versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.2 Rio de Janeiro 2019 Epub 28-Mar-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0259
Ao longo da década de 1990, em um contexto mundial favorável às discussões do feminino, emergiram críticas acerca do modelo de assistência obstétrica vigente, caracterizado pelo uso excessivo de intervenções sobre a mulher e pela medicalização do parto. Essas questões, juntamente com as altas taxas de mortalidade materna e neonatal, impulsionaram a organização de uma rede de movimentos pela humanização do parto e nascimento, a qual lutava pela autonomia das mulheres, por meio do resgate do parto vaginal com o mínimo de intervenções.1
No Brasil, essas reivindicações ganharam visibilidade no campo das políticas públicas e a humanização foi incorporada nos discursos programáticos do Sistema Único de Saúde (SUS), com a elaboração de documentos que destacavam o resgate do protagonismo da mulher e o uso apropriado de tecnologias na assistência obstétrica. Nessa perspectiva, as enfermeiras obstétricas tiveram um papel essencial na implementação das práticas humanizadas nos serviços de saúde, pois mostraram habilidades específicas de valorização do feminino no processo de parturição, compreendendo-o como um evento fisiológico e singular que perpassa pelos diferentes contextos da vida da mulher.2,3
Desde então, essas especialistas vêm se destacando na consolidação do modelo humanizado, principalmente por meio da desmedicalização da assistência à mulher enquanto eixo norteador do processo de cuidar das enfermeiras obstétricas, o qual gera práticas não medicalizadas que respeitam a fisiologia feminina e valorizam a autonomia das mulheres.4,5
Sob essa ótica desmedicalizada, as Tecnologias Não Invasivas de Cuidado de Enfermagem Obstétrica (TNICEO) são fundamentais, pois consistem em saberes estruturados, desenvolvidos e utilizados pelas enfermeiras obstétricas, como forma de oferecer outras possibilidades para as mulheres vivenciarem o parto e nascimento. Assim, envolvem mudanças de atitude na relação com as mulheres, em que o profissional assume o papel de coadjuvante e concebe o cuidado como uma construção compartilhada que promove o empoderamento feminino.2,5,6
Com base nessas concepções e considerando que o uso das TNICEO no cuidado à mulher de baixo risco está relacionado à uma assistência obstétrica segura, de qualidade e com desfechos maternos e neonatais amplamente favoráveis em comparação com as práticas do modelo medicalizado7-14, há de se considerar o uso dessas tecnologias no âmbito das situações de risco obstétrico, pois, ainda que se configurem como impeditivas para a atuação direta das enfermeiras obstétricas na assistência ao parto, essas especialistas são responsáveis pelo cuidado integral às mulheres durante sua internação nos centros obstétricos, independentemente da classificação de risco e do perfil de atendimento da instituição.
Frente ao exposto, este estudo objetivou discutir o uso das tecnologias não invasivas de cuidado por enfermeiras obstétricas na maternidade de alto risco. Essa pesquisa se fez relevante visto que há uma lacuna na literatura científica acerca da atuação das enfermeiras obstétricas no cuidado às mulheres com risco obstétrico associado, prevalecendo a abordagem das TNICEO nas situações de baixo risco.
Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo, realizado com dez enfermeiras obstétricas, que trabalham no centro obstétrico de uma maternidade de alto risco, vinculada a um hospital universitário do estado do Rio de Janeiro.
Como critério de inclusão, adotou-se a atuação profissional na assistência ao processo de parturição há mais de seis meses. Como critérios de exclusão, consideraram-se os afastamentos das especialistas no período da coleta dos dados. Por fim, das onze enfermeiras obstétricas que trabalham na referida instituição, somente uma não participou da pesquisa por estar de licença médica.
A coleta dos dados aconteceu nos meses de junho e julho de 2017, por meio de uma entrevista semiestruturada, seguindo um roteiro com as seguintes perguntas abertas: O que você entende por Tecnologias Não Invasivas de Cuidado da Enfermagem Obstétrica? Você utiliza essas tecnologias na assistência à parturiente com risco obstétrico? Quais dessas tecnologias você utiliza e por quê?
O processo de captação das participantes teve início com um contato prévio, para uma breve explicação da pesquisa, seguido do convite para a participação. Após o aceite, foi agendado um encontro para a realização da entrevista, em um ambiente que garantisse a privacidade. Mediante a devida autorização, as entrevistas foram gravadas, individualmente, em arquivos de áudio digital e, posteriormente, transcritas e transcriadas.
