.1 kHz diretamente pelo programa Audacity 1.3.12-beta (Unicode), computador Dell, Windows XP, placa de som Soundblaster 2.1. O microfone utilizado foi da marca Shure® SM 58, unidirecional dinâmico (cardioide). O material coletado constava do trecho do dueto Fini, me lassa apresentado à cantora por meio de fones de ouvido supra-aurais e de um tocador de MP3 da marca HYUNDAI modelo HY231N/2GB para que não houvesse alteração na altura das notas do trecho musical.
Após a gravação da voz, a soprano foi submetida a uma entrevista semidirigida sobre a emissão de notas superagudas. A entrevista continha três questões abertas que investigaram as sensações durante a emissão dos superagudos:
1. Durante a emissão do superagudo, quais são as sensações no seu corpo?
2. Durante a emissão do superagudo, há movimentação da laringe? Como?
3. Há a necessidade de se realizar algum “ajuste” para que a emissão do superagudo seja possível?
Essa entrevista foi conduzida de acordo com o Critérios Consolidados para Pesquisa Qualitativa (COREQ) propostos por Tong et al.(11) considerando-se as características pessoais do entrevistador, a relação pessoal deste com os sujeitos de pesquisa, o desenho de estudo, a seleção dos participantes, os procedimentos de coleta, a análise dos dados e o relato dos resultados. Na ocasião da coleta, o entrevistador era estudante de Fonoaudiologia e cantor lírico profissional do sexo masculino. Ele mantinha relação profissional com todas as participantes desta pesquisa e as convidou pessoalmente ou por meio de contato telefônico para participarem do estudo. A seleção dos sujeitos foi feita de maneira intencional de modo a recrutar sopranos capazes de emitir a nota superaguda. A entrevista durou entre cinco e dez minutos e foi gravada com os mesmos equipamentos utilizados para a gravação da voz. As entrevistas foram analisadas utilizando-se a técnica de análise de conteúdo após a transcrição ortográfica realizada no Microsoft® Word para Mac (versão 16.17) e as citações principais foram transcritas para compor os resultados desta pesquisa.
Após a gravação da voz, os pesquisadores selecionaram os trechos cantados e os gravaram em seis Compact Discs (CDs) que foram entregues a três fonoaudiólogos especialistas em voz e três professores de canto, todos com, no mínimo, três anos de experiência com cantores líricos. Os avaliadores também receberam as instruções de avaliação e uma escala visual-analítica para que pudessem atribuir notas de 0 a 10 para os itens: brilho, loudness, metal, vibrato e soprosidade, sendo que 0 representou ausência completa desses aspectos no trecho cantado e 10 referiu-se ao grau máximo para cada um desses itens de acordo com a subjetividade de cada avaliador, sem que as definições formais fossem apresentadas. Para o item ressonância, entretanto, a avaliação era feita em relação à posição da voz no eixo horizontal de modo que 0 equivalia a uma ressonância mais anterior (anteriorizada) e 10 a uma posição mais posterior. O desenvolvimento desse instrumento de avaliação considerou esses seis itens por fazerem parte de um vocabulário comum aos fonoaudiólogos e aos professores de canto e por serem considerados, pelas sopranos, parâmetros adequados para se avaliar a qualidade da voz cantada. Os ajustes de trato vocal como abertura de boca, posição de língua e de laringe não foram contemplados neste instrumento. Sabendo-se que a análise perceptivo-auditiva da voz pode orientar o aprimoramento vocal de uma cantora profissional ou em formação(12), este instrumento foi desenvolvido para direcionar a análise sem que esses aspectos tivessem seus conceitos apresentados. Desse modo, cada avaliador julgou a voz da soprano de acordo com sua experiência prévia em voz cantada. Ainda, os resultados de autopercepção das sopranos não foram considerados para desenvolver esse instrumento. Todos os avaliadores foram orientados a utilizar canetas de cores diferentes para analisar as emissões aguda e superaguda, podendo ouvi-las quantas vezes julgassem necessário.
As notas atribuídas pelos fonoaudiólogos e professores de canto a cada emissão vocal foram tabuladas no Microsoft® Excel para Mac (versão 16.17) e analisadas no IBM® SPSS Statistics, versão 23. Utilizou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov para avaliar a distribuição normal dos dados e, a partir deste, optou-se pela utilização de testes não paramétricos para a análise dos dados quantitativos, sendo Wilcoxon para variáveis contínuas (brilho, loudness, metal, vibrato e soprosidade), Homogeneidade marginal para a variável nominal (ressonância) e o Coeficiente de Concordância de Kappa para a comparação entre as avaliações de fonoaudiólogos e professores de canto. Em todos os testes, considerou-se alfa de 0,05 e intervalo de confiança de 95%. Para analisar o autorrelato das cantoras, partes da entrevista foram transcritas em citações para compor os resultados finais deste trabalho.
