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Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde

Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde

Autores:

Carlos Octávio Ocké-Reis

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.05992018

Introdução

A Constituição Federal de 1988 (CF/1988) definiu a saúde como “dever do Estado” e “direito do cidadão”. Pela letra da lei, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), todo cidadão possui este direito de acordo com suas necessidades sociais, independentemente da sua capacidade de pagamento, da sua inserção no mercado de trabalho ou da sua condição de saúde.

Parece evidente que o Estado deveria ter concentrado seus esforços para construir e fortalecer o sistema público nos últimos 30 anos. Notou-se, entretanto, que os planos de saúde contaram com pesados incentivos governamentais, cujos subsídios favoreceram e favorecem o consumo de bens e serviços privados. Assim, de modo diverso do esquema beveredgiano e similar ao modelo privado estadunidense, o sistema de saúde brasileiro passou a funcionar como sistema duplicado e paralelo – na esteira da privatização, do antigo seguro social (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps) 1 .

Para os defensores do SUS não é fácil lidar com essa contradição. O mercado pode agravar as distorções deste tipo de sistema, dado que o aumento do gasto privado e do poder econômico acabam corroendo a sustentabilidade do financiamento estatal, conduzindo a um círculo vicioso, caracterizado pela queda relativa do custeio e do investimento na saúde pública 2 . E, de igual modo importante, a regulação de sistema duplicado é muito mais complexa para o Estado 3 , uma vez que o mercado cobre também serviços ofertados pelo setor público 4 .

Não é à toa que há certo consenso entre os analistas de políticas de saúde de que os maiores desafios (do SUS) são políticos, pois supõem a garantia do financiamento do subsistema público, a redefinição da articulação público-privada e a redução das desigualdades de renda, poder e saúde 5 . Esse quadro sintetiza a americanização perversa 6 do sistema de saúde brasileiro, de modo que seria oportuno repensar por que razões não foi possível romper as amarras estruturais desta herança histórica 7 , em direção à ampliação do financiamento do SUS e do fortalecimento dos mecanismos regulatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Em particular, por ser peça-chave na reprodução econômica deste sistema duplicado e paralelo, tal renúncia merece mais atenção das autoridades governamentais, caso se queira, a um só tempo, consolidar o SUS e reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados.

No contexto do subfinanciamento público 8 , a contradição central da renúncia fiscal associada aos gastos com planos de saúde reside em diminuir os gastos dos estratos superiores de renda, ao mesmo tempo em que patrocina atividade econômica altamente lucrativa, em detrimento de recursos financeiros que poderiam ser alocados para ampliar programas de caráter preventivo e melhorar a qualidade dos serviços especializados, fundamentais para a consolidação do SUS 9 .

Para avaliar os subsídios em saúde, este artigo apresentará inicialmente um debate inconcluso a respeito do tema, seguido da discussão a respeito da magnitude dos gastos tributários em saúde no Brasil e sua evolução entre 2003 e 2015, em especial da renúncia associada aos gastos com planos de saúde das famílias e dos empregadores. A seguir discutimos a necessidade de o governo federal regular a aplicação deste subsídio. Por fim, propõe-se a continuidade desta agenda de pesquisa, pois – além dos problemas do SUS relativos ao financiamento, à gestão e à participação social, à primeira vista – a renúncia não promove a consolidação do SUS e a equidade do sistema de saúde brasileiro.

Debate inconcluso

Alguns países – como Austrália, Canadá e Estados Unidos – oferecem, ao seu modo, incentivos governamentais aos contribuintes, mediante a redução de impostos, para o consumo de planos privados de saúde 10 . Tal incentivo representa gasto tributário – se percebido como imposto não recolhido ou gasto público não aplicado diretamente nas políticas de saúde 11 . Expressando visões antagônicas, este poderia tanto reforçar a política de contenção de custos no setor público, quanto promover a rentabilidade do setor privado, ou, ainda, compensar os efeitos negativos da carga tributária e do abuso do usuário 12 .

