versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.3 São Paulo set. 2014 Epub 09-Maio-2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140057
Doenças valvares cardíacas não identificadas são associadas com significativas taxas de morbidade e mortalidade. Dessa forma, é importante que os pacientes com essa condição sejam corretamente identificados, investigados e monitorizados para que a apropriada intervenção seja feita a tempo. Contudo, a modalidade ecocardiográfica surgiu predominantemente com esta finalidade, recentes avanços em ressonância magnética cárdica e tomografia computadorizada cardíaca indicam que provavelmente ambos tenham importante contribuição. A atual revisão descreve a avaliação das válvulas cardíacas regurgitantes e estenosadas através de multimodalidade (diversos tipos) de imagens (ecocardiografia, tomografia computorizada cardíaca e ressonância magnética cardíaca), promovendo a discussão de seus pontos positivos e negativos.
Palavras-Chave: Diagnóstico por Imagem; Doença das Valvas Cardíacas; Técnicas de Imagem Cardíaca / tendências; Imagem por Ressonância Magnética; Tomografia
Unidentified heart valve disease is associated with a significant morbidity and mortality. It has therefore become important to accurately identify, assess and monitor patients with this condition in order that appropriate and timely intervention can occur. Although echocardiography has emerged as the predominant imaging modality for this purpose, recent advances in cardiac magnetic resonance and cardiac computed tomography indicate that they may have an important contribution to make. The current review describes the assessment of regurgitant and stenotic heart valves by multimodality imaging (echocardiography, cardiac computed tomography and cardiac magnetic resonance) and discusses their relative strengths and weaknesses.
Key words: Diagnostic Imaging; Heart Valve Diseases; Cardiac Imaging; Techniques / trends; Magnetic Resonance Imaging; Tomography
A valvopatia cardíaca é causa de significativa morbidade e morte prematura, representando, assim, um importante problema de saúde. A prevalência de valvopatia cardíaca moderada ou severa na população é de 2,5% nos países desenvolvidos e industrializados1, mas esse número chega a 13% no grupo etário ≥ 75 anos. Portanto, à medida que a população envelhece, cada vez mais os clínicos terão que identificar e monitorar a valvopatia cardíaca. Avaliar a adequação e o momento das intervenções é cada vez mais difícil devido às comorbidades cardíacas e extracardíacas.
A ecocardiografia é a principal ferramenta para avaliar a valvopatia cardíaca. Trata-se de recurso acessível, fortemente baseado em evidência (Tabela 1)2. Entretanto, a ressonância magnética cardíaca (RMC) e a tomografia computadorizada (TC) cardíaca tornam-se cada vez mais úteis. Esta revisão aborda os papéis e limitações de cada uma dessas técnicas de imagem para a avaliação de pacientes com valvopatia cardíaca.
Tabela 1 Intensidade da valvopatia cardíaca
Leve | Moderada | Grave | |
---|---|---|---|
Estenose aórtica | |||
Velocidade de pico (m/s) | < 3 | 3-4 | > 4 |
Gradiente médio (mmHg) | < 25 (< 30 * ) | 25-40 (30-50 * ) | > 40 (> 50 * ) |
Área valvar (cm2) | > 1,5 | 1-1,5 | < 1 |
Área valvar indexada (cm2/m2) | > 0,85 | 0,60-0,85 | < 0,60 |
Taxa de velocidade | > 0,50 | 0,25-0,5 | < 0,25 |
Regurgitação aórtica | |||
Largura Doppler colorido (%) | < 25 | 25-65 | > 65% |
Volume regurgitante (ml/batimento) | < 30 | 30-59 | ≥ 60 |
Largura de vena contracta | < 3 | > 6 | |
Fração regurgitante (%) | < 30 | 30-49 | ≥ 50 |
Tempo de meia pressão (ms) | > 500 * | 250-450 | < 200 * |
Estenose mitral | |||
Área valvar (cm2) | > 1,5 | 1-1,5 | < 1 |
Gradiente médio (mmHg) | < 5 | 5-10 | > 10 |
Pressão arterial pulmonar (mmHg) | < 20 | 30-50 | > 50 |
Regurgitação mitral | |||
Largura de vena contracta (mm) | < 3 | 3-7 | > 7 |
Volume regurgitante (ml/batimento) | < 30 | 30-59 | ≥ 60 a /≥30 b |
Fração regurgitante (%) | < 30 | 30-49 | > 50 |
Área do orificio regurgitante (cm2) | < 0,2 | 0,2-0,39 | ≥ 0,4 a /≥ 0,2 b |
Estenose tricúspide | |||
Área valvar (cm2) | < 1 | ||
Regurgitação tricúspide | |||
Largura de vena contracta (mm) | 7 | ||
Fluxo reverso - veias hepáticas | Presente | ||
Estenose pulmonar | |||
Gradiente de pico (mmHg) | > 60 | ||
Regurgitação pulmonar | |||
Tempo de meia pressão (ms) | < 100 |
Adaptado de: Bonow e cols. 2 .
