versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.43 no.3 São Paulo mai./jun. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000125
Em pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA), o tratamento da infecção tuberculosa latente (ITBL) é crucial para reduzir a morbidade e a mortalidade.1 Portanto, a identificação de ITBL e seu tratamento adequado em PVHA são prioridades. Atualmente, há duas classes de testes para detectar ITBL2: o teste tuberculínico (TT) e os interferon-gamma (IFN-γ) release assays (IGRAs, ensaios de liberação de IFN-γ). Dois IGRAs disponíveis comercialmente foram amplamente estudados: o ensaio QuantiFERON-TB Gold In-Tube (QFT-GIT; Cellestis, Carnegie, Austrália) e o ensaio T-SPOT.TB (Oxford Immunotec, Abingdon, Reino Unido). Os IGRAs substituíram o TT ou se juntaram a ele em muitos países de alta renda.2 No entanto, a Organização Mundial da Saúde não recomenda esses testes para a detecção de ITBL em países de baixa e média renda. Tanto o TT como os IGRAs apresentam menor sensibilidade em PVHA, pois ambos avaliam a resposta de células T a antígenos micobacterianos.3 Embora tenham sido relatadas altas taxas de resultados indeterminados do ensaio QFT-GIT em países com alta carga de HIV, essas taxas podem variar de acordo com a região geográfica e a gravidade da imunossupressão.4,5 Na presença de resultados indeterminados, recomenda-se que se repita o teste.6
A descontinuação temporária recente do mais usado PPD (RT23; Statens Serum Institut, Copenhague, Dinamarca) resultou em escassez de tuberculina no mercado, o que impediu a identificação de ITBL em PVHA em diversos países. Substituir o TT pelo ensaio QFT-GIT poderia ser uma opção, mesmo em países de baixa renda. O objetivo do presente estudo foi avaliar a frequência de resultados indeterminados do ensaio QFT-GIT e os fatores relacionados com esses resultados em uma amostra de PVHA.
De janeiro a dezembro de 2011, foi realizado um estudo transversal na Clínica de Doenças Infecciosas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do Sul é um estado com incidência moderada de tuberculose (38,8/100.000 habitantes), localizado na região Centro-Oeste do Brasil. As Diretrizes Nacionais de Tuberculose recomendam que todas as PVHA sejam submetidas ao TT no mínimo a cada seis meses.7 Neste estudo, foram incluídos indivíduos infectados pelo HIV com idade ≥ 18 anos, todos os quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de testes adicionais com o QFT-GIT. Os pacientes com tuberculose ativa foram excluídos, assim como o foram aqueles que estavam recebendo tratamento para ITBL. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Protocolo n. 1060/2008).
As informações foram obtidas por meio de um questionário e de prontuários médicos. Cada TT foi realizado com duas unidades de PPD RT23 (Statens Serum Institut) na face anterior do antebraço esquerdo. Após 48-72 h, uma enfermeira treinada mediu a enduração. Uma enduração ≥ 5 mm de diâmetro foi considerada indicativa de reação positiva.7 O ensaio QFT-GIT foi realizado em conformidade com o protocolo do fabricante. Em resumo, amostras de sangue total foram colhidas diretamente em tubos heparinizados de 1 ml contendo antígenos de Mycobacterium tuberculosis (alvo antigênico secretório precoce 6, proteína de filtrado de cultura 10 e TB7.7); dextrose e PHA (controle positivo); ou sem antígenos (controle negativo). Os tubos foram incubados durante 24 h a 37°C e centrifugados a 2.000 g durante 10 min. Em seguida, o sobrenadante do soro foi colhido. A mediana de tempo decorrido da coleta do sangue até a incubação foi de 144 min (variação: 10-294 min). Todos os sobrenadantes foram armazenados a −70°C por até 8 semanas, até que se realizasse ELISA para determinar a quantidade de IFN-γ secretado. O ensaio foi realizado em lotes de 24-44 amostras do mesmo lote. O software fornecido pelo fabricante foi usado para analisar os resultados. O resultado do ensaio QFT-GIT era considerado positivo se o nível de IFN-γ após a estimulação com antígenos de M. tuberculosis menos o controle negativo fosse ≥ 0,35 UI/ml e 25% maior do que a concentração de IFN-γ na amostra não estimulada de controle; o resultado era considerado negativo se o nível de IFN-γ fosse < 0,35 UI/ml. O resultado era considerado indeterminado se a produção de IFN-γ na amostra não estimulada fosse ≥ 8,0 UI/ml ou a PHA menos a concentração de IFN-γ na amostra não estimulada fosse < 0,5 UI/ml. Em casos em que o resultado do primeiro ensaio QFT-GIT foi indeterminado, não se realizou um segundo ensaio; a decisão clínica baseou-se no TT.7 A concordância entre o ensaio QFT-GIT e o TT foi avaliada por meio do coeficiente kappa. A concordância era considerada excelente se o coeficiente kappa fosse > 0,75, razoável se fosse = 0,4-0,75 e ruim se fosse < 0,4. Para o cálculo da concordância, foram incluídos apenas os resultados positivos e negativos. As proporções foram comparadas por meio de OR ajustada (ORa) e seu intervalo de confiança de 95% em um modelo de regressão multivariada. As análises foram realizadas por meio do programa SPSS Statistics, versão 20.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA).