Sem entrar no mérito dos subsídios destinados à oferta (indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos), o Brasil segue esta tendência mundial, uma vez que não apenas os gastos com planos de saúde, mas também com profissionais de saúde, clínicas e hospitais, podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar – para a pessoa física e a pessoa jurídica –, o que reduz a arrecadação do governo federal. Uma vez que os mecanismos privados de financiamento tendem a afetar o orçamento público aplicado na saúde 13 , pode-se questionar, de um lado, se a renúncia subtrai recursos do SUS que poderiam incrementar sua qualidade; e, de outro, se ela restringe o acesso a esse sistema, à medida que sua aplicação piora a distribuição do gasto público per capita para certos grupos da população 14 .

No contexto do sistema público e privado brasileiro – duplicado e paralelo –, considerando-se os impactos deste subsídio sobre o financiamento do SUS e a equidade do sistema, parece aceitável que o Estado atenue o conflito distributivo 15 , decorrente da aplicação de subsídios aos estratos superiores de renda, que acabam favorecendo o faturamento do mercado de planos de saúde. Contudo, o ponto a ser destacado, na atual conjuntura histórica, repousa na seguinte constatação, para além da política de austeridade fiscal: este conflito não parece encorajar a adoção de medidas governamentais no curto prazo.

  1. no plano teórico, a renúncia não é vista como peça-chave para a reprodução do sistema duplicado e paralelo. Afinal de contas, não se trata de desoneração fiscal qualquer; pelo contrário, esta foi e é essencial para a estrutura e a dinâmica do mercado de planos de saúde 16 ;

  2. no plano político, contrariar determinados interesses enraizados na relação Estado/sociedade poderia gerar realinhamentos imprevisíveis no ciclo eleitoral. No primeiro momento, a legitimidade de redução, eliminação ou focalização do subsídio poderia ser contestada pela “classe média”, que tem influência na opinião pública; pelos trabalhadores do setor público, privado e das empresas de economia mista, que perderiam todo ou parte do subsídio; pelos empregadores, que sofreriam aumento do custo da mão de obra, embora com a possibilidade de proteger-se via remarcação de preços; pelas operadoras de planos de saúde, por clínicas e hospitais privados e pelos profissionais de saúde, que perderiam também parte da sua receita, uma vez que o gasto tributário funciona como patrocínio para o consumo de bens e serviços privados 17 ;

  3. no plano institucional, não se pode deixar de registrar que os poderes executivo, legislativo e judiciário – isto é, o núcleo do poder decisório do Estado brasileiro – é coberto por planos privados de saúde – ou por formas híbridas como os planos de autogestão – e contam com benefícios da renúncia de arrecadação fiscal. Além disso, seus membros recebem incentivos da União, sob a forma de salário indireto, para o consumo de bens e serviços privados de saúde 18 .

Em que pese o realismo desse cenário, para reverter esse quadro, uma alternativa seria aumentar os recursos financeiros, melhorar a qualidade do SUS e ampliar a capacidade regulatória do Estado sobre o mercado de serviços de saúde. Este serviria como polo de atração para segmentos da clientela da medicina privada, tendo-se como resultado a redução dos gastos das famílias e dos empregadores. Se, de um lado, isto poderia permitir o apoio político para reduzir, eliminar ou focalizar a renúncia, de outro, exigiria que o próprio gasto tributário fosse alocado na atenção primária (prevenção) e na atenção secundária (exames, consultas especializadas e cirurgias ambulatoriais) para melhorar, substancialmente, as condições de acesso e utilização do SUS. Entretanto, se este caminho parece crível, sua extensão e sua profundidade dependem do crescimento da economia e da produtividade deste sistema, do caráter anticíclico da política fiscal e da primazia da carreira de Estado na gestão dos recursos humanos do Ministério da Saúde (MS) e das esferas subnacionais. De qualquer maneira, não é recomendável naturalizar a renúncia – aceitá-la como natural, uma vez que resultou da ação humana, condicionada por interesses econômicos e políticos, em certo período histórico –, tampouco manter desregulada sua aplicação – afastada de valores, normas e práticas que possibilitem o exercício do controle governamental sob o marco constitucional do SUS. Afinal de contas, a renúncia pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas – ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos de saúde –, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência 19 . Nessa linha, parece oportuno refletir sobre a regulamentação dos gastos tributários em saúde, mas antes – na próxima seção – se examinará sua magnitude entre 2003 e 2015, com destaque para a análise da renúncia associada aos gastos com planos de saúde.