*Recomendações da Associação Europeia de Ecocardiografia 13 .
Limites para regurgitação mitral primáriaa e secundáriab.
Diferencia-se estenose aórtica (EA) de 'esclerose' pela redução na abertura da valva (Figura 1) com uma velocidade transaórtica de pico > 2,5 m/s. É graduada usando-se um conjunto mínimo de dados de velocidade de pico, gradiente médio de pressão e área da valva aórtica efetiva (AVAE)a 3,4. (Tabela 1).
Figura 1 Ecocardiografia: valva aórtica no eixo curto. Figura 1A mostra a aparência tridimensional da valva aórtica com três cúspides no ecocardiograma transesofágico; Figura 1B mostra aparência da valva aórtica bicúspide no ecocardiograma transtorácico; e Figuras 1C e 1D mostram aparência da valva aórtica quadricúspide em sístole e diástole.
A ecocardiografia fornece informação sobre a anatomia e a função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo (VE). Também avalia o restante do coração, em especial a aorta, a valva mitral e o coração direito. Com a ecocardiografia de esforço, pode-se indicar cirurgia para pacientes com EA grave assintomática: sintomas (Classe I), queda na pressão arterial abaixo do basal (Classe IIa) ou aumento do gradiente médio > 20 mmHg (Classe IIb)5
Ao se classificar EA, o encontro de discrepância entre a AVAE e a velocidade e o gradiente é relativamente comum. O primeiro passo deve ser a revisão das medidas (Tabela 2) à procura de erros. O encontro de gradientes transvalvares na faixa grave e de AVAE na faixa moderada pode dever-se à localização equivocadamente baixa do volume amostral pulsado, dificultando a medida correta do diâmetro da via de saída do VE (VSVE). Tal situação também pode resultar de genuíno aumento do fluxo, como observado em sepse, anemia ou significativa regurgitação aórtica (RA) coexistente.
Tabela 2 Solução para a discrepância das medidas de gravidade da estenose aórtica
Avaliar a abertura valvar | ||
Área grave (< 1,0 cm2) | Avaliar o formato da onda (triangular = moderada) | |
Gradiente moderado (< 30-40 mmHg) | Indexar AVAE para ASC (Tabela 1) | |
Se FE <40% ou IVT <15, considerar ecocardiograma de estresse | ||
Checar se a posição da amostra pulsada subaórtica está longe da valva | ||
Gradiente grave (Vmáx > 4m/s) | Checar medida do diâmetro da VSVE | |
Área moderada (> 1,0 cm2) | Fluxo pode estar aumentado devido a concomitante regurgitação aórtica (avaliar | |
abertura valvar e formato da onda) |
AVAE: área da valva aórtica efetiva;ASC: area de superficie corporal; FE: fração de ejeção; IVT: integral velocidade-tempo; VSVE: via de saída do ventrículo esquerdo
Se a velocidade e o gradiente são moderados, mas a AVAE é grave, há várias possíveis explicações para a situação. Há evidência de que os pontos de corte para a área do orifício podem não ser válidos, sendo que áreas efetivas entre 0,8 e 1,0 cm2 podem às vezes indicar EA moderada mais do que grave. O formato da onda e a aparência e mobilidade da valva podem ajudar a diferenciar EA moderada de EA grave, e ainda ajudar a indexar AVAE para area de superficie corporal (ASC). Quando se considera impreciso o diâmetro da VSVE, o uso de taxa de velocidade adimensional também pode ser útil. Entretanto, acredita-se que, cada vez mais, tal situação possa ser causada por baixo fluxo.