O material obtido nas entrevistas foi submetido à análise de conteúdo14 e envolveu as seguintes etapas: pré-análise, que consistiu na sistematização das ideias que emergiram das entrevistas, seguida da leitura flutuante; exploração e organização do material, que definiu as unidades de registro; e codificação, que identificou as unidades de significações e as agrupou em conjuntos maiores, de acordo com as características comuns de seus elementos.
Atendendo à Resolução nº 466/201215, as participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, explicitando a participação voluntária e a manutenção do anonimato. Para tanto, adotou-se a letra E, concernente ao termo entrevistada, seguida de um algarismo arábico, representando a ordem de realização das entrevistas.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob o Parecer nº 2.171.248 e CAAE nº 64217016.7.3001.5259, de maio de 2017.
Do processo analítico das entrevistas emergiram duas categorias: Utilizando as TNICEO sob a ótica das tecnologias do trabalho em saúde; e Utilizando as TNICEO na perspectiva da desmedicalização.
Essa categoria evidenciou que, sob a ótica das tecnologias do trabalho em saúde, as TNICEO são atitudes relacionais, conhecimentos, objetos e procedimentos que as enfermeiras utilizam no cuidado das parturientes de alto risco:
É o conhecimento teórico! A gente precisa saber a fisiologia do parto em si! Como acontece o processo do parto e do nascimento… Deve utilizar as tecnologias que tem em mãos: se tiver no setor uma bola, um cavalinho, um massageador, um aroma... Às vezes, não tem nada disto, mas só pelo fato de estar dando apoio psicológico e orientações... Então, o enfermeiro vai utilizar da teoria e das tecnologias físicas que ele encontrar no setor e o apoio psicológico! (E 02).
A gente usa métodos, objetos e, até mesmo, palavras para que a gente consiga trabalhar com a mulher. Oferecer a esta mulher de forma que ela entenda o que está sendo feito ali, o porquê de a gente estar usando aquilo ali, para que facilite a evolução do trabalho de parto, minimize a dor... Elas têm que ter apoio porque já têm uma carga emocional muito pesada! Elas já têm alguma patologia! […] Aqui, a gente tem bola, o cavalinho, o chuveiro… Eu procuro oferecer, de uma forma sutil, o banho, a deambulação, a respiração e a penumbra. (E 05).
Elas envolvem acolhimento, escuta, um olhar diferenciado para a mulher e para a família. […] tem coisas que não vão envolver nenhum objeto, como uma massagem que você pode fazer até sem o óleo, só com as suas mãos! Uma penumbra, um ambiente acolhedor, respiração consciente… Coisas que a gente pode orientar a mulher para ela passar melhor pelo processo. (E 07).
Nessa perspectiva, as atitudes emergiram como as TNICEO mais expressivas nas falas das enfermeiras obstétricas do estudo:
Partejar demanda tempo, demanda disponibilidade de você estar ali com a paciente, avaliar, observar… Oferecer é você estar ali com ela, mostrar como funciona, avaliar e ir acompanhando. […] o esclarecimento de dúvidas é muito importante e isto também não deixa de ser um cuidado porque a atenção deve ser valorizada junto com as necessidades da paciente. (E 01).
A iluminação, a questão da tranquilidade do ambiente, a disponibilidade do profissional, a entrega… O fato de ele estar ali concentrado naquele momento, direcionando a energia mesmo para aquela paciente. (E 03).
Oferecer um conforto para aquela paciente! Ela vai precisar de apoio, de um acolhimento… Qualquer mulher pode ter este apoio, este acolhimento, independentemente de ela ser alto risco ou baixo risco. (E 04).
Respeitando as singularidades de cada mulher e sob um acompanhamento sensível, elas entendem que as TNICEO também podem envolver o oferecimento de alguns objetos às parturientes com risco obstétrico associado:
[…] O rádio com música para favorecer um ambiente melhor onde ela possa descontrair através da música, do uso de essências, do banho morno, do cavalinho, da bola… Você tem que acompanhar! Estar junto! (E 01).
Elas envolvem a bola, o cavalinho, o banho morno, a deambulação. A paciente escolher a posição que ela se sinta melhor e deixar que ela, sob um olhar supervisionado, direcione o trabalho de parto e parto! (E 06).