Magnitude dos gastos tributários em saúde no Brasil – 2003-2015

Esta seção apresenta a renúncia fiscal em saúde observada entre 2003 e 2015, ou seja, o montante de recursos que o Estado deixou de arrecadar, que envolve o consumo das famílias e dos empregadores, bem como a produção de bens e serviços da indústria farmacêutica e dos hospitais filantrópicos. Em particular, tendo como base os dados oficiais da Receita Federal do Brasil (RFB), estimou-se a renúncia efetiva associada aos planos de saúde, calculada ad hoc , a partir do modelo completo do Imposto de Renda – Pessoa Física (IRPF) e a partir de proxy das despesas médicas dos empregadores, por meio da Imposto de Renda – Pessoa Jurídica (IRPJ).

Na Tabela 1 , observamos que em 2003 o setor saúde respondeu por 22,2% do gasto tributário total, isto é, R$ 32,3 bilhões. Essa participação foi decrescente ao longo do período, atingindo 11,7% em 2015. Essa redução se explica em boa parte pela ampliação das desonerações fiscais e previdenciárias promovidas pelo governo federal.

Tabela 1 Participação Percentual, Gasto Tributário Total e Gasto Tributário em Saúde - 2003-2015. 

Ano Gasto Tributário (R$ milhões) %
Total Saúde
2003 38.857 8.641 22,2
2004 49.800 10.515 21,1
2005 56.429 11.426 20,2
2006 81.240 14.894 18,3
2007 102.673 15.148 14,8
2008 114.755 17.050 14,9
2009 116.098 17.229 14,8
2010 135.861 18.376 13,5
2011 152.441 20.387 13,4
2012 181.747 23.431 12,9
2013 223.310 25.786 11,5
2014 257.223 29.019 11,3
2015 277.140 32.344 11,7

Fonte: Receita Federal do Brasil (RFB)/Centro de Estudos Tributários e Aduaneiro (Cetad).

Elaboração: Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc)/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Na mesma linha, verificamos na Tabela 2 que a renúncia de arrecadação fiscal correspondeu a aproximadamente 1/3 das despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) do Ministério da Saúde (MS), que se manteve estável entre 2003 e 2015, variando entre 31,8% e 32,3% no período.

Tabela 2 Proporção do gasto tributário em saúde sobre a despesa do ministério da saúde - 2003-2015. 

Ano Ministério da Saúde (R$ milhões) Gasto Tributário em Saúde (R$ milhões) %
2003 27.181 8.641 31,8
2004 32.703 10.515 32,2
2005 37.146 11.426 30,8
2006 40.750 14.894 36,6
2007 44.304 15.148 34,2
2008 48.670 17.050 35,0
2009 58.270 17.229 29,6
2010 61.965 18.376 29,7
2011 72.332 20.387 28,2
2012 80.063 23.431 29,3
2013 83.053 25.786 31,0
2014 91.898 29.019 31,6
2015 100.055 32.344 32,3

Fonte: Ministério da Saúde (MS) e RFB/Cetad.

Elaboração: Disoc/Ipea.