As participantes da pesquisa apresentaram média de idade e desvio padrão (DP) de 31,40 (± 1,74) anos e tempo de profissão médio de 6,40 (± 1,96) anos. As cantoras se autorreferiram como sopranos lírico-ligeiro (S1 e S4) ou lírico-coloratura (S2, S3 e S5). Os dados da amostra estão descritos na Tabela 1.
Tabela 1 Caracterização da amostra quanto à idade, ao tempo de profissão e à subclassificação vocal autorreferida
S1 | S2 | S3 | S4 | S5 | Média (± DP) | |
---|---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 30 | 34 | 33 | 30 | 30 | 31,40 (± 1,74) |
Subclassificação vocal autorreferida | Lírico-ligeiro | lírico-coloratura | lírico-coloratura | Lírico-ligeiro | lírico-coloratura | |
Tempo de profissão (anos) | 10 | 7 | 5 | 5 | 5 | 6,40 (± 1,96) |
Legenda: DP = desvio padrão; S1 = sujeito 1; S2 = sujeito 2; S3 = sujeito 3; S4 = sujeito 4; S5 = sujeito 5
Comparando-se a emissão da nota superaguda com a nota aguda, os fonoaudiólogos especialistas em voz atribuíram maiores escores, com significância estatística, para loudness (p = 0,00), metal (p = 0,00) e vibrato (p = 0,00). Nesse grupo, a emissão superaguda foi considerada mais brilhante, menos soprosa e com uma ressonância anteriorizada. Os professores de canto descreveram a emissão superaguda como brilhante (p = 0,00), com loudness elevada (p = 0,01), metálica (p = 0,00), com vibrato (p = 0,00) e menos soprosa (p = 0,00) e também consideraram uma ressonância anteriorizada nesta emissão. Ao comparar a avaliação dos dois grupos de profissionais, não há concordância (kappa ≤ 0,01) para nenhum dos parâmetros avaliados. A Tabela 2 mostra a descrição e a comparação das avaliações dos dois grupos.
Tabela 2 Média das notas atribuídas a cada um dos parâmetros avaliados por três fonoaudiólogos especialistas em voz (F) e três professores de canto (PC) e comparação das avaliações dos dois grupos (F X PC)
F | PC | F X PC | ||||||||||
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Mín | Máx | Média | DP | p valor | Mín | Máx | Média | DP | p valor | p valor | ||
Brilho | A | 4,0 | 9,0 | 6,5 | 1,5 | 0,37a | 2,0 | 8,0 | 5,8 | 1,7 | 0,00a | -0,01c |
SA | 4,0 | 9,5 | 6,7 | 1,7 | 2,0 | 9,5 | 7,4 | 1,7 | -0,00c | |||
Loudness | A | 5,0 | 8,0 | 6,6 | 1,0 | 0,00a | 1,0 | 8,0 | 5,5 | 1,9 | 0,01a | 0,01c |
SA | 5,0 | 9,0 | 7,3 | 1,2 | 3,0 | 9,5 | 7,3 | 1,8 | -0,00c | |||
Metal | A | 0,5 | 7,0 | 4,1 | 2,3 | 0,00a | 1,0 | 9,0 | 5,7 | 2,1 | 0,00a | 0,01c |
SA | 0,5 | 9,0 | 5,0 | 2,8 | 2,0 | 10,0 | 7,4 | 2,1 | -0,03c | |||
Vibrato | A | 2,5 | 8,5 | 5,8 | 1,7 | 0,00a | 3,0 | 9,5 | 6,9 | 2,1 | 0,00a | 0,00c |
SA | 3,0 | 9,5 | 7,0 | 1,7 | 6,0 | 10,0 | 8,2 | 1,3 | 0,00c | |||
Soprosidade | A | 0,0 | 1,5 | 0,3 | 0,5 | 0,28a | 0,5 | 5,0 | 3,0 | 1,4 | 0,00a | -0,07c |
SA | 0,0 | 1,5 | 0,2 | 0,4 | 0,0 | 5,5 | 1,5 | 1,6 | 0,07c | |||
Ressonância | A | 0,0 | 6,5 | 3,5 | 2,2 | 0,11b | 2,5 | 9,5 | 5,2 | 2,3 | 0,83b | 0,01c |
SA | 0,0 | 8,0 | 4,1 | 2,7 | 0,0 | 9,5 | 4,1 | 2,7 | 0,01c |
aTeste de Wilcoxon para amostras relacionadas
bTeste de Homogeneidade Marginal para amostras relacionadas
cCoeficiente de concordância kappa (alfa igual a 0,05 e intervalo de confiança de 95% para todos os testes)
Legenda: A = agudo; DP = desvio padrão; F = fonoaudiólogos; Máx = valor máximo; Mín = valor mínimo; PC = professor de canto; SA = superagudo