Oitenta e uma PVHA foram incluídas no estudo. A mediana de idade foi de 41 anos (variação: 34-48 anos); a mediana da contagem de células T CD4+ foi de 422 células/mm3 [intervalo interquartil (II): 221-646 células/mm3]. Os resultados do TT e do ensaio QFT-GIT foram positivos em 18 (22,2%) e 10 (12,3%), respectivamente, dos 81 participantes. O resultado do ensaio QFT-GIT foi indeterminado em 22 (27,1%) dos participantes (IC95%: 17,8-38,1%). A concordância entre os dois testes (entre os resultados válidos) foi classificada em razoável (κ = 0,62; IC95%: 0,37-0,87), principalmente em virtude de um maior número de resultados negativos do TT (Tabela 1).
Tabela 1 Fatores relacionados com resultados indeterminados do ensaio QuantiFERON-TB Gold In-Tube em 81 pacientes infectados pelo HIV.
Característica | Resultado do ensaio QFT-GIT | OR (IC95%) | ORa (IC95%) | ||
---|---|---|---|---|---|
Positivo | Negativo | Indeterminado | |||
n (%) | n (%) | n (%) | |||
Global | 10 (12) | 49 (60) | 22 (27) | -- | -- |
Sexo | |||||
Feminino (n = 41) | 5 (12) | 23 (56) | 13 (31) | 1,6 (0,50-4,3) | -- |
Masculino (n = 40) | 5 (12) | 26 (65) | 9 (22) | 1,0 (referência) | |
Faixa etária | |||||
42-84 anos (n = 40) | 7 (17) | 23 (57) | 10 (25) | 0,81 (0,30-2,2) | -- |
18-41 anos (n = 41) | 3 (7) | 26 (63) | 12 (27) | 1,0 (referência) | |
Uso de HAART | |||||
Não (n = 10) | 1 (10) | 6 (60) | 3 (30) | 1,2 (0,28-5,1) | -- |
Sim (n = 64) | 8 (13) | 39 (61) | 17 (27) | 1,0 (referência) | |
Não se sabe (n = 7) | 1 (14) | 4 (57) | 2 (28) | ||
Tabagismo | |||||
Sim (n = 51) | 8 (15) | 24 (47) | 19 (37) | 5,3 (1,4-20,0) | 6,0 (1,4-26,7) |
Não (n = 30) | 2 (16) | 25 (83) | 3 (10) | 1,0 (referência) | |
Abuso de álcool (CAGE) | |||||
Sim (n = 3) | 1 (33) | 1 (33) | 1 (33) | 1,4 (0,12-15,9) | -- |
Não (n = 76) | 9 (12) | 46 (62) | 21 (27) | 1,0 (referência) | |
Cicatriz de BCG | |||||
Não (n = 22) | 3 (14) | 14 (64) | 5 (23) | 1,2 (0,40-3,9) | |
Sim (n = 53) | 6 (11) | 33 (62) | 14 (26) | 1,0 (referência) | -- |
Não se sabe (n = 6) | 1 (16) | 2 (33) | 3 (50) | ||
TT | |||||
≥ 5 mm (n = 18) | 8 (44) | 5 (28) | 5 (28) | 1,04 (0,32-3,4) | -- |
< 5 mm (n = 63) | 2 (3) | 44 (70) | 17 (27) | 1,0 (referência) | |
Contagem de células T CD4+ | |||||
< 200/mm3 (n = 13) | 1 (8) | 5 (39) | 7 (54) | 4,0 (1,2-13,9) | 4,7 (0,91-24,0) |
≥ 200/mm3 (n = 62) | 9 (15) | 39 (63) | 14 (23) | 1,0 (referência) | |
Desconhecida (n = 6) | -- | 5 (84) | 1 (16) | ||
Carga viral do HIV | |||||
Indetectável (n = 44) | 10 (23) | 29 (66) | 10 (23) | 1,8 (0,65-4,9) | |
≥ 50 cópias/mm3 (n = 62) | 11 (34) | 16 (50) | 11 (34) | 1,0 (referência) | -- |
Desconhecida (n = 5) | -- | 4 (80) | 1 (20) | ||
Tempo de armazenamento das amostras | |||||
≤ 35 dias (n = 41) | 2 (5) | 19 (48) | 19 (48) | 11,5 (3,0-43,3) | 14,2 (3,1-64,2) |
> 35 dias (n = 40) | 8 (20) | 30 (73) | 3 (7) | 1,0 (referência) | |
Demora na incubação | |||||
> 144 min (n = 40) | 6 (15) | 29 (73) | 5 (13) | 5,0 (1,6-15,3) | -- |
≤ 144 min (n = 41) | 4 (10) | 20 (49) | 17 (42) | 1,0 (referência) | |
Anos desde o diagnóstico de HIV/AIDS | - | ||||
≥ 7 (n = 39) | 6 (15) | 23 (59) | 10 (26) | 0,91 (0,34-2,5) | -- |
< 7 (n = 40) | 4 (10) | 25 (63) | 11 (28) | 1,0 (referência) | |
Não se sabe (n = 2) | -- | 2 (67) | 1 (33) |