Na Tabela 3 , tendo em vista as necessidades de financiamento do SUS, observamos que o montante da renúncia não foi desprezível entre 2003 e 2015: em treze anos, a preços médios de 2015, o governo deixou de arrecadar R$ 331,5 bilhões (soma dos valores apresentados na terceira coluna). Nota-se, ainda, que a trajetória do crescimento do gasto direto e indireto em saúde em termos reais se deu em ritmo superior à evolução do PIB no período, sendo que, no último ano, os subsídios cresceram relativamente mais do que o próprio gasto direto.

Tabela 3 Crescimento real: produto interno bruto, Ministério da Saúde, gasto tributário em saúde e gasto federal total em saúde - 2003-2015. 

(Valores deflacionados pelo IPCA a preços médios de 2015) (Base 100 = 2003)
Ano PIB 1 (R$ milhões) Índice Ministério da Saúde 2 (R$ milhões) Índice Gasto Tributário em Saúde (R$ milhões) Índice Gasto Federal Total em Saúde 3 (R$ milhões) Índice
2003 4.184.234 100 53.872 100 17.125 100 70.997 100
2004 4.425.245 106 60.805 113 19.551 114 80.355 113
2005 4.566.947 109 64.626 120 19.878 116 84.504 119
2006 4.747.889 113 68.049 126 24.872 145 92.921 131
2007 5.036.079 120 71.385 133 24.408 143 95.792 135
2008 5.292.627 126 74.206 138 25.995 152 100.201 141
2009 5.285.968 126 84.702 157 25.045 146 109.747 155
2010 5.683.908 136 85.753 159 25.431 148 111.183 157
2011 5.909.810 141 93.870 174 26.457 154 120.327 169
2012 6.023.348 144 98.576 183 28.849 168 127.425 179
2013 6.204.339 148 96.284 179 29.894 175 126.178 178
2014 6.235.606 149 100.196 186 31.640 185 131.836 186
2015 6.000.570 143 100.055 186 32.344 189 132.399 186

Fontes: IBGE, MS e RFB/Cetad.

Elaboração: Disoc/Ipea.

Notas: 1 PIB deflacionado pelo deflator implícito, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE). Para o ano de 2015, calculou-se o deflator a partir das Contas Nacionais Trimestrais, replicando a metodologia utilizada pelo IBGE para os anos de 2010 a 2014.2 Despesas com ações e serviços públicos de saúde, em conformidade com a Lei Complementar n° 141, que regulamentou a Emenda Constitucional n° 29/2000, sancionada pela Presidência da República em 13 de janeiro de 2012. 3 Gasto total em saúde: soma dos gastos diretos (Ministério da Saúde) e indiretos (Gasto Tributário em Saúde).

Em 2015, somando a renúncia associada ao IRPJ ( Tabela 4 ) mais aquela associada aos planos de saúde ( Tabela 5 ), temos que os subsídios que patrocinam o consumo no mercado de planos de saúde alcançou R$ 12,5 bilhões em 2015. Em 2003, esse montante era de R$ 6,1 bilhões, de modo que, em termos reais, os subsídios dobraram no período.

Tabela 4 Crescimento real: gasto tributário em saúde - 2003-2015. 

(Valores deflacionados pelo IPCA a preços médios de 2015) (Base 100 = 2003)
Ano IRPF (R$ milhões) Índice IRPJ (R$ milhões) Índice Medicamentos e Produtos Químicos (R$ milhões) Índice Hospitais Filantrópicos (R$ milhões) Índice TOTAL (R$ milhões) Índice
2003 7.422 100 2.302 100 2.223 100 5.179 100 17.125 100
2004 8.476 114 2.434 106 2.746 124 5.895 114 19.551 114
2005 8.656 117 2.615 114 3.014 136 5.594 108 19.878 116
2006 9.645 130 2.874 125 6.610 297 5.743 111 24.872 145
2007 10.484 141 3.387 147 4.634 208 5.903 114 24.408 143
2008 11.468 155 3.326 144 4.714 212 6.488 125 25.995 152
2009 9.876 133 3.310 144 5.023 226 6.836 132 25.045 146
2010 9.429 127 3.676 160 5.001 225 7.325 141 25.431 148
2011 10.014 135 3.812 166 4.641 209 7.991 154 26.457 154
2012 10.788 145 4.118 179 5.156 232 8.787 170 28.849 168
2013 11.125 150 4.693 204 5.029 226 9.047 175 29.894 175
2014 11.678 157 4.717 205 5.489 247 9.756 188 31.640 185
2015 11.672 157 4.539 197 6.619 298 9.514 184 32.344 189

