versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.44 no.6 São Paulo nov./dez. 2018 Epub 08-Out-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562017000000018
O tabagismo é reconhecido mundialmente como uma doença crônica resultante da dependência da nicotina e um fator de risco para o desenvolvimento e agravamento das doenças respiratórias crônicas, como asma e DPOC.1 Considerado uma das principais causas de mortes evitáveis, o hábito tabágico associa-se a maiores custos para a saúde, morbidade e mortalidade, sendo responsável por mais de 6 milhões de mortes anuais.2
A asma é uma doença crônica com alta prevalência, variando de 1% a 16% na população mundial.3,4 Na cidade de Salvador (BA), 13,4% dos adolescentes e 5,1% dos adultos apresentam a doença.5,6 O tabagismo relaciona-se diretamente com a falta de controle e maior gravidade da asma, aumentando o risco de exacerbações, declínio da função pulmonar, dispneia persistente7 e limitação na resposta ao tratamento com corticosteroides.8 Apesar disso, pacientes asmáticos ainda fumam. Um estudo realizado na cidade de São Paulo (SP) encontrou uma frequência de 3% e 33% de asmáticos fumantes atuais e pregressos autodeclarados, respectivamente.9
A exposição ao tabagismo pode ser avaliada através do autorrelato dos pacientes e da mensuração de marcadores biológicos, como monóxido de carbono no ar exalado, carboxi-hemoglobina sanguínea, tiocianato, nicotina e cotinina, que podem ser mensurados em saliva, plasma e urina.10 Frequentemente utiliza-se o autorrelato pela facilidade e baixo custo, mas é um método de avaliação mais vulnerável à omissão de dados.11
Entre esses biomarcadores, a cotinina, produto específico da metabolização da nicotina, é considerada o mais recomendado por não sofrer influência de outras exposições.12 A técnica para sua mensuração é confiável12-16 e permite identificar uma exposição ocorrida em 19-40 h antes da coleta da amostra de urina17-19 devido a sua baixa excreção renal, facilitando sua detecção através de análises laboratoriais e preenchendo os pré-requisitos de especificidade.20
Portanto, o objetivo do presente estudo foi avaliar a frequência de tabagismo ativo entre pacientes com diferentes níveis de gravidade da asma e em indivíduos sem asma na cidade de Salvador (BA) por meio de questionários padronizados e da medida objetiva de exposição à fumaça do cigarro através da dosagem da cotinina urinária.
Este é um estudo transversal envolvendo pacientes com diagnóstico de asma, conduzido entre 2013 e 2015 no Núcleo de Excelência em Asma da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, um centro de pesquisa vinculado ao Programa para o Controle da Asma na Bahia (ProAR).
O presente estudo está vinculado ao projeto principal intitulado “Fatores de risco, biomarcadores e endofenótipos da asma grave”, um estudo de caso-controle que avaliou pacientes com asma grave, tendo dois grupos controle: participantes com asma leve/moderada e participantes sem asma.
Foram estudados 1.341 indivíduos, dos quais 915 eram asmáticos, sendo 417 diagnosticados com asma leve/moderada e 498 diagnosticados com asma grave (acompanhados no ProAR), assim como 426 indivíduos sem asma.
Os participantes com asma grave foram classificados previamente, no momento de admissão no ProAR, quando ainda não estavam em tratamento regular e seguiram em acompanhamento desde então. Os pacientes com asma leve/moderada e indivíduos sem asma foram recrutados por intermédio de anúncios em meios de comunicação, áreas/transportes públicos e indicações de outros participantes. Todos os pacientes com asma foram classificados quanto ao nível de gravidade segundo os critérios da Global Initiative for Asthma de 2012.21
Foram incluídos participantes de ambos os sexos, com idade maior ou igual a 18 anos, residentes em Salvador ou em sua região metropolitana e que eram usuários do Sistema Único de Saúde. Os participantes com asma grave estavam em tratamento regular há pelo menos seis meses. Não foram incluídos pacientes com diagnóstico de comorbidades que dificultassem a avaliação do controle da asma (insuficiência cardíaca congestiva, acidente vascular cerebral, miopatias, neoplasia avançada, doenças psiquiátricas ou outras doenças pulmonares) ou com história de tabagismo maior que 10 anos-maço, pela dificuldade de diagnóstico diferencial com DPOC. Ao final do estudo, foram excluídos alguns participantes por diferentes razões, como problemas com a amostra de urina, abandono do tratamento, exacerbação de comorbidades que dificultaram a avaliação do paciente, entre outras (Figura 1).