Então tem alguns objetos que a gente pode usar nestas tecnologias, como: a bola, o cavalinho, a banqueta, o chuveiro, a banheira, massageadores, aromas… (E 07).
Além disso, as participantes afirmaram que o emprego das TNICEO abarca conhecimentos teóricos e técnicos, evidências científicas e a experiência prática.
É saber para quê serve cada um destes utensílios, qual a proposta de cada um, em que momento eles podem ser utilizados […] Você também tem que conhecer a dinâmica do trabalho de parto, as fases do trabalho de parto para saber exatamente em que momento você pode aplicar cada um! […] Você tem que entender em cada fase o que é mais apropriado para aplicar naquele momento e entender também o momento em que a mulher tem que ficar bem quietinha, descansando e guardando energias para o trabalho de parto ativo. (E 03).
Pessoas que vieram antes de nós fizeram estudos e foram desenvolvendo toda a base teórica destas tecnologias que a gente hoje utiliza. Então, a gente já pode estudar isso na teoria e já é descrito no manual de enfermagem obstétrica do município, em artigos científicos... Eu acho também que tem o conhecimento que vem da sua prática! (E 06).
Essa categoria mostrou que as TNICEO são utilizadas na perspectiva da desmedicalização, pois no processo de cuidar das parturientes de alto risco, existe o intuito de respeitar a fisiologia e as vivências femininas, não invadir o corpo, incentivar a participação ativa e promover o empoderamento da mulher.
Um conjunto de técnicas, procedimentos, conhecimentos que o enfermeiro obstétrico utiliza durante o cuidado entre profissional e parturiente, com o objetivo de fazer com que o parto seja voltado para o mais fisiológico possível, respeitando a natureza, respeitando a cultura desta mulher, respeitando o psíquico desta mulher e todos os seus desejos durante o parto. Por isso, nada impede de darmos todo apoio à mulher de alto risco, mesmo que o parto não aconteça com a nossa assistência ali em si, mas é necessário e faz toda a diferença! Esta mulher, mesmo a gente só oferecendo o nosso apoio, quando ela for parir, mesmo que seja com outro profissional, ela vai se sentir bem mais segura! (E 02).
Às vezes, as pessoas acham que porque a gente está no alto risco, a mulher não precisa [das TNICEO]. Mas eu acho que são as mulheres que mais precisam! Sempre tem alguma coisa que pode ser feito dentro das condições clínicas daquela mulher! Você pode fazer uma massagem, oferecer uma penumbra, oferecer um aroma, o banho… Para a redução do trabalho de parto e redução da dor, facilitar o movimento e eu acho que ela vai ficar mais centrada. Ela vai se empoderar naquilo que ela está pretendendo! (E 06).
Eu acho que isto [as TNICEO] dentro do alto risco também traz benefícios porque se você diminui a ansiedade, a percepção dolorosa, você melhora o quadro clínico específico de algumas patologias. Você aciona a compreensão natural da gestante para que ocorra aceitação, disponibilidade e envolvimento dela. Servem para que você consiga utilizar mecanismos que não interfiram na mecânica, no funcionamento corporal, para que você não invada a questão orgânica da paciente! Que seja um mecanismo natural e que ela participe! (E 08).
Os resultados do processo analítico mostraram que o uso de habilidades relacionais, a promoção de um ambiente acolhedor, o estímulo à participação ativa da mulher e à deambulação apresentaram-se como as TNICEO mais utilizadas pelas enfermeiras obstétricas deste estudo no cuidado à parturiente com risco obstétrico associado. Para tanto, também recorrem ao emprego de instrumentos, tais como a bola, o cavalinho, a água morna, as essências, e de procedimentos, como a massagem, para o desenvolvimento de um processo de cuidar que tem como finalidades principais oferecer apoio emocional, incentivar o empoderamento feminino, favorecer o processo de parturição, aliviar a tensão e promover o conforto.