Fonte: RFB/Cetad.

Elaboração: Disoc/Ipea.

Tabela 5 IRPF: crescimento real segundo tipo de gasto tributário em saúde - 2003-2015. 

(Valores deflacionados pelo IPCA a preços médios de 2015) (Base 100 = 2003)
Ano Hospitais Clínicas Brasil (R$ milhões) Índice Hospitais Clínicas Exterior (R$ milhões) Índice Planos de Saúde (R$ milhões) Índice Profissionais saúde Brasil (R$ milhões) Índice Profissionais Saúde Exterior (R$ milhões) Índice TOTAL (R$ milhões) Índice
2003 1.417 100 28 100 3.845 100 2.023 100 108 100 7.422 100
2004 1.618 114 32 114 4.392 114 2.310 114 124 114 8.476 114
2005 1.561 110 27 95 4.760 124 2.206 109 102 94 8.656 117
2006 1.761 124 27 96 5.398 140 2.362 117 98 90 9.645 130
2007 2.474 175 40 140 5.778 150 1.890 93 303 280 10.484 141
2008 2.771 196 45 160 6.570 171 1.901 94 180 167 11.468 155
2009 2.197 155 19 65 6.006 156 1.600 79 55 51 9.876 133
2010 1.824 129 14 49 5.976 155 1.601 79 14 13 9.429 127
2011 2.059 145 15 53 6.269 163 1.664 82 8 7 10.014 135
2012 1.988 140 15 53 7.107 185 1.663 82 6 6 10.780 145
2013 1.942 137 16 57 7.488 195 1.582 78 6 6 11.034 149
2014 2.005 142 14 48 8.002 208 1.562 77 6 5 11.589 156
2015 2.125 150 15 54 8.014 208 1.427 71 7 6 11.588 156

Fonte: RFB/Cetad.

Elaboração: Disoc/Ipea.

No quadro de desfinanciamento do SUS – considerando-se a magnitude expressiva do gasto tributário em saúde –, deve-se pensar sobre o caráter da regulamentação dos gastos tributários em saúde, advertindo-se que a tendência atual gera similaridade com a arquitetura do sistema privado de saúde estadunidense – reconhecido como caro e ineficiente – e que também se caracteriza pela presença de subsídios e benefícios aos empregadores 20 .

Qual é o papel do Ministério da Saúde?

Como se observou, ao deixar de arrecadar parte dos impostos, o Estado age como se estivesse realizando um pagamento – ou seja, um gasto tributário. Trata-se de pagamento implícito – isto é, não há desembolso –, mas constitui-se, de fato, em pagamento.

Nesse marco, as pessoas físicas podem deduzir da renda tributável os dispêndios realizados com saúde; porém, de maneira diversa da área da educação, não existe limite (teto) para tal abatimento – a não ser o próprio nível de renda do indivíduo. Esta forma de renúncia se aplica de igual modo ao empregador, quando fornece assistência à saúde a seus empregados, pois esta é considerada despesa operacional e pode ser abatida do lucro tributável 21 . Vale dizer, no Brasil, esse tipo de incentivo governamental não é novidade nas relações econômicas estabelecidas entre o Estado e o mercado, e, portanto, seria natural esperar que o gasto tributário associado àqueles com planos de saúde fosse ao menos justificado nas diretrizes do MS.