Tradicionalmente, a EA de baixo fluxo foi diagnosticada como uma AVAE < 1 cm2, gradiente médio < 30 a 40 mmHg6, e fração de ejeção de VE (FEVE) < 40%. No entanto, um VE de parede grossa e pequena cavidade pode apresentar um baixo volume de ejeção até mesmo com uma FEVE normal. O baixo fluxo pode então ser reconhecido por uma integral de velocidade subaórtica < 15 cm, volume de ejeção indexado de 35 ml/m2 ou um fluxo calculado < 200 ml/s. Se a FEVE é baixa ou se a AVAE está na faixa 'grave' e o gradiente é apenas 'baixo-moderado', deve-se considerar a realização de um ecocardiograma de estresse com dobutamina. Confirma-se a EA grave se o gradiente médio excede 30 a 40 mmHg durante qualquer estágio da infusão de dobutamina, desde que a AVAE permaneça < 1,2 cm2 7-9. Também determina a reserva contrátil do VE, evidenciada por um aumento no volume de ejeção, integral da velocidade ou FEVE > 20%.
Hipertensão ou a consequente redução da complacência aórtica soma-se à resistência da valva aórtica (VA) para aumentar a impedância total da saída do VE. Isso pode resultar em grave disfunção sistólica ou diastólica do VE, mesmo quando a EA é moderada10-12. As medidas de pressão arterial devem ser tomadas idealmente no momento da ecocardiografia para garantir uma comparação válida entre os estudos seriados13, usando vários índices de impedância aórtica e de VA combinados14-17. No entanto, esses não são usados na clínica rotineiramente devido à falta de dados sobre desfecho de longo termo.
A etiologia da RA é mostrada nas técnicas de imagem bidimensional, podendo ser valvar ou secundária à dilatação aórtica ou ambas18,19. As valvopatias compreendem calcificação, VA bicúspide, endocardite infecciosa e doença reumática. O Doppler colorido fornece avaliação semiquantitativa (Figura 2). A RA grave aparece como uma largura de vena contracta > 6 mm ou altura do jato ≥ 65% do diâmetro da VSVE2,20. O tempo de meia pressão do sinal do Doppler de onda contínua é menos confiável porque também depende da pressão diastólica do VE, complacência de câmara e resistência vascular sistêmica21. A RA grave também é confirmada pela detecção de fluxo pandiastólico reverso na aorta descendente proximal com uma velocidade diastólica final tipicamente > 20 cm/s22 (Figura 2). O volume regurgitante (VolR) e a fração regurgitante podem ser calculados por Doppler de onda pulsada ou pelo método de area de superficie de isovelocidade proximal. Um VolR ≥ 60 ml e uma fração regurgitante ≥ 50% são considerados indicativos de RA grave2.
Figura 2 Aparência transtorácica bidimensional de regurgitação aórtica grave. Figura 2A mostra jato aórtico regurgitante ocupando 100% do diâmetro da via de saída do ventrículo esquerdo no corte paraesternal de eixo longo e a Figura 2B mostra 100% da via de saída do ventrículo esquerdo no corte apical de três câmaras. Figura 2C mostra fluxo reverso pandiastólico na aorta descendente proximal em Modo M colorido.
A RA crônica determina dilatação do VE, havendo hipertrofia excêntrica para melhorar o consequente aumento de estresse na parede. Há desenvolvimento de fibrose subendocárdica e, à medida que a ejeção do VE cai, ocorre insuficiência de VE se a cirurgia não é realizada. Na RA grave assintomática, há indicação de cirurgia quando a FEVE ≤ 50% (indicação Classe I) ou com um diâmetro diastólico final de VE (DDFVE) > 70 mm, ou diâmetro sistólico final de VE (DSFVE) > 50 mm (ou DSFVE indexado a ASC > 25 mm/m2) (Classe IIa). Medidas mais novas de comprometimento subclínico de VE (deformação e Doppler tecidual) foram propostas, mas não são aplicadas à prática clínica. Não se conhece o papel da ecocardiografia de estresse na RA, embora a avaliação de sintomas possa ser útil.