A entrevista semidirigida investigou aspectos relacionados à emissão superaguda: a primeira questão abordou sensações corporais, a segunda explorou sensações de movimentação laríngea e a terceira, mais inespecífica, argumentava sobre ajustes necessários para se cantar a nota superaguda. Na primeira questão, apareceram relatos de “apoio e sustentação do ar” (S1), “respirar mais fundo” (S2), maior abertura da boca (S3), posicionamento da voz (S4) e descrições não relacionadas à emissão vocal em si (S5). Na segunda pergunta, todas as cantoras descreveram haver elevação da laringe para a emissão do superagudo. Na terceira questão, todas as cantoras relataram a necessidade de um apoio respiratório mais eficiente para conseguirem emitir o superagudo. Em relação ao vocabulário usado pelas sopranos, algumas usaram um vocabulário mais técnico e embasado na fisiologia vocal (S1 e S2) e outras foram menos técnicas ao descrever a produção vocal. O Quadro 1 mostra a transcrição ortográfica dos autorrelatos das cinco participantes.
Quadro 1 Citações do autorrelato das sopranos em relação à emissão do superagudo
Durante a emissão do superagudo, quais são as sensações no seu corpo? | Durante a emissão do superagudo, há movimentação da laringe? Como? | Há a necessidade de se realizar algum “ajuste” para que a emissão do superagudo seja possível? | |
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S1 | “Eu sinto que esse hiperagudo é uma combinação de apoio e da sustentação do ar.” | “Não sei te dizer precisamente se ela se mantém abaixada, mas acho que não. […] O hiperagudo exige um ajuste diferenciado que pra mim não é totalmente abaixada.” | “Sim, sustentação.” |
S2 | “Tenho a sensação no corpo inteiro. Eu procuro me preparar pro agudo apoiando e respirando mais fundo.” | “Acho que, na verdade, nos superagudos a laringe tende a se elevar.” | “Eu procuro apoiar mais no superagudo.” |
S3 | “Eu tenho uma sensação no músculo zigomático que, quando eu passo, por exemplo, do Lá pro Ré, existe uma elevação do músculo e […] um abaixamento da parte inferior da boca.” | “Do agudo pro superagudo, eu acho que existe uma elevação [da laringe].” | “Existe um apoio abdominal.” |
S4 | “Quando tem o superagudo, eu sinto que é diferente […], o superagudo parece que ela encaixa em outro lugar, não é a mesma sensação que você tem num agudo, por exemplo.” | “Parece que é pouca coisa.” | “Você precisa de mais apoio e a sensação que você tem é que tem um apoio pra baixo, pro superagudo sair com mais facilidade.” |
S5 | “Eu sinto o corpo inteiro é... como se crescesse, como se ficasse maior.” | “Talvez o que eu sinta é um pouco pra cima.” | “O que eu sinto é que quando dá certo é porque não fechou o diafragma.” |
Legenda: S1: sujeito 1; S2: sujeito 2; S3: sujeito 3; S4: sujeito 4; S5: sujeito 5
Com o panorama atual do conhecimento científico acerca dos superagudos, esta pesquisa buscou informações perceptivo-auditivas de dois profissionais que lidam com cantoras em sua rotina: os fonoaudiólogos e os professores de canto. Essas informações foram colhidas com uma ferramenta barata(12) e que faz parte do dia a dia destes dois profissionais, a percepção auditiva. Na descrição das notas superagudas, os fonoaudiólogos e os professores de canto consideraram que essa emissão apresenta brilho, loudness elevada, metalização da voz, vibrato, pouca ou nenhuma soprosidade e ressonância anteriorizada. A percepção dos dois profissionais demonstrou características sonoras capazes de diferenciar as emissões aguda e superaguda. Esses parâmetros não foram explorados nos estudos que abordam esse tema(1,2,7). Com essas observações, ambos os grupos parecem concordar que o superagudo apresenta características que devem ser observadas em uma aula de canto ou uma consulta fonoaudiológica.