Nessa perspectiva, as participantes compreendem que atitudes relacionais, posturas corporais, conhecimentos e objetos são elementos integrantes das TNICEO. Essa percepção remete à definição de tecnologia aplicada ao trabalho em saúde, que compreende um conjunto de elementos utilizados pelo profissional durante o ato produtivo do cuidado, perpassando recursos materiais e imateriais que assumem sentidos e são aplicados de forma singular conforme a visão de mundo que orienta seu processo de cuidar.16
As tecnologias de saúde são classificadas como: tecnologias duras, representadas por instrumentos, equipamentos, máquinas permanentes, instalação física, normas e estruturas organizacionais; tecnologias leve-duras, abarcando conhecimentos estruturados e saberes protocolados; e tecnologias leves, demonstradas nas relações humanas, nos processos relacionais, nas comunicações e na forma de conduzir a gestão dos cuidados e dos serviços.17-22
Sob essa ótica, constatou-se que no cuidado às parturientes de alto risco, as enfermeiras obstétricas do estudo empregam, predominantemente, tecnologias leves.2,4-6,23 As participantes destacaram as seguintes TNICEO como as mais utilizadas: oferecer apoio emocional, orientações e esclarecimento de dúvidas; valorizar as necessidades da mulher; realizar o acompanhamento sensível e contínuo; demonstrar disponibilidade, acolhimento e empatia; propiciar a liberdade de escolha da mulher; apresentar uma escuta qualificada, um olhar diferenciado e um toque apropriado; promover um ambiente acolhedor e com privacidade; estimular a respiração consciente e a deambulação; respeitar o protagonismo da mulher; estimular a participação do acompanhante; promover o conforto e relaxamento; e incentivar o empoderamento feminino.
As tecnologias leves consistem em saberes de base relacional que são utilizados no encontro entre o profissional e o usuário, para fins do acolhimento, do vínculo, da comunicação e da autonomização. A utilização predominante dessas tecnologias condiz com modos de cuidar que se sustentam num modelo de assistência humanizado, o qual tem como referência o trabalho vivo.16,24,25
Na perspectiva da Enfermagem, essas tecnologias se configuram como atributos da relação humana que integram o cuidar, situando-se na dimensão subjetiva do cuidado que se traduz em comportamentos, atitudes e posturas manifestadas durante o encontro da enfermeira com o cliente. Nesse espaço interacional, as habilidades relacionais são fundamentais para a construção compartilhada de um cuidado terapêutico com vistas à autonomia e ao empoderamento.25,26
Esse processo envolve diferentes formas de interação, que favorecem a produção do vínculo, a exteriorização de sentimentos, o reconhecimento das subjetividades e das reais necessidades do usuário, em que o diálogo é o eixo integrador do cuidado. Para tanto, a fim de que se estabeleça uma relação de confiança e ajuda, são necessárias algumas habilidades inerentes ao ser-saber-fazer da enfermeira, como: considerar a influência dos aspectos socioculturais e do ambiente para o conforto e bem-estar do cliente; utilizar a comunicação verbal e não verbal para expressar sensibilidade, reciprocidade, afeto, interesse e aceitação; compreender e respeitar os sentidos atribuídos às vivências particulares de cada um; demonstrar linguagem corporal de solidariedade e envolvimento; valorizar as inquietações e os questionamentos; assim como promover a troca de informações e saberes.24,25,27,28
Por outro lado, as tecnologias duras também emergiram como elementos integrantes das TNICEO, transparecendo nas falas das participantes por meio do rádio para música ambiente, das essências, do banho de imersão ou aspersão, do cavalinho, da bola suíça, dos massageadores e da banqueta. Como recursos materiais fabricados industrialmente que são utilizados pelas enfermeiras obstétricas no processo de cuidar, esses artefatos representam tecnologias duras do trabalho em saúde ou, ainda, tecnologias de produto.19,29