QFT-GIT: QuantiFERON-TB Gold In-Tube; ORa: OR ajustada (para contagem de células T CD4+, tabagismo e tempo de armazenamento das amostras); HAART: highly active antiretroviral therapy (terapia antirretroviral altamente ativa); CAGE: questionário Cut down, Annoyed, Guilty, Eye-opener (Reduzir, Aborrecido, Culpado e Bebeu de manhã); e TT: teste tuberculínico.
Nos participantes cujos resultados foram indeterminados, a mediana da contagem de células T CD4+ foi de 329 células/mm3 (II: 156-575 células/mm3), em comparação com 494 células/mm3 (II: 235-696 células/mm3) naqueles cujos resultados foram válidos (p = 0,237). A chance de resultado indeterminado foi 6,0 vezes maior em fumantes, 14,2 vezes maior em casos em que o tempo de armazenamento das amostras foi < 35 dias e 4,7 vezes em participantes com imunossupressão avançada (contagem de células T CD4+ < 200 células/mm3), embora esta última não tenha sido estatisticamente significativa, mesmo após ajuste para tempo de armazenamento e tabagismo (Tabela 1).
Relatou-se que a frequência de resultados indeterminados do ensaio QFT-GIT varia de 0% a 19,8%.8-12 Muitas variáveis relacionam-se com resultados indeterminados: infecção pelo HIV,9 imunossupressão avançada,9 vacinação prévia com BCG,10 terapia imunossupressora,11 doenças subjacentes,11 estar acamado,8 hipoalbuminemia8 e tuberculose ativa.13 Aspectos técnicos também resultam em um aumento significativo da proporção de resultados indeterminados6,9,11: defeitos de fabricação; erros analíticos; demora na incubação ou no processamento; técnica incorreta de agitação dos tubos e volume sanguíneo inadequado. Em nosso estudo, a proporção de resultados indeterminados do ensaio QFT-GIT foi maior que a relatada na literatura. Diferentemente de relatos anteriores, essa proporção não se relacionou significativamente nem com a contagem de células T CD4+ nem com a vacinação com BCG, embora poucos participantes tenham apresentado contagem de células T CD4+ inferior a 200 células/mm3, o que reduziu o poder de nossa análise. Por outro lado, o tabagismo e o tempo menor de armazenamento do soro antes do processamento para ELISA aumentaram sobremaneira a chance de resultados indeterminados. O tabagismo pode induzir imunossupressão por meio de mecanismos que não a redução da contagem de células T CD4+, tais como a redução da resposta proliferativa a mitógenos.14 Não sabemos da existência de nenhum relato de que o tempo de armazenamento no refrigerador afete os resultados do ensaio QFT-GIT, e não podemos oferecer nenhuma explicação razoável para nosso achado de que um tempo menor de armazenamento do soro aumentou a chance de resultados indeterminados. Independentemente do motivo dos resultados indeterminados, é recomendado realizar um segundo teste quando o resultado do primeiro é indeterminado, e a repetição de testes aumentará significativamente os custos laboratoriais.5 Embora nossa amostra tenha sido pequena, acreditamos que não tenha havido um viés de seleção.
Em resumo, o presente estudo mostrou que uma alta proporção de ensaios QFT-GIT apresentou resultados indeterminados, o que representa um grande obstáculo ao uso de ensaios desse tipo em PVHA no Brasil. Esse achado tem implicações relevantes para a relação entre custo e eficácia e a viabilidade do uso de ensaios QFT-GIT em países de baixa e média renda.