versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.24 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702017000500007
Desde meados dos anos 1980, a definição e a resposta às questões climáticas são associadas a uma base científica de monitoramento e previsão do sistema climático e ao regime climático multilateral negociado sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU). Por meio do trabalho de uma crescente comunidade científica das ciências climáticas, as mudanças climáticas antropogênicas foram definidas como um problema global causado pela queima de combustíveis fósseis e a elevada emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Essa percepção global teve sua expressão no primeiro relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 1991, que se tornou a instituição definidora dos parâmetros científicos para as discussões a respeito das políticas climáticas globais que, atualmente, ocorrem na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC).
A composição de redes internacionais como a UNFCCC e o IPCC ocorreu por meio de um processo histórico de mútua construção da ciência e da política climática global (Miller, 2004). Nesse processo, ainda em curso, a atuação estratégica dos Estados-nação na construção das bases científicas das mudanças climáticas e na negociação dos acordos políticos multilaterais é central (Christoff, Eckersley, 2011; Harris, 2013). O comprometimento dos Estados (ou não comprometimento) possui aspectos geopolíticos que, atualmente, podem ser percebidos nas rodadas de negociação da UNFCCC nas quais são discutidas propostas que pretendem atribuir responsabilidades diferenciadas a países desenvolvidos e em desenvolvimento nos acordos de metas de redução das emissões de carbono (Kartha, 2011).
Nas atividades do IPCC, a geopolítica se processa com relação ao princípio organizacional do “balanço geográfico” por meio do qual se pretende incluir membros de diferentes nacionalidades no painel (IPCC, 2013) e no processo de seleção e avaliação das publicações científicas desses países para produzir o relatório. Ao longo da produção dos relatórios, apesar de alcançada maior inclusão de pesquisadores de países em desenvolvimento no quadro institucional do IPCC, paralelamente, não ocorreu uma expressiva inclusão de produções científicas desses países na produção dos relatórios (Vasileiadou, Heimeriks, Petersen, 2011). A imensa presença das publicações científicas dos países desenvolvidos na composição dos relatórios do IPCC faz questionar como os governos dos países em desenvolvimento percebem e valorizam sua participação nesse painel (Kandlikar, Sagar, 1997; Mahony, 2014) e o que isso pode implicar na correlação de forças entre os Estados no regime político das mudanças climáticas. Tais questões sugerem que a geopolítica das mudanças climáticas precisa ser percebida tanto em espaços organizados para a negociação dos acordos políticos quanto em espaços destinados à avaliação e composição da ciência climática global (O’Lear, Dalby, 2015).
A atuação geopolítica dos Estados-nações no regime das mudanças climáticas ocorre por meio de práticas político-científicas que se inserem em fluxos globais por meio de redes internacionais como a UNFCCC e o IPCC. No entanto, esse regime global de práticas no qual os estados atuam geopoliticamente não está desconectado da sua escala local de atuação. A UNFCCC, por exemplo, ao exigir que os países signatários de suas convenções realizem estudos científicos regionais de vulnerabilidade (UNFCCC, 2006), quer incentivar uma atuação estratégica dos Estados em escala local. Para produzir tais estudos, é preciso desenvolver nacionalmente aparatos técnicos e produzir novos conhecimentos que permitam tornar os efeitos das mudanças climáticas “legíveis ao Estado” (Scott, 1998) e, consequentemente, tornar tais efeitos suscetíveis a práticas de governo nessa escala (Taddei, 2013). O desenvolvimento das capacidades tecnocientíficas do Estado é, portanto, uma condição para sua atuação geopolítica e governamental nas mudanças climáticas. Como essas infraestruturas e conhecimentos estratégicos são construídos é uma questão importante para que os estudos sociais das mudanças climáticas possam compreender como o Estado atua nesses processos em diferentes escalas.