O achado de calcificação em VA em uma TC sem realce de rotina pode alertar para a necessidade de ecocardiografia (Figura 3)23-25. No entanto, a TC não faz parte da investigação de primeira linha, pois não pode fornecer dados hemodinâmicos e requer radiação ionizante e contraste iodado. O exame de imagem da VA deve ser realizado tanto na sístole quanto na diástole para permitir reconstruções a cada 5%-10% do ciclo cardíaco. A partir delas, a área geométrica do orifício pode ser estimada por planimetria (Figura 3)26. A TC também pode fornecer dados sobre o volume e a função do VE, além de medidas precisas da aorta ascendente. Pode quantificar o cálcio quando se suspeita de uma aorta em 'porcelana' na ecocardiografia ou angiocoronariografia invasiva. A TC é essencial para examinar a raiz da aorta antes da implantação da VA transcateter27,28, e pode detectar pannus e analisar a função da prótese valvar29. Além disso, a TC pode ser usada para avaliar a presença de doença coronária concomitante antes da cirurgia de VA, especialmente na presença de vegetações na VA (Tabela 3).
Figura 3 Tomografia computadorizada cardíaca de valva aórtica bicúspide. Figura 3A mostra morfologia e distribuição de cálcio na valva aórtica em paciente com valva aórtica bicúspide em imagem multiplanar reformatada. Figura 3B mostra planimetria de valva aórtica bicúspide e Figura 3C, a anatomia de aorta ascendente.
Tabela 3 Tomografia computadorizada cardíaca e avaliação da valva aórtica
Tomografia computadorizada cardíaca | |
---|---|
Estenose aórtica | Morfologia valvar |
Calcificação valvar aórtica | |
Tamanho preciso do anel aórtico | |
Dimensões aórticas | |
Planimetria valvar aórtica | |
Avaliação de TAVI | |
Avaliação coronária | |
Regurgitação aórtica | Morfologia valvar |
Má coaptação de folhetos | |
Dimensões aórticas | |
Avaliação coronária | |
Suspeita de endocardite | Abscessos da raiz da aorta |
Formação de aneurisma localizado |
TAVI: implantação transcateter de valva aórtica.
A TC cardíaca desempenha papel limitado na avaliação da RA. Quando apropriadas reconstruções de fase do ciclo cardíaco estão disponíveis a partir de uma TC cardíaca realizada por outros motivos (por exemplo, exame das coronárias), é razoável utilizar imagens multiplanares reformatadas para avaliar a configuração e a morfologia da VA e procurar áreas de coaptação deficiente dos folhetos valvares. Embora tenha-se demonstrado que a coaptação deficiente em TC cardíaca tenha sensibilidade de 95% e especificidade de 95%-100% para detecção de RA moderada-grave, medidas da área de RA por planimetria são menos confiáveis quando comparadas àquelas obtidas por ecocardiograma transtorácico (ETT) como padrão-ouro30,31.
A EA pode ser detectada na RMC através da identificação de turbulência de fluxo em seqüências de sangue brilhante na VSVE e aorta ascendente (Tabela 4 e Figura 4). A imagem da valva pode ser obtida através de seqüências de sangue brilhante. A área geométrica do orifício, medida por planimetria, apresenta boa correlação, ainda que seja sistematicamente subestimada em comparação com aquela obtida no ecocardiograma transesofágico (ETE) (Figuras 5 e 6)32-35. As principais razões para isso são o complexo formato tridimensional do orifício estenótico, a calcificação do folheto e a turbulência do jato associado, o que dificulta a visualização precisa do verdadeiro orifício estenótico. A RMC apresenta o benefício adicional de poder medir o fluxo e a velocidade através de qualquer estrutura tubular usando sequências com contraste e codificação de velocidade (VENC, sigla em inglês). Com uma seleção de plano ótima na raiz aórtica, pode-se obter a velocidade transaórtica de pico, a partir da qual o gradiente instantâneo de pico pode ser derivado, usando-se a equação de Bernoulli simplificada (4V2). Essa técnica requer cuidadoso mapeamento da área de interesse para cada imagem do ciclo cardíaco e uma seleção apropriada da velocidade máxima a ser programada na sequência de pulso para evitar artefatos de "aliasing". Os gradientes de pico através da VA obtidos com VENC apresentam boa correlação, mas são levemente subestimados, em comparação àqueles obtidos através de Doppler de onda contínua no ETT36-38.