Afinal de contas, qual é a funcionalidade da renúncia de arrecadação fiscal na área da saúde para o governo federal? Em tese, esse tipo de gasto poderia atender aos seguintes objetivos governamentais, de forma combinada ou não: patrocinar o consumo de planos de saúde; fortalecer a regulação dos preços do mercado de planos de saúde; reduzir a fila de espera e o tempo de espera nos serviços especializados do setor público; diminuir a carga tributária dos contribuintes que enfrentam gastos catastróficos em saúde; reduzir os gastos com bens e serviços privados de saúde da força de trabalho inserida no polo dinâmico da economia; e promover benefício fiscal. Nessa linha, é desejável que o Estado normatize as regras de aplicação desse subsídio, bem como avalie seu impacto e torne mais transparente para a sociedade sua finalidade no campo das políticas de saúde.

No entanto, desde já, é possível sugerir algumas hipóteses sobre a lógica concreta do seu modus operandi:

  1. o gasto público em saúde é baixo, e boa parte dos problemas de gestão decorre exatamente de problemas de financiamento do SUS 22 , de modo que a renúncia subtrai recursos significativos para este sistema, que poderiam melhorar seu acesso e sua qualidade;

  2. a renúncia reforça a iniquidade do sistema de saúde, o que piora a distribuição do gasto público per capita – direto e indireto – para os estratos inferiores e intermediários de renda;

  3. os lobbies tendem a conservar e a agravar tal iniquidade, dado que o poder econômico pode corroer as sustentabilidades econômica e política do SUS no Congresso Nacional;

  4. os subsídios não desafogam os serviços médico-hospitalares do SUS, dado que os usuários de planos de saúde utilizam seus serviços (vacinação, urgência e emergência, banco de sangue, transplante, hemodiálise, serviços de alto custo e de complexidade tecnológica). Dessa maneira, paradoxalmente, o sistema acaba socializando parte dos custos das operadoras – a exemplo do contencioso em torno do ressarcimento;

  5. No movimento contraditório do mix público/privado, os subsídios voltados para o setor privado podem aumentar – de maneira descontrolada – a procura global por serviços de saúde, duplicando muitas vezes sua oferta. Pior: os usuários de planos de saúde, uma vez favorecidos pela renúncia, podem fazer, por exemplo, exames diagnósticos com mais rapidez, permitindo-os “furar” a fila do SUS, em geral, nos serviços de alta complexidade.

Essas hipóteses merecem ser verificadas empiricamente, mas são tão marcantes que uma justificativa aceitável para o MS preencher esta lacuna normativa deveria partir da suspeita que a renúncia de arrecadação fiscal pode afetar o financiamento do SUS e a equidade do sistema de saúde. Em especial, caso seja considerado o caráter progressivo do SUS e seus efeitos positivos sobre a desconcentração de renda: o fato de que os 40% mais pobres se apropriam de cerca da metade dos gastos com internações hospitalares e de 45% das despesas com procedimentos ambulatoriais frente a uma participação da ordem de 10% para os 20% mais ricos. Na composição do total das despesas, cabe a metade mais pobre pouco mais de 55% frente a uma participação de 1/5 para os 30% mais ricos 23 .

Caso o governo queira radicalizar a carta constitucional em defesa da universalidade e da integralidade do SUS, outras pressuposições deveriam ser consideradas pelo MS, tendo-se em mente as contradições encerradas na articulação entre o padrão de financiamento público e o mercado de planos de saúde:

  1. o gasto tributário foi e é peça-chave para a reprodução do sistema duplicado e paralelo;

  2. o subsídio associado ao mercado de planos de saúde não influencia a calibragem da política de reajustes de preços dos planos individuais praticada pela ANS – por exemplo, a Anvisa monitora a redução do preço dos medicamentos, a partir da desoneração fiscal patrocinada pelo governo voltada à indústria farmacêutica.