A produção e utilização estatal de aparatos técnicos e conhecimentos climáticos é o que chamarei de tecnopolíticas das mudanças climáticas. Refiro-me com esse conceito a sistemas técnicos e conhecimentos centrais à formação dos objetos de governo e à “atuação do Estado” 1 no regime das mudanças climáticas. Entendo que tecnopolíticas estatais são conjuntos de vários processos de objetificação, cálculo, codificação e estratégia (Scott, 1998; Certeau, 1998; Miller, Rose, 2012); são pragmáticas de governo que constituem o Estado enquanto ator central no ordenamento simbólico em determinado território (Bourdieu, 1996). Nesse sentido, são produtoras de espaços dentro dos quais objetivos de governo são elaborados, e onde planos para implementá-los são legitimamente concebidos (Foucault, 2008b; Ferguson, Gupta, 2002). Como processo de conhecimento, cálculo e idealização de ações de governo, tecnopolíticas podem ser entendidas como formas de “governamentalidade” (Foucault, 2008b), isto é, racionalidades governamentais (ou “mentalidades governamentais”) incorporadas em meios técnicos que objetivam certos alvos e ensejam certas práticas de governo (Dean, 2010).
Estudos recentes têm indicado a crescente importância de modelos matemáticos, imagens de satélites e simulações em redes de pesquisa brasileiras que tentam informar a tomada de decisão em assuntos climático-ambientais ao mesmo tempo em que buscam atualizar suas infraestruturas de pesquisa (Lahsen, 2002; Taddei, 2012, 2013; Rajão, Vurdubakis, 2013; Monteiro, 2014, 2015; Bailão, 2014). Com foco nesses processos de produção de conhecimento, questiona-se se novas formas de representação científica do clima e do espaço constituem novas práticas governamentais em contextos diferentes daqueles dos países desenvolvidos.
O presente estudo pretende contribuir teórica e empiricamente para essa discus- são tratando do desenvolvimento de modelos e simulações computacionais para prever mudanças climáticas no Brasil. Tais projetos têm recebido recursos públicos e incentivos das políticas climáticas nacionais que são justificados pela declarada necessidade de produzir conhecimento científico para orientar a tomada de decisão 2 (Brasil, 2007). Um dos principais órgãos brasileiros envolvidos nesse processo é o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entidade estatal que constrói modelos climáticos e produz cenários climáticos futuros. Um de seus projetos atuais de maior destaque é o Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre (Besm, na sigla em inglês) - um tipo de ferramenta cara e complexa de previsão de futuros climáticos globais que, atualmente, é desenvolvido somente por um seleto grupo de países que participa das avaliações do IPCC.
Isso posto, investiga-se como a prática da modelagem no Inpe constitui-se em tecnopolíticas das mudanças climáticas. Expõem-se as pragmáticas dessas tecnopolíticas como modos de atuação do Estado brasileiro no regime das mudanças climáticas. Em um primeiro momento, discute-se como tais pragmáticas dirigem-se à atuação geopolítica do Estado em processos de produção do conhecimento climático global; processos esses que são marcados por condições desiguais de produção entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Posteriormente, indica-se como a modelagem produz formas de leitura dos futuros impactos das mudanças climáticas em escala local constituindo-se em tecnologia e racionalidade governamental (governamentalidade) de caráter biopolítico.
As análises serão baseadas em informações obtidas em trabalho de campo realizado no Inpe entre abril de 2013 e setembro de 2015, período no qual foram realizadas 28 entrevistas presenciais com pesquisadores; visitas aos laboratórios de modelagem climática; 3 e participações em eventos científicos e reuniões de trabalho da área. 4 Algumas informações importantes utilizadas na análise foram obtidas por meio da leitura de trabalhos científicos realizados pelo Inpe e outras instituições de pesquisa. Documentos institucionais do Inpe e planos oficiais do governo federal sobre mudanças climáticas também foram analisados.
Metodologicamente, considero este trabalho um esforço interpretativo que buscou obter respostas às questões propostas a partir de situações presenciadas e vividas em campo, mediante conversas e entrevistas com pesquisadores e pela leitura de materiais escritos coletados no decorrer da pesquisa. Além disso, as análises são orientadas por um número de trabalhos já publicados sobre modelagem climática na área dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT), os quais acrescentam informações e lançam luz sobre os dados obtidos em campo.