Figura 1 Diagrama do recrutamento de voluntários para a pesquisa. ProAR: Programa para o Controle da Asma da Bahia; e TCLE: termo de consentimento livre e esclarecido.
O diagnóstico de asma grave foi validado segundo critérios da Global Initiative for Asthma21 em auditoria realizada em prontuários dos pacientes por dois especialistas durante a fase de seleção. Em caso de divergências quanto ao diagnóstico e à classificação, um terceiro especialista era consultado. Ao final dessa etapa, 949 pacientes que preencheram os critérios de inclusão foram contatados via telefone e convidados a comparecer ao Núcleo de Excelência em Asma. Desses, apenas 553 compareceram e foram submetidos à avaliação clínica e espirométrica. Depois disso, 55 indivíduos foram excluídos, totalizando uma amostra de 498 participantes nesse grupo (Figura 1).
Um total de 2.526 pacientes com asma leve/moderada e indivíduos sem asma foram contatados para uma pré-triagem. Desses, 484 indivíduos com asma leve/moderada foram incluídos no estudo, mas ao final, apenas 417 completaram todas as avaliações. Com o propósito de comparação foram incluídos 464 indivíduos sem asma, mas apenas 426 completaram todas as avaliações estabelecidas (Figura 1).
Durante o agendamento da consulta, o participante era orientado a coletar a primeira urina do dia, realizando procedimentos básicos de segurança e higiene. As amostras eram entregues, identificadas e armazenadas em um freezer a −70°C. Em seguida, os pacientes eram encaminhados para uma avaliação clínica para a validação do diagnóstico e classificação da gravidade da asma. Naquele momento também eram questionados quanto à exposição ao tabagismo e ao uso de medicamentos. Nenhum dos participantes fazia terapia à base de nicotina.
Foi considerado tabagista atual aquele que se autodeclarou consumidor de cigarros diariamente ou ocasionalmente. Os participantes que relataram história prévia de tabagismo com cessação autorreferida há pelo menos seis meses foram considerados ex-tabagistas.
As informações de exposição ao tabagismo eram coletadas pela aplicação de dois questionários adaptados: questões referentes à história de tabagismo do questionário Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas não Transmissíveis22; e questões relacionadas a exposição à fumaça secundária do cigarro no domicílio, ambiente escolar e/ou laboral e exposições em transportes e ambientes públicos do questionário utilizado no Censo 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.23
A cotinina urinária foi mensurada segundo o procedimento descrito por Cattaneo et al.24 Utilizou-se um cromatógrafo líquido de alta eficiência (1290 Infinity; Agilent®, Santa Clara, CA, EUA) equipado com uma coluna Zorbax Eclipse XDB-C8 (4,6 mm × 150 mm × 5 µm) e detector UV-Vis (λ = 260 nm), do mesmo fabricante, com volume de injeção de 20 µl e um fluxo de fase móvel isocrática de 0,4 ml/min. A metodologia foi validada utilizando os parâmetros descritos na resolução n° 899 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.25 O método de cromatografia líquida de alta eficiência é indicado para a mensuração desse metabólito da nicotina devido a sua sensibilidade e especificidade, permitindo a determinação de baixas concentrações de cotinina, bem como devido ao baixo custo das análises quando comparado ao de outros métodos.26 Os limites de detecção e quantificação foram de 6,46 µg/l e 19,59 µg/l, respectivamente.