  3. o montante da renúncia associado ao IRPF e ao IRPJ não é controlado pelo MS, tampouco pelo Ministério da Fazenda – condicionada pela renda, este depende, exclusivamente, do nível de gastos com saúde dos contribuintes e dos empregadores.

Na atual correlação de forças, não existe solução única, muito menos de corte tecnocrático, para definir o papel do MS nessa questão. Por isto, evitando-se a judicialização deste processo, a aproximação do governo junto à sociedade civil é essencial neste debate. A rigor, o governo não controla o destino, tampouco o teto dos gastos tributários, que são definidos pelos planos e seguros de saúde, pelos prestadores de serviços de saúde das redes contratadas e pelos consumidores – ou seja, não necessariamente a partir das prioridades do governo federal.

Uma alternativa, semelhante à área de educação, seria, tecnicamente, estabelecer um teto ou planejar a eliminação/redução do gasto tributário em saúde. Com base nas experiências internacionais, a focalização poderia, de igual modo, ser medida introdutória de fácil aplicação: seja em relação à faixa etária, ao nível de renda, aos itens de gastos (médicos, hospitais ou planos de saúde), ou, ainda, às próprias condições de saúde.

Em suma, o MS não pode desistir do seu papel de regular o gasto tributário em saúde, cujo desenho dependerá do projeto institucional do governo para o setor, bem como do seu poder de barganha para superar os conflitos distributivos na arena setorial e para resistir à sua captura pelo mercado de planos de saúde.

Considerações finais

O bloco histórico sanitarista deve lutar para ampliar o financiamento, melhorar a gestão e fortalecer a participação social do SUS, mas, ao mesmo tempo, na crítica à privatização, deve propor a criação de estruturas institucionais e mecanismos regulatórios que permitam atrair segmentos da clientela da medicina privada para o SUS, bem como reduzir o gasto dos trabalhadores, das famílias e dos idosos com planos de saúde, serviços médico-hospitalares e remédios.

Na tentativa de fortalecer o SUS e reorientar o modelo de atenção, o gasto tributário associado aos planos de saúde – que alcançou R$ 12,5 bilhões em 2015 – poderia ajudar no crescimento das transferências para a atenção básica e a média complexidade do MS.

Seria necessário, assim, convencer o governo e a sociedade acerca das “externalidades positivas” da eliminação, da redução ou da focalização dos subsídios, desde que tais recursos sejam aplicados na atenção primária (Programa Saúde da Família – PSF, promoção e prevenção à saúde etc.) e na média complexidade (unidades de pronto atendimento, prática clínica com profissionais especializados e recursos tecnológicos de apoios diagnóstico e terapêutico etc.) do SUS.

Afinal de contas, a conversão de gasto público indireto em direto na área da saúde teria mais sentido clínico e epidemiológico se contribuísse para negar e superar o atual modelo de atenção assistencial; em outras palavras, se fustigasse o sistema duplicado e paralelo, que estimula a superprodução e o consumo desenfreado de bens e serviços de saúde 24 e que responde às condições crônicas na lógica da atenção às condições agudas e, ao final de um período mais longo, pode determinar resultados sanitários e econômicos desastrosos 25 . Entretanto, na atual conjuntura, considerando-se as vicissitudes do ciclo eleitoral, existe grau de indeterminação quanto à disposição da atual coalizão governamental em alocar os subsídios fiscais para o SUS, visando-se à melhoria do seu acesso e da sua qualidade. Parece aceitável, ao menos, que o MS se disponha a regular e a avaliar o gasto tributário em saúde.

O que precisa ser verificado é um conjunto de evidências que, neste momento, estão indicando a seguinte conclusão: a renúncia da arrecadação fiscal induz o crescimento do mercado de planos de saúde – em detrimento do fortalecimento do SUS – e, também, gera situação de injustiça distributiva, ao favorecer os estratos superiores de renda e determinadas atividades econômicas lucrativas.

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