No Brasil, o Inpe exerce papel central junto ao governo federal no tratamento de questões que se referem às mudanças climáticas. Algumas de suas principais atribuições são: a coordenação da elaboração da Comunicação Nacional 5 para a UNFCCC, a gestão dos sistemas de detecção do desmatamento da Amazônia via satélite 6 e a coordenação das redes nacionais de pesquisa em mudanças climáticas - Rede Clima 7 e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT - Mudanças Climáticas). 8
A partir de 2007, a ampliação das atividades de modelagem das mudanças climáticas se tornou um dos objetivos estratégicos do Inpe, visando “consolidar-se como um ator relevante nos temas relacionados às mudanças ambientais e climáticas globais, reforçando o papel do Brasil na definição da agenda ambiental em âmbito global” (Inpe, 2007a, p.24). Durante trabalho de campo realizado no principal centro de modelagem do Inpe, o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), procurei entender como o desenvolvimento da modelagem computacional poderia servir para tais objetivos.
Nas conversas com “pesquisadores” 9 do CPTEC, a definição mais simples que obtive a respeito do que são os modelos climáticos foi “eles são um tipo de ferramenta computacional aplicado a meteorologia e ciências climáticas para realizar estudos e previsões dos fenômenos atmosféricos”. Essas ferramentas permitem que os climatologistas simulem o clima global e realizem experimentos que antes seriam impossíveis. Por exemplo, realizar projeções futuras do clima com altas taxas de emissão de carbono e investigar por meio dessas simulações o que pode acontecer com a temperatura do clima global.
Autores concordam que a importância desses modelos se deve ao fato de serem as principais ferramentas computacionais com as quais as ciências atmosféricas realizam atualmente estudos e previsões do clima global (Shackley et al., 1998; Miller, 2004; Lahsen, 2005; Edwards, 2010). Os modelos estão presentes de maneira substancial nos relatórios do IPCC e de maneira decisiva nas discussões sobre as modificações antropogênicas da atmosfera que embasam os acordos políticos internacionais (Demeritt, 2001; Wynne, 2010). Dessa maneira, a modelagem emergiu como um princípio organizacional fundamental para a comunidade epistêmica global que envolve as questões climáticas (Sudenberg, 2007). Nas negociações internacionais das políticas climáticas, os modelos se tornaram peças centrais que, de maneira mútua, reforçam a autoridade dos formuladores de política e a hegemonia epistêmica da simulação computacional como modo de produzir conhecimento sobre o clima global (Shackley, 1997; Hulme, 2013).
Desde seu primeiro relatório, o IPCC deriva sua compreensão da variação da média da temperatura global ao longo do século XX de vários exercícios de simulação com modelos climáticos globais. Atualmente, o projeto de modelagem de maior importância para o IPCC é o Coupled Model Intercomparison Project (CMIP), que compara simulações realizadas com os mais complexos modelos climáticos globais disponíveis, os chamados Modelos do Sistema Terrestre. 10 Por meio de uma série de exercícios padronizados de simulação realizada com modelos em centros climatológicos nacionais, o CMIP atualiza os futuros climáticos que embasam a produção dos relatórios do IPCC (Edwards, 2010).
Durante conversas com modeladores do Inpe sobre o funcionamento do CMIP, fui informado de que apenas 11 países no mundo participaram do projeto no último relatório do IPCC (CMIP/AR5). Eles destacaram que esse número reduzido de participantes se deve ao fato de que nem todos os centros climatológicos nacionais possuem recursos financeiros para investir, por exemplo, na compra de um ou mais supercomputadores e na formação de recursos humanos altamente especializados para desenvolver modelos computacionais de alta complexidade como os Modelos do Sistema Terrestre. O fato de o desenvolvimento da modelagem climática demandar alto investimento de recursos públicos faz com que poucos países no mundo consigam desenvolver seus próprios modelos para participar do CMIP. Logo, a atualização dos futuros climáticos do IPCC é realizada por poucos centros climatológicos no mundo.
Na realização do CMIP5, a maioria dos centros climatológicos participantes era de norte-americanos e europeus (Taylor, 2012). A saber, somente os EUA participaram do projeto com 22 versões de modelos, o que significa uma alta capacidade de modelagem climática e um maior volume de simulações incluídas na base de dados do CMIP5 em comparação aos demais países (Taylor, 2012). O único país da América Latina que participou do projeto foi o Brasil (Taylor, 2012), incluído nessa edição do projeto por ter recentemente iniciado o desenvolvimento de um modelo do sistema terrestre próprio no Inpe.