Os níveis da cotinina urinária relacionam-se diretamente a alguns fatores biológicos, tais como a função renal, o fluxo e o pH da urina. Para garantir maior precisão nos resultados, a correção dos valores foi realizada por meio da relação cotinina/creatinina urinária em µg/g.27
A creatinina urinária foi mensurada utilizando um ensaio de quantificação de creatinina, com leituras a 510 ηm, no tempo de 30 e 90 segundos em um espectofotômetro com cubeta termostatizada a 37°C. Utilizou-se o equipamento automatizado BT 3000 PLUS (Wiener Lab Group, Rosário, Argentina).
Foram incluídos no estudo todos os pacientes com asma grave acompanhados no ProAR até o momento do início do estudo. Assim, não houve cálculo de tamanho amostral. Com relação aos grupos com asma leve/moderada e sem asma, o número de participantes foi estabelecido para garantir a comparabilidade dos grupos.
Os dados coletados foram processados pelo Statistical Package for the Social Sciences, versão 17.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA) e estão apresentados na forma de gráficos e tabelas. Foram aplicados os testes de Shapiro-Wilk e de Kolmogorov-Smirnov para determinar a natureza da distribuição das variáveis. As variáveis contínuas foram apresentadas como média e desvio-padrão se a distribuição era gaussiana ou mediana e intervalo interquartil (II) se a distribuição não era gaussiana; as variáveis categóricas foram expressas através da frequência absoluta e proporção válida. Utilizaram-se o teste do qui-quadrado para comparar proporções e o teste de Kruskal-Wallis para comparar variáveis contínuas, posto que a maioria dos dados analisados não teve distribuição normal.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia (parecer nº 099/2009; aditivo nº 032/2014), bem como pelo Conselho Nacional de Saúde (parecer nº 450/10). Todos os procedimentos do presente estudo foram realizados após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pelos participantes do estudo.
Foram avaliados 1.341 pacientes. Desses, 55 (4,1%) informaram tabagismo atual, 273 (20,4%) eram ex-tabagistas, e 1.013 (75,5%) eram não tabagistas. As características dos participantes estão descritas na Tabela 1. Os participantes foram classificados de acordo com o diagnóstico e gravidade da asma em três grupos: asma grave (n = 498), asma leve/moderada (n = 417) e sem asma (n = 426).
Tabela 1 Características sociodemográficas da amostra de acordo com o autorrelato do hábito tabágico.a
Características | Grupos | ||||
---|---|---|---|---|---|
Tabagista | Ex-tabagista | Não tabagista | |||
Amostra | 55 (4,1) | 273 (20,4) | 1.013 (75,5) | ||
Classificação | |||||
Sem asma | 33 (60,0) | 84 (30,8) | 309 (30,5) | ||
Asma leve/moderada | 17 (39,9) | 56 (20,5) | 344 (34,0) | ||
Asma grave | 5 (0,1) | 133 (48,7) | 360 (35,5) | ||
Sexo feminino | 40 (72,7) | 199 (72,9) | 862 (85,1) | ||
Idade, anos | 41,2 ± 13,1 | 51,5 ± 12,2 | 43,1 ± 14,4 | ||
Renda familiar, R$ | 850,00 [678,00-1.500,00] | 830,00 [700,00-1.400,00] | 1.000,00 [720,00-1.500,00] | ||
Estado civil | |||||
Solteiro(a) Casado(a)/UE Divorciado(a) Viúvo(a) |
38 (69,1) 10 (18,2) 6 (10,9) 1 (1,8) |
108 (39,6) 111 (40,7) 37 (13,5) 17 (6,2) |
439 (43,3) 429 (42,3) 79 (7,8) 66 (6,5) |
||
Nível de escolaridade | |||||
Sem instrução Fundamental 1 Fundamental 2 Médio Superior |
3 (5,5) 6 (10,9) 15 (27,3) 24 (43,6) 7 (12,7) |
16 (5,9) 71 (26,0) 67 (24,5) 99 (36,3) 20 (7,3) |
25 (2,5) 110 (10,9) 189 (18,7) 521 (51,4) 168 (16,6) |
||
Cor autorreferida | |||||
Preta Parda Outrasb |
23 (41,8) 31 (56,4) 1 (1,8) |
90 (33,0) 156 (57,1) |
27 (9,9) | 436 (43,0) 486 (48,0) 91 (9,0) |
UE: União estável. aValores expressos em n (%), média ± dp ou mediana [intervalo interquartil]. bBranca, indígena e amarela.