Em relação à soprosidade, os resultados chamam a atenção para a diferença entre as notas dadas pelos dois grupos de avaliadores. Os fonoaudiólogos atribuíram um escore de soprosidade mais baixo do que foi observado pelos professores de canto. Possivelmente, essa diferença é decorrente da natureza do trabalho de cada profissional. O professor de canto é treinado auditivamente para perceber pequenas alterações que interfeririam na performance de seus alunos. O fonoaudiólogo, por outro lado, é treinado em sua formação para lidar com doenças da voz e isso o tornaria mais permissivo na percepção da soprosidade(13). Assim, o professor de canto seria capaz de perceber níveis de soprosidade mais discretos do que aqueles percebidos pelo fonoaudiólogo. Comparando-se as avaliações dos dois grupos, fica evidente a discrepância entre elas em todos os parâmetros perceptivo-auditivos investigados. Essas diferenças também podem ser justificadas pela natureza do trabalho de cada profissional, a performance artística e o tratamento de disfonias, cuja abordagem se pauta em definições que podem ser divergentes. Na Fonoaudiologia, por exemplo, a metalização da voz é entendida, principalmente, como elevação do segundo formante da voz (F2)(14). Para os cantores, o mesmo termo se refere a uma emissão vocal cuja frequência fundamental está elevada(15).
Com o objetivo de enriquecer os dados desta pesquisa e levantar hipóteses para trabalhos futuros, investigou-se a percepção física das cantoras durante a emissão superaguda. No autorrelato, as sopranos foram convidadas a relatar sensações físicas relevantes durante a emissão vocal. Na análise do conteúdo das entrevistas, cujas citações estão no Quadro 1, é possível perceber duas tônicas acerca da emissão do superagudo: a elevação da laringe e a necessidade do apoio respiratório(16). A experiência prévia individual em fisiologia da voz pode ser considerada como um viés de informação nas informações colhidas. Ainda assim, todas as cantoras relataram aspectos que se repetiram unanimemente sem que houvesse comunicação entre elas. Na primeira pergunta, cada uma das cantoras apontou aspectos diferentes de sensações corporais, enfatizando que não há uma sensação corporal padrão que se repita entre elas. Cada cantora pode referir sensações sobre as quais está mais atenta durante o canto influenciada por sua formação não musical (fisiologia da voz, teatro, dança) ou por seu estado físico no momento da gravação (indisposição, cansaço, ansiedade)(17). Na segunda pergunta, direcionada à percepção do movimento da laringe, as cantoras relataram sentir sua elevação no superagudo. A primeira cantora (S1), apesar de incerta em relação à elevação da laringe, questiona a posição “totalmente abaixada” preconizada por muitos professores de canto lírico. Na terceira pergunta, cujo objetivo era permitir uma resposta menos direcionada, todas as cantoras referiram que o apoio respiratório é o ajuste necessário na emissão do superagudo. Sem que a pergunta direcionasse a percepção da soprano para alguma parte de seu corpo, essa pergunta a deixava livre para refletir e responder algo que considerasse relevante. Essa convergência de sensações entre as cantoras aponta para um eixo comum da emissão superaguda e, na verdade, para toda a emissão vocal, o apoio respiratório(18). Apesar de que alguns autores considerem o cantor lírico incapaz de descrever suas sensações físicas durante o canto(19), as sopranos referiram elementos concretos em seu autorrelato durante a emissão do superagudo. Essas comparações não convergem para um padrão de sensações durante a emissão do superagudo, demonstrando que a produção vocal é muito influenciada pela individualidade do cantor.
Consideramos como limitação deste estudo, o tamanho da amostra e as características de idade e de tempo de profissão dos sujeitos, bem como o viés de memória para a entrevista conduzida após a gravação da voz cantada. As características vocais individuais das participantes também devem ser consideradas, já que todas elas pertencem a uma subclassificação vocal naturalmente mais aguda. Além disso, a ausência das definições dos termos avaliados na análise perceptivo-auditiva pode ter contribuído para as diferenças observadas entre os dois grupos de avaliadores. Os dados apresentados neste artigo contribuem para a formação de novas cantoras e para o aprimoramento da performance de sopranos iniciantes ou profissionais. Também fornece substrato para uma atuação em Fonoaudiologia e em Pedagogia Vocal mais assertiva, buscando uma qualidade vocal adequada ao estilo musical e fornecendo informações sobre a sensação física durante a emissão de superagudos.
Comparados aos agudos, os superagudos foram caracterizados por uma emissão vocal brilhante, com loudness aumentada, metálica, com vibrato, com pouca ou nenhuma soprosidade e com ressonância anteriorizada. Em relação à propriocepção, as cantoras relataram que para cantar os superagudos há elevação laríngea e necessidade de apoio respiratório mais efetivo.