Expressa em bens duráveis que agem e intervêm sobre o ser humano em sua objetividade e subjetividade, esse tipo de tecnologia traz consigo certa materialidade e impessoalidade, as quais podem ser superadas a partir da compreensão de que é o cuidado que, por meio da enfermeira, utiliza os equipamentos.19 Sob essa ótica, as tecnologias duras fazem a mediação entre o pensamento e a ação, sendo subsidiadas por conhecimentos e pela experiência profissional, ao mesmo tempo em que seu uso perpassa pela reflexão acerca da natureza relacional e humanística da produção do cuidado.18,21
Para além de atitudes, posturas e objetos, todas as participantes destacaram que as TNICEO também abarcam conhecimentos teóricos e técnicos, evidências científicas e saberes emanados da prática. Esse arcabouço citado por elas pode ser vislumbrado na perspectiva das tecnologias assistenciais utilizadas no trabalho em saúde enquanto tecnologias leve-duras, definidas como recursos imateriais que envolvem uma esfera dura, representada pelos conhecimentos estruturados e saberes normatizados, e outra leve, referente ao modo singular como estes são aplicados para a produção do cuidado.29
No campo da Enfermagem, a parte dura dessas tecnologias conforma um saber-fazer mais organizado a partir do processo de enfermagem e dos saberes protocolados expressos nos manuais e nas recomendações oficiais. Por outro lado, a parte leve abrange os conhecimentos teóricos e técnicos da área da Saúde, da Enfermagem e da especialidade Enfermagem Obstétrica, as teorias e os fundamentos de enfermagem, assim como os modelos de cuidado.18,19,30
Acrescentam-se também as evidências científicas, as habilidades e os saberes advindos da prática que foram citados pelas enfermeiras obstétricas do estudo e condizem com outras tecnologias leve-duras, enquanto conhecimentos produzidos por meio da experiência cotidiana e da pesquisa a partir de necessidades percebidas no contexto real do exercício profissional.20,21
Ademais, há de se considerar os saberes especializados necessários para a utilização de equipamentos no cuidado, tais como suas indicações, aplicabilidades e seu manuseio. Esses conhecimentos são tecnologias leve-duras que consubstanciam cientificamente o uso das tecnologias duras, com a mediação de processos relacionais característicos das tecnologias leves.16
Dessa forma, por meio dos resultados da primeira categoria, constatou-se que as participantes do estudo utilizam as TNICEO como um conjunto de elementos, os quais, sob a perspectiva de Merhy17, podem ser apreendidos: como tecnologias leves, no caso das atitudes relacionais e posturas corporais; como tecnologias leve-duras, correspondendo aos conhecimentos; e como tecnologias duras, representadas nos objetos e procedimentos.
Ademais, considerando que as tecnologias leves foram as mais expressivas nas falas, é possível inferir que, a partir da utilização das TNICEO, o processo de cuidar dessas enfermeiras obstétricas na maternidade de alto risco apresenta um enfoque no trabalho vivo, pois a predominância de um tipo de tecnologia no processo de trabalho em saúde aponta para um certo modelo assistencial de modo que a produção do cuidado pode se organizar em torno: do trabalho morto, quando se baseia em um modelo prescritivo e procedimental, centrado no saber biomédico e na utilização de tecnologias duras; ou do trabalho vivo, que consiste em um modelo relacional apoiado no encontro do trabalhador com o usuário e suas subjetividades, o qual integra diferentes saberes ao uso de tecnologias leves para um cuidado humanizado e integral, com a valorização e promoção da autonomia.16
Essa constatação vai de encontro com o esperado para a atuação profissional no campo obstétrico de alto risco, em que é comum deparar-se com a predominância do trabalho morto e do uso de tecnologias duras.31-33 Essa contradição parece ser fruto dos princípios que orientam as participantes do estudo na utilização das TNICEO, pois a visão de mundo que sustenta a construção do cuidado determina os sentidos que são atribuídos aos recursos envolvidos nesse processo, os quais podem ser apreendidos na perspectiva do trabalho vivo ou do trabalho morto.28,29
Nesse sentido, considerando que o uso das TNICEO no processo de cuidar das parturientes de alto risco tem como finalidades respeitar a fisiologia e as vivências femininas, não invadir o corpo, incentivar a participação ativa e promover o empoderamento da mulher, percebe-se que as enfermeiras obstétricas desse estudo desenvolvem um cuidado com características desmedicalizadas.