O fato de poucos países participarem do CMIP significa que o principal projeto de avaliação do conhecimento em modelagem que embasa os relatórios do IPCC tem sua produção concentrada em poucos centros climatológicos que possuem condições para desenvolver modelos cada vez mais complexos. Modeladores do Inpe com quem conversei enfatizaram que cada fase do CMIP exige novos avanços em modelagem que, na visão deles, coloca os centros de climatologia que pretendem participar do projeto em uma “corrida” para alcançar tais avanços. Nessa corrida, quem possui mais recursos para investir em infraestrutura de pesquisa pode produzir um volume maior de publicações nessa área, as quais podem ser avaliadas e incluídas na base de conhecimentos do Grupo de Trabalho 1 (GT1) do IPCC - o grupo das ciências exatas e naturais.
Conforme mencionado, no CMIP5, pela primeira vez, o Brasil participou do projeto com um modelo global próprio, o Brazilian Earth System Model (Besm). Em conversas com modeladores da equipe do Besm, procurei entender qual o significado dessa participação para o Brasil. O modelador e coordenador do projeto, Paulo Nobre (13 jun. 2013), destacou que, ao investir no projeto do Besm, “o Estado brasileiro entendeu que o Brasil precisa ter autonomia no desenvolvimento desse tipo de tecnologia, que precisamos criar competências em modelagem climática, devemos gerar massa crítica nesse tipo de pesquisa”.
Perguntado sobre qual seria a importância de produzir tais capacidades para o Estado brasileiro, Nobre (13 jun. 2013) me explicou que:
Nenhum outro modelo global representa detalhadamente a América do Sul, pois os esforços dos grupos de modelagem em todo o mundo se dão sempre no sentido de detalhar aspectos climáticos que lhes interessam para as suas respectivas zonas climáticas; portanto, se queremos um modelo adequado para o Brasil, devemos desenvolvê-lo por nós mesmos.
Nesse diálogo com o pesquisador, percebi que o termo “autonomia” possui o sentido de gerar uma base nacional de expertise em modelagem (massa crítica) para poder construir modelos sem depender de grupos estrangeiros. Chamou atenção na fala do pesquisador uma divisão entre os interesses “deles” (grupos estrangeiros) e os “nossos”. Para Nobre, e demais pesquisadores do Inpe entrevistados, a modelagem climática é um tipo de tecnociência considerada estratégica para o Estado brasileiro. Eles enfatizam que os modelos climáticos são tecnologias sensíveis que não são facilmente transferidas e que devem ser desenvolvidas por questões de segurança nacional, pois, com esses modelos, podem-se prever futuros climáticos, algo que importa às políticas de Estado e que, portanto, não deve depender inteiramente de produções estrangeiras.
As preocupações com a capacidade de modelagem do Brasil foi um tema recorrente nos eventos científicos de que participei, principalmente, na Conferência Nacional de Mudanças Climáticas (ConClima). Nesse evento, o desenvolvimento autônomo de modelos e simulações foi defendido por pesquisadores do Inpe como uma condição para o andamento dos planos de adaptação às mudanças climáticas no Brasil. Revelou-se, também, a ambição de “elaborar todo um sistema de modelagem e previsão global e regional para a América do Sul”, conforme ressaltou o pesquisador do Inpe José Marengo. 11 Esse sistema, segundo ele, teria como “eixo estruturante” o Besm, que poderia agregar pesquisadores brasileiros em torno desse projeto nacional comum e fornecer para outros países estudos e cenários futuros de mudanças climáticas.
Durante a ConClima, grande destaque foi dado ao Besm. Na ocasião, por diversas vezes foi ressaltado o fato de o Brasil desenvolver seu próprio modelo do sistema terrestre a exemplo dos outros dez países que constroem essa tecnologia. Falou-se do prestígio de se ter um modelo “de última geração”, “padrão IPCC”. O coordenador do projeto afirmou-me em entrevista que, com o Besm, “nós, brasileiros, começamos a aparecer no radar internacional da ciência climática mostrando que no Brasil não é somente futebol e café, é inovação também” (Nobre, 13 jun. 2013). Percebe-se, portanto, que o fato de o Brasil possuir seu próprio modelo do sistema terrestre adquire sentidos de que o país tem maior inserção no “primeiro mundo da ciência climática”. 12 De maneira pragmática, construir esse