Observou-se que, dos 55 participantes que declararam tabagismo ativo, 32 (58,2%) e 23 (41,8%) informaram consumo diário e ocasional de cigarros, respectivamente (Tabela 1). A Tabela 2 traz informações detalhadas sobre o consumo de cigarros de cada grupo de estudo. Entre os tabagistas atuais, os asmáticos graves e os participantes sem asma fumaram por um maior período que aqueles com asma leve/moderada.
Tabela 2 Características da exposição ao tabagismoa e resultados de cotinina urinária corrigida em µg/g de creatinina entre os grupos de estudo.b
Características | Grupos | p* | |
---|---|---|---|
Tabagista atual | Tabagista pregresso | ||
(n = 55) | (n = 273) | ||
Idade em que começou a fumar, anos Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
20,0 [13,5-23,5] 18,0 [16,5-20,5] 17,0 [15,0-19,8] |
15,0 [13,0-18,0] 18,0 [15,0-20,8] 16,0 [14,0-18,0] |
0,20 0,25 0,20 |
Idade em que parou de fumar, anos Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
31,5 [23,0-40,0] 30,0 [24,0-59,0] 32,0 [25,0-40,0] |
||
Tentaram parar de fumar Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
3 (60,0) 6 (35,3) 11 (34,4) |
||
Tempo de tabagismo, anos Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
33,0 [8,5-43,5] 10,0 [6,0-18,0] 27,5 [16,3-37,0] |
15,0 [5,3-24,0] 11,3 [3,0-14,5] 10,2 [7,0-25,0] |
0,14 0,07 < 0,01 |
Número de cigarros/dia Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
2,0 [1,5-12,5] 2,0 [1,0-4,0] 5,0 [3,0-9,5] |
6,0 [3,0-20,0] 5,0 [3,0-10,0] 10,0 [3,0-20,0] |
0,18 < 0,01 0,03 |
Carga tabágica, maços-ano Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
25,5 [0,4-36,9] 1,3 [0,2-4,0] 7,7 [2,5-18,4] |
4,4 [1,2-16,8] 1,2 [0,8-7,0] 8,0 [1,3-19,8] |
0,52 0,25 0,89 |
Cotinina urinária, µg/gc Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
807,8 [49,1-3.239,3] 41,1 [4,1-201,6] 598,3 [219,8-2.027,8] |
62,5 [19,2-409,5] 30,3 [13,0-110,1] 40,9 [9,9-129,1] |
0,03 0,27 < 0,01 |
Exposição à fumaça secundária do cigarro nas últimas 24 h Asma grave Asma leve/moderada Sem asma |
4 (80,0) 10 (58,8) 24 (72,7) |
59 (44,4) 24 (42,9) 29 (34,5) |
0,12 0,25 < 0,01 |
aCom base nas referências 22 e 23. bValores expressos em n (%) ou mediana [intervalo interquartil]. cCotinina urinária sem os resultados abaixo do limite de detecção. *Teste do qui-quadrado para variáveis categóricas e teste de Kruskal-Wallis para variáveis contínuas.
Foi identificado que o início do consumo de cigarros ocorreu em idade precoce da vida (adolescência). Considerando-se os tabagistas atuais e pregressos, observou-se que o grupo com asma grave teve uma média de idade de início do tabagismo (15,9 ± 5,3 anos) significativamente menor que os grupos com asma leve/moderada e sem asma (18,8 ± 5,7 anos e 16,8 ± 4,2 anos, respectivamente; p = 0,02).
Entre os fumantes atuais, observou-se uma carga tabágica maior no grupo asma grave (25,5 anos-maço) quando comparado aos grupos asma leve/moderada e sem asma (1,3 e 7,7 anos-maço, respectivamente). Entre os ex-tabagistas, a carga tabágica foi de, respectivamente, 4,4 anos-maço, 1,2 anos-maço e 8,0 anos-maço nos grupos asma grave, asma leve/moderada e sem asma.
Entre os fumantes com hábito diário, todos apresentaram resultados de cotinina urinária positiva. Dos tabagistas ocasionais, 8 indivíduos tiveram resultados abaixo do limite de detecção. Os pacientes que faziam uso diário de cigarros apresentaram uma mediana de cotinina urinária mais elevada (758,2 µg/g; II: 433,2-2.066,8) que a daqueles com consumo ocasional (97,1 µg/g; II: 30,7-1.036,9; Tabela 3). Chama a atenção que, entre os tabagistas diários e ocasionais, os resultados mais elevados de cotinina urinária foram encontrados no grupo asma grave quando comparados aos demais grupos.
Tabela 3 Cotinina urinária corrigida (µg/g de creatinina), entre 1.341 participantes estudados, distribuídos pelos grupos de estudo, de acordo com o status de tabagismo autorrelatado.a
Status de tabagismo | Número de participantes | Cotinina urinária, µg/g b | p* | |
---|---|---|---|---|
n/N | % | |||
Tabagista diário Asma grave Asma leve/moderada Sem asma TOTAL |
2/498 7/417 23/426 32/1.341 |
0,4 1,7 5,4 2,4 |
930,4 (807,8-1.053,1) 140,4 (11,9-2.189,7) 710,8 (499,1-2.357,7) 758,2 (433,2-2.066,8) |
0,35 |
Tabagista ocasional Asma grave Asma leve/moderada Sem asma TOTAL |
3/498 10/417 10/426 23/1.341 |
0,6 2,4 2,3 1,7 |
2.761,3 (97,1-5.425,5) 41,1 (16,2-129,1) 635,1 (32,3-3.945,0) 97,1 (30,7-1.036,9) |
0,17 |
Ex-tabagista Asma grave Asma leve/moderada Sem asma TOTAL |
133/498 56/417 84/426 273/1.341 |
26,7 13,4 19,7 20,4 |
62,5 (19,2-409,5) 30,3 (13,0-110,3) 40,9 (9,9-129,0) 44,9 (17,4-147,9) |
0,17 |
Não tabagista Asma grave Asma leve/moderada Sem asma TOTAL |
360/498 344/417 309/426 1.013/1.341 |
72,3 82,5 72,5 75,5 |
27,7 (14,3-69,5) 14,3 (6,8-39,9) 28,2 (11,4-67,3) 24,2 (10,9-58,5) |
< 0,01 |
aValores expressos em mediana (intervalo interquartil). bSem indivíduos abaixo do limite de detecção. *Teste de Kruskal-Wallis.
Daqueles indivíduos que negaram tabagismo atual (n = 1.286), 273 (21,3%) eram tabagistas pregressos. Percebeu-se uma mediana mais elevada de cotinina urinária entre os ex-tabagistas (44,9 µg/g; II: 17,4-147,9) que a dos que declararam nunca haver fumado (24,2 µg/g; II: 10,9-58,5). Entre os ex-tabagistas do grupo asma grave, observou-se uma mediana mais elevada quando comparada à dos demais grupos de estudo (Tabela 3). A Figura 2 mostra a representação gráfica das medianas de cotinina urinária.
Figura 2 Níveis corrigidos de cotinina urinária de acordo com as categorias de hábito tabágico. Resultados expressos em (log) de µg/g de creatinina.