A concepção de desmedicalização da assistência à mulher envolve mudanças de atitude dos profissionais na interação com a mulher, eliminando o raciocínio clínico-biomédico como única alternativa para a assistência obstétrica, incorporando novos olhares e saberes sobre o parto e admitindo a possibilidade de oferecer outras opções para as mulheres vivenciarem o processo de parturição e nascimento, por meio do oferecimento das TNICEO.4,5
Para tanto, compreende-se que: a mulher é a protagonista de seu parto, o qual é um evento biológico influenciado pelo contexto existencial da mulher, exigindo cuidados e não controle; o cuidado da enfermeira incorpora a intuição em contraposição ao uso de práticas que estimulam a racionalidade; a enfermeira respeita a privacidade e a segurança da mulher, apreendendo que qualquer procedimento que invada seu corpo requer esclarecimentos e autorização prévia.4,5
Esses princípios da desmedicalização foram identificados nas falas das participantes visto que a utilização das TNICEO conflui para a construção de um cuidado sensível, pautado na relação humana e na decisão compartilhada, na integralidade, na autonomia e no respeito aos direitos femininos.2,4-6,23
Enquanto saberes científicos, clínicos e obstétricos mediados por atitudes desmedicalizadas, o uso dessas tecnologias favorece o desenvolvimento fisiológico do processo de parturição e nascimento, minimiza a sensação dolorosa e reduz a necessidade de intervenções. Por outro lado, também propicia a construção do vínculo de confiança, promove conforto, estimula a participação do acompanhante, diminui a ansiedade, alivia a tensão e incentiva a participação ativa da mulher, proporcionando a vivência prazerosa do parir e nascer.4-6,23
Na perspectiva da segurança e da qualidade em saúde, as evidências científicas confirmam que a utilização das TNICEO está associada a uma experiência positiva do processo de parturição e nascimento, apresentando desfechos maternos e fetais favoráveis, pois: propicia a liberação de ocitocina endógena; permite a movimentação leve e a ampliação do diâmetro da pelve, auxiliando na descida da apresentação e na rotação fetal através do canal de parto; favorece a dilatação do colo uterino; minimiza a sensação dolorosa, a partir da liberação de catecolaminas e da elevação das endorfinas; facilita a progressão da fase ativa; melhora o fluxo sanguíneo e a oxigenação dos tecidos; promove o relaxamento; e reduz a ansiedade, o estresse e o medo.7,9,12,34-38
Frente ao exposto, constatou-se que as enfermeiras obstétricas deste estudo desenvolvem um processo de cuidar com características desmedicalizadas e com enfoque no trabalho vivo, a partir do uso das TNICEO, principalmente aquelas classificadas como leves. Desse modo, as parturientes e suas subjetividades são colocadas na centralidade do cuidado na maternidade de alto risco, onde, comumente, a valorização da patologia e dos saberes biomédicos conformam uma lógica prescritiva e intervencionista sobre o processo de parturição, com foco no trabalho morto e nas tecnologias duras.
Nesse sentido, vislumbra-se o caráter inovador das TNICEO e seu potencial para a reconfiguração do campo obstétrico de alto risco visto que as enfermeiras obstétricas introduzem um novo modo de produção do cuidado, baseado nas tecnologias leves e no trabalho vivo.
Essa inferência remete ao conceito de Merhy17,39 sobre reestruturação produtiva na saúde, compreendida como incorporações tecnológicas ou mudanças na organização do trabalho que agregam novos sentidos ao cuidado em saúde, as quais podem caminhar para a redefinição do modo de agir dos profissionais e, consequentemente, para a transformação do modelo assistencial, com a priorização do trabalho vivo em detrimento à hegemonia centrada em procedimentos.
Esse estudo evidenciou que, no processo de cuidar das parturientes de alto risco, as enfermeiras obstétricas utilizam as TNICEO sob a ótica das tecnologias do trabalho em saúde e na perspectiva da desmedicalização da assistência à mulher. Desse modo, elas se configuram como agentes transformadores da lógica de produção do cuidado nos campos obstétricos de alto risco, uma vez que colocam as mulheres na centralidade do cuidar e usam, predominantemente, tecnologias leves.
A partir dessa constatação, vislumbra-se a importância de investir na atuação da Enfermagem Obstétrica brasileira para além das situações de baixo risco, pois o uso das TNICEO na maternidade de alto risco constitui uma inovação tecnológica com grande potencial para impulsionar o exercício de cidadania das mulheres, a humanização da assistência e, sobretudo, a mudança do modelo de atenção obstétrica a partir do enfoque no trabalho vivo e nas tecnologias leves em detrimento ao trabalho morto e à hegemonia centrada em procedimentos e na intervenção.
Como limitação da pesquisa que impede generalizações, destaca-se o fato de se tratar de um estudo local realizado em uma única maternidade de alto risco, o que aponta para a necessidade de novas investigações nesses cenários assistenciais. No entanto, seus achados são válidos, pois refletem resultados semelhantes encontrados em pesquisas de maior abrangência em unidades de atendimento ao baixo risco obstétrico, locais em que a utilização das TNICEO e o processo de cuidar desmedicalizado vêm contribuindo para a efetivação das políticas públicas de saúde da mulher e conferindo autonomia à Enfermagem no contexto da humanização do parto e nascimento.