Tabela 4 Princípios de técnica de imagem para valvopatia usando ressonância magnética cardíaca
Sincronização com eletrocardiograma |
Aquisições durante pausa respiratória |
SSFP balanceada para cine-sequenciamento em múltiplos planos (duas, três e quatro câmaras) |
Cine-VENC com contraste de fase no plano e através do plano para velocidade e fluxo |
Planos de eixo curto para quantificação de volume regurgitante e volume sistólico e função ventricular esquerda |
Realce tardio com gadolinio para detecção de fibrose miocárdica |
SSFP: Precessão livre no estado estacionário; VENC: codificação de imagem
Figura 4 Ressonância magnética cardíaca de valva aórtica bicúspide em diástole (A) e sístole (B). Turbulência através de valva aórtica é vista em branco. Figura 4C mostra o uso de ressonância magnética cardiovascular para visualização de raiz da aorta no mesmo paciente em que se detectou coarctação aórtica (seta preta).
Figura 5 Ressonância magnética cardíaca de regurgitação aórtica usando precessão livre no estado estacionário. Vê-se a regurgitação aórtica como um jato preto que se projeta na cavidade ventricular esquerda nos cortes coronal (5A) e apical de cinco câmaras (5B). Figura 5C mostra uma curva fluxo/volume derivada da codificação de velocidade para calcular o volume regurgitante.
Figura 6 Avaliação ecocardiográfica bidimensional e tridimensional de regurgitação mitral. Vê-se regurgitação mitral grave em Doppler colorido no corte apical de quarto câmaras (6A) e em Doppler espectral (6B). Figuras 6C e 6D mostram o uso de ecocardiografia transesofágica tridimensional para modelar a anatomia da valva mitral em indivíduo com regurgitação mitral grave. AO: Aorta; A: Anterior; AL: Anterolateral; PM: Posteromedial; P: Posterior.
A RMC é o método padrão-ouro para medir massa e volume de VE, podendo também avaliar função sistólica e diastólica de VE. Pode também diferenciar estenose subvalvar e supravalvar através do mapeamento de velocidade no plano. Permite avaliar toda a aorta, o que pode ser importante em pacientes com VA bicúspide, nos quais a janela ecocardiográfica não permite adequada obtenção de imagens acima da raiz. Novos estudos sugerem que a RMC detecte fibrose miocárdica usando realce tardio com gadolínio, que pode indicar um pior desfecho clínico39.
Pode ser identificada pela detecção de fluxo diastólico retrógrado para a VSVE com o método de Precessão Livre no Estado Estacionário (SSFP, sigla em inglês) no corte de VSVE de três câmaras (Figura 5). Uma quantificação precisa do VolR e da fração regurgitante pode ser obtida usando-se imagem do fluxo no plano capaz de medir tanto o fluxo anterógrado quanto o regurgitante através da VA. A partir daí, a fração regurgitante pode ser derivada [(VolR/fluxo anterógrado) x 100]. Essa técnica depende de traçado cuidadoso em torno da área de interesse de cada imagem do ciclo cardíaco e seleção do plano correto onde medir os fluxos anterógrado e regurgitante (Figura 5)40. A excelente reprodutibilidade da RMC para volumes de fluxo de RA e de VE é útil para exames seriados quando da determinação do momento da cirurgia41,42.
A regurgitação mitral (RM) pode ser primária (orgânica) ou secundária (funcional). As causas da RM primária incluem prolapso da valva mitral (doença 'degenerativa'), endocardite e doença reumática. As causas da RM secundária incluem as causas de disfunção de VE, mais comumente doença cardíaca isquêmica, hipertensão e miocardiopatia dilatada. Todas essas podem ser detectadas por ecocardiografia. O Doppler colorido detecta RM e quantifica sua gravidade (Figura 6) a partir da largura de vena contracta ou área do orifício regurgitante (AOR) efetiva, VolR e fração regurgitante usando o método PISA (Tabela 1)2. Há probabilidade de RM grave quando a largura de vena contracta é > 7 mm, a velocidade transmitral de pico é > 1,5 m/s e a relação IVT mitral: IVT aórtica é > 1,4 (onde IVT = integral velocidade-tempo)43. O ETT tridimensional ou o ETE pode fornecer informação anatômica e quantitativa adicional em pacientes com lesões complexas de valva mitral (Figura 6). A ecocardiografia de esforço pode ser útil em pacientes com sintomas discordantes para fornecer informação sobre mudanças na RM, função sistólica do VE e pressão arterial pulmonar. Um aumento na pressão arterial pulmonar sistólica induzido pelo exercício para > 60 mmHg é um critério para indicação de cirurgia quando a correção é possível. Na RM funcional causada por doença isquêmica, um aumento em AOR induzido pelo exercício ≥ 13 mm2 associa-se a um prognóstico bem pior.