Entre os ex-tabagistas, os asmáticos graves foram os que apresentaram as medianas mais elevadas dos níveis de cotinina urinária. Entre os que informaram ter fumado somente no passado, a mediana dos níveis de cotinina no grupo asma grave (62,5 µg/g; II: 19,2-409,5) tendeu a ser mais elevada que a nos grupos asma leve/moderada e sem asma (30,3 µg/g; II: 13,0-110,3 e 40,9 µg/g; II: 9,9-129,1, respectivamente; p > 0,05).
Entre os não tabagistas, 440 (34,3%) informaram algum tipo de exposição à fumaça secundária de cigarros no ambiente domiciliar, laboral e/ou em locais ou transportes públicos nas 24 h anteriores. A proporção desses nos grupos asma grave, asma leve/moderada e sem asma foi de 36,7%, 34,6% e 30,8%, respectivamente.
No presente estudo, encontramos que 4,1% dos indivíduos se autodeclararam tabagistas ativos, uma proporção menor do que a média brasileira, mas semelhante à encontrada entre adultos na cidade de Salvador, segundo dados de 2017.5
Entre os tabagistas que faziam consumo diário de cigarros, identificaram-se níveis mais elevados de cotinina urinária quando comparados aos de tabagistas ocasionais, ex-tabagistas e não tabagistas, tal como era previsto. Os tabagistas pregressos também apresentaram valores mais elevados de cotinina urinária quando comparados aos não tabagistas, indicando que alguns deles podem ter omitido o fato de que continuavam fumando. Os pacientes com asma grave que relataram tabagismo pregresso tinham maiores níveis de cotinina urinária que os tabagistas pregressos dos demais grupos, sugerindo que o problema da omissão pode ser ainda maior nesse grupo. A proporção de asmáticos graves com passado de tabagismo foi superior à dos outros grupos, enquanto a proporção de pacientes com asma leve/moderada com passado de tabagismo foi menor.
Observamos uma maior frequência de tabagismo atual entre os indivíduos sem asma quando comparados àqueles com asma. Os asmáticos graves declararam fumar atualmente numa frequência menor que os asmáticos leve/moderados. As baixas frequências de tabagismo atual autorrelatadas entre os asmáticos assemelham-se a de dados já descritos na literatura9 e podem decorrer do impacto negativo do consumo do tabaco devido às condições clínicas e de qualidade de vida nesses indivíduos, que os induz a evitar o cigarro. O paciente com asma possivelmente teria uma menor tendência a manter o hábito tabagista devido a sua enfermidade. O acompanhamento em serviços de saúde que educam sobre os malefícios do tabagismo também pode ser um importante fator para a redução do tabagismo entre os asmáticos. Entretanto, a possibilidade de omissão do hábito tabágico entre eles deve ser considerada.9,11
O tabagismo pregresso mais frequentemente observado nos pacientes com asma grave sugere que o tabagismo pode ser um fator de risco para o desenvolvimento da asma grave entre asmáticos que fumam a despeito do desconforto e dos alertas para os malefícios do tabagismo. Nos casos em que o asmático apresenta uma carga tabágica prévia elevada, cabe considerar a superposição entre asma e DPOC como uma explicação para os indicadores de maior gravidade da asma.
Observou-se também que, entre os indivíduos fumantes ou ex-fumantes, o hábito tabágico teve início na adolescência, assim como descrito em estudos realizados por Malcon et al.28 e Abreu et al.29 No presente estudo, a idade do início do tabagismo foi mais baixa no grupo asma grave (15,9 anos vs. 18,8 anos no grupo asma leve/moderada), reforçando a possibilidade de que a exposição ao tabaco seja um fator de risco para o desenvolvimento de asma grave.30
Indivíduos com asma leve/moderada, fumantes atuais ou pregressos, apresentaram uma mediana de anos de tabagismo menor que a daqueles com asma grave. Isso pode ser uma evidência de que o tabagismo pode estar associado com a gravidade da asma. Os asmáticos leves/moderados também fumaram menos que os asmáticos graves e os indivíduos sem asma. Acreditamos que o desconforto associado à inalação da fumaça de cigarro não lhes tenha permitido prosseguir com o hábito, enquanto aqueles que persistiram fumando evoluíram para um quadro agravado.
A carga tabágica (anos-maço) dos asmáticos graves revelou que esses fumaram/fumam mais que os asmáticos leves/moderados, sugerindo, mais uma vez, uma associação entre tabagismo e maior gravidade da asma.
No presente estudo, observaram-se variações nos níveis de cotinina urinária entre os grupos quando se considerou o autorrelato de tabagismo. Entre aqueles fumantes que informaram o consumo diário de cigarros, a mediana foi mais elevada que a daqueles com seu consumo esporádico, exceto no grupo asma grave, sugerindo novamente uma possível omissão do consumo diário de cigarros. Indivíduos que não fumam diariamente tendem a apresentar valores de cotinina menores, e fumantes que consomem diariamente um maior número de cigarros apresentam níveis elevados desse metabólito no organismo,31 o que pode ser constatado mesmo com uma única mensuração da cotinina.32
Outros estudos também demonstraram discrepâncias entre o autorrelato e a análise de biomarcadores específicos para a exposição ao cigarro, como a cotinina,33,34 indicando a possível omissão do hábito tabágico por parte dos pacientes. Em um estudo realizado em São Paulo, observaram-se níveis elevados de cotinina urinária entre asmáticos graves que relataram apenas tabagismo pregresso, alertando-nos quanto à possibilidade de informações imprecisas.11
Sabe-se que o tabagismo está associado ao mau prognóstico da asma, diminuindo a resposta aos corticosteroides inalatórios e aumentando os sintomas e a necessidade de visitas à emergência, de internações e de gastos com o tratamento, além de afetar negativamente a qualidade de vida desses pacientes. A cessação do consumo e exposição ao cigarro pode melhorar as condições clínicas dos indivíduos asmáticos.8,35
Apesar de o presente estudo envolver uma grande amostra, há limitações que devem ser levadas em consideração. Os resultados da cotinina podem ter sido influenciados pela exposição passiva ao tabaco, etnia e utilização de alimentos contendo nicotina, tais como tomates, batatas e chá preto.36,37 Entretanto, não foram observadas mudanças nos valores da cotinina considerando a exposição à fumaça secundária em horas entre os não fumantes e em relação à cor da pele autorreferida. Com relação à dieta, a influência do hábito alimentar nos valores de cotinina urinária encontrados não foi investigada. A baixa frequência de tabagistas atuais em nossa amostra reduziu o poder das análises de subgrupos. No recrutamento de pacientes com asma, foram excluídos aqueles que referiram uma carga tabágica maior ou igual a 10 anos-maço, objetivando evitar confusão com casos de DPOC e manter os grupos asma grave e asma leve/moderada semelhantes quanto aos critérios de inclusão, o que pode ter gerado um viés na comparação com o grupo sem asma. No entanto, esse viés favoreceria uma carga tabágica menor nos grupos com asma, o que não foi observado no grupo asma grave, reforçando a validade interna dos nossos resultados. A proporção de ex-tabagistas no grupo asma grave (27%) foi consideravelmente maior que nos outros grupos.
Por fim, podemos concluir que os pacientes asmáticos com diferentes níveis de gravidade apresentaram uma baixa frequência de tabagismo atual autorrelatado, especialmente aqueles com asma grave. Todavia, encontramos uma maior proporção de tabagismo pregresso autorrelatado também na asma grave, assim como maior carga tabágica e níveis atuais mais elevados de cotinina urinária, sugerindo a possibilidade de omissão do hábito tabágico e indicando que a exposição ao tabagismo ativo pode estar associada à asma grave. A investigação de tabagismo deve ser meticulosa em pacientes com asma grave, e a entrevista desses deve ser complementada por uma avaliação objetiva.