Em pacientes assintomáticos com grave RM primária, a cirurgia está indicada quando: FEVE ≤ 60% (Classe I)2,5, ou DSFVE ≥ 45 mm (Classe I)5, ou até ≥ 40 mm (Classe I)2, uma vez que a valva seja passível de reparação. Para pacientes com RM secundária submetidos a revascularização coronária cirúrgica, em geral recomenda-se a correção mitral com um pequeno anel de anuloplastia na presença de regurgitação moderada ou grave. Entretanto, recomenda-se cirurgia quando há falta de ar como resultado de RM e não de doença cardíaca isquêmica nas seguintes situações5: (1) se a FEVE é < 30% e há evidência de significativa viabilidade e possibilidade de revascularização; ou (2) quando não há viabilidade, a FEVE > 30%, e o tratamento médico completo, incluindo terapia de ressincronização cardíaca, mostrou-se ineficiente, na ausência de significativa comorbidade.
A doença cardíaca reumática tem um aspecto típico na ecocardiografia bidimensional. As pontas dos folhetos mostram-se espessadas e a fusão comissural determina encurvamento dos folhetos em formato de 'taco de hóquei'. As cordas tendíneas mostram-se também espessadas e tornam-se emaranhadas. A planimetria da área valvar mitral deve ser realizada usando-se o eixo curto paraesternal em um frame médio-diastólico aumentado13. O ETT ou ETE tridimensional pode ser útil para selecionar o plano correto para planimetria. O registro do Doppler de onda contínua através da valva mitral possibilita medir o gradiente transmitral médio e o tempo de meia pressão. Estima-se a pressão arterial pulmonar sistólica usando-se a velocidade pico de regurgitação tricúspide (RT) (4 x Vmáx RT) somada a uma estimativa da média de pressão atrial direita fornecida pela magnitude e resposta do retorno venoso da veia cava inferior a uma inspiração forçada. Pode-se estimar a área valvar a partir do tempo de meia pressãob 44.
Pode-se, então estimar o grau de estenose mitral (EM) (Tabela 1).
A área valvar efetiva pode ser estimada usando-se a equação de continuidade ou o método area de superficie de isovelocidade proximal. A ecocardiografia de esforço acha-se indicada para pacientes com graves sintomas a despeito da apenas aparente moderada EM. Aumentos induzidos pelo exercício no gradiente médio para ≥ 15 mmHg ou na pressão arterial pulmonar sistólica para ≥ 60 mmHg são indicações de intervenção, se a valvoplastia mitral por balão é viável2. Isso é possível na ausência de calcificação comissural única grave ou bicomissural, grave envolvimento de cordas tendíneas, calcificação e imobilidade da valva, grau de RM maior do que leve, trombo em átrio esquerdo e necessidade de intervenção para envolvimento grave de outras valvas ou artérias coronárias45.
A AOR efetiva pode ser medida por planimetria, que apresenta boa correlação com o ETE46. Informação adicional obtida a partir da TC cardíaca inclui tamanho do anel mitral, comprimento e calcificação do folheto da valva mitral, espessamento de cordas tendíneas, dimensão do átrio esquerdo e detecção de edema pulmonar. Embora a cine TC cardíaca possa detectar e localizar de modo confiável prolapso segmentar de folheto, ela não é realizada de rotina.
A TC cardíaca presta-se particularmente para a detecção de calcificação de folheto, de comissura e de anel da valva mitral. Para uma avaliação dos componentes valvares, recomenda-se uma reconstrução a 65% do intervalo R-R para a valva mitral aberta e uma reconstrução a 5% do intervalo R-R para a valva mitral fechada. A área geométrica do orifício é medida por planimetria direta e mostrou boa correlação com o ETE (R = 0,88; p < 0,001)47. Outras informações que podem ser obtidas incluem: tamanho do átrio esquerdo, trombo em apêndice atrial esquerdo, hipertrofia de ventrículo direito (VD) e evidência radiográfica de edema pulmonar e hipertensão pulmonar.
A RM é vista inicialmente como uma perda de sinal na valva mitral, representando turbulência de fluxo no SSFP e sequências gradiente-eco. Para uma avaliação anatômica completa da valva mitral, seqüências de sangue brilhante devem ser adquiridas nos planos de duas, três e quatro câmaras, junto com uma tomada de eixo curto de todo o VE. Em seguida, um corte basal a partir da tomada de eixo curto deve ser selecionado, onde a valva mitral é vista. Cortes oblíquos podem ser então obtidos perpendicularmente à linha de coaptação, da junção A1-P1 inferiormente para a junção A3-P3, a cada 5 mm sem intervalo intercorte48. Esse sistema permite a precisa localização dos jatos regurgitantes e auxilia a localizar boceladuras ("scallops") dos folheto da valva mitral disfuncional. O VolR pode ser estimado usando-se o volume de ejeção do VE e o fluxo anterógrado dentro da aorta ao nível do seio de Valsalva usando VENC mapeamento com contraste. Calcula-se então a fração regurgitante [(VolR/volume de ejeção do VE) x 100]49,50.
A RMC não é usada rotineiramente para avaliar estenose mitral. A turbulência do fluxo que entra na valva mitral pode ser vista em no plano SSFP e a área da valva mitral pode ser medida usando-se SSFP cuidadosamente colocada através do plano. Embora tenha-se demonstrado que tal técnica correlaciona-se bem com áreas derivadas de eco51,52, é com frequência limitada pela presença de fibrilação atrial e problemas de sincronização com o eletrocardiograma.
As causas de valvopatia tricúspide primária (orgânica) incluem doença reumática, endocardite, prolapso e carcinoide. A regurgitação tricúspide (RT) secundária (funcional) é causada por anomalias do VD, como resultado de infarto ou sobrecarga de volume ou pressão. O Doppler colorido é a principal técnica para quantificação de RT grave apresentada como largura de vena contracta ≥ 7 mm. Embora a largura de vena contracta < 6 mm sugira RT de intensidade inferior a moderada, não existem pontos de corte bem validados para diferenciar RT leve de RT moderada53. Marcadores adicionais de RT grave são: pico de velocidade de onda E no Doppler pulsátil ≥ 1 m/s; um sinal denso de Doppler de onda contínua com rápido "upstroke" (Figura 7); e importante reversão de fluxo nas veias hepáticas54. Na RT grave compensada, o VD pode ser normal em tamanho, mas hiperdinâmico. Com o tempo, o VD se dilata progressivamente, podendo tornar-se hipodinâmico, como evidenciado por uma excursão do anel tricúspide < 15 mm ou uma velocidade sistólica máxima no Doppler tecidual na base da parede livre do VD < 11 cm/s55.
Figura 7 Ecocardiografia transtorácica bidimensional de regurgitação tricúspide grave. No corte paraesternal do fluxo tricúspide, há má coaptação dos folhetos anterior e posterior da valva tricúspide (7A) que origina um jato de regurgitação grave visto no Doppler colorido. Figura 7C mostra regurgitação tricúspide grave em Doppler de onda contínua (forma de adaga).
Na estenose tricúspide (ET) grave, os folhetos estão restritos embora possa haver relativamente pouco espessamento comparado àquele da doença reumática do lado esquerdo. A estenose grave é evidenciada por um gradiente médio ≥ 5 mmHg e tempo de meia pressão ≥ 190 ms no Doppler de onda contínua e área valvar ≤ 1 cm2 pela equação de continuidade. Outras medidas indicativas de ET significativa incluem dilatação de átrio direito e de veia cava inferior, que refletem elevadas pressões de átrio direito.
A TC cardíaca tem uso limitado na valvopatia tricúspide. Pode evidenciar efeitos secundários, tais como dilatação atrial e ventricular direita e refluxo de contraste para as veias hepáticas. Ocasionalmente, a TC cardíaca pode identificar causas pulmonares primárias para RT induzida por hipertensão pulmonar, como fibrose pulmonar ou doença pulmonar embólica.
Pode-se identificar significativa valvopatia tricúspide pelo fluxo turbulento através da valva tricúspide com no plano SSFP. Como com a RM, a RT pode ser quantificada através da medida do VolR e da fração regurgitante a partir do volume de ejeção no tronco da pulmonar e medida de volume de ejeção no VD por SSFP.
A imagem bidimensional pode fornecer dicas como a etiologia da disfunção da valva pulmonar (congênita, endocardite, síndrome carcinoide). Devem-se procurar anomalias congênitas coexistentes, como a comunicação interatrial, uma vez que valvopatia pulmonar congênita isolada não é comum. Grave regurgitação da valva pulmonar (RP) é evidenciada por um jato largo originado no tronco da pulmonar ou de seus ramos, no Doppler colorido (Figura 8), um tempo de meia pressao < 100 ms no Doppler de onda contínua (Figura 8) e um VD dilatado e hiperdinâmico. Para a estenose pulmonar (EP), o principal meio de detecção é a visualização de calcificação dos folhetos ou de redução da excursão dos mesmos em técnica de imagem bidimensional. Considera-se que, no Doppler de onda contínua, um gradiente transpulmonar de pico > 60 mmHg represente, em geral, EP grave2.
Figura 8 Ecocardiografia transtorácica bidimensional de regurgitação pulmonar grave. O Doppler colorido mostra que, na diástole, o jato ocupa toda a via de saída do ventrículo direito (8A). No Doppler de onda contínua, o tempo de meia pressao é < 100 ms, estando de acordo com regurgitação grave (8B).
A TC cardíaca pode ser útil para definir a complexa anatomia de cardiopatias congênitas e para detectar efeitos secundários da valvopatia pulmonar. Na RP, os seguintes itens podem ser encontrados: dilatação do anel da valva pulmonar; dilatação da artéria pulmonar; e dilatação de VD. Na EP, os seguintes itens podem ser encontrados: dilatação do tronco da pulmonar e das artérias pulmonares direita e esquerda; hipertrofia de VD; aumento do átrio direito; e abaulamento do septo interatrial para a esquerda.
Considera-se a RMC como sendo o padrão-ouro para a avaliação da RP. Através da visualização de RP por meio de cine SSFP e da habilidade de medir com precisão o VolR e a fração regurgitante com imagens de fluxo, tornou-se a técnica de escolha para a avaliação seriada de pacientes com cardiopatia congênita, onde a progressiva dilatação do VD e sua disfunção são importantes para identificar o momento ideal para intervenção na valva pulmonar. Em pacientes com EP, pode-se identificar fluxo turbulento através da valva pulmonar com cine SSFP. Embora a planimetria da valva pulmonar tenha uso limitado, a RMC é capaz de fornecer dados precisos de velocidade de pico através da valva pulmonar.
A ecocardiografia é a principal ferramenta para avaliar a valvopatia cardíaca. Quando a qualidade da imagem é pobre, a ressonância magnética cardíaca e a tomografia computadorizada cardíaca podem fornecer imagens de todas as valvas e suas áreas geométricas de orifício. Com frequência, a imagem da aorta ascendente é sub-ótima na ecocardiografia, sendo, em geral, necessário realizar ressonância magnética cardíaca ou tomografia computadorizada cardíaca para suprir tal deficiência. Tanto a ressonância magnética cardíaca quanto a tomografia computadorizada cardíaca são úteis para a avaliação da anatomia complexa em pacientes com cardiopatia congênita. A tomografia computadorizada pode ser usada para avaliar a doença coronária antes da realização de cirurgia valvar. Entretanto, não é indicada para avaliação de rotina de valvopatia, devido à sua incapacidade para fornecer dados hemodinâmicos e à sua inerente necessidade de contraste iodado e radiação ionizante. A ressonância magnética cardíaca é valiosa por sua habilidade de fornecer dados hemodinâmicos e também medidas precisas e reprodutíveis de volume, massa e função ventriculares. É considerada a técnica de escolha para a avaliação de valvopatia pulmonar e para a detecção de cicatriz miocárdica.
VENC - Codificação de velocidade (do inglês, velocity encoding) - trata-se de técnica especializada para codificar velocidades de fluxo na ressonância magnética cardíaca.
SSFP - Precessão Livre no Estado Estacionário (do inglês, Steady-State Free Precession) - técnica de ressonância magnética que usa sequência de pulsos gradiente-eco, em que se mantém uma magnetização residual transversa e estacionária entre os sucessivos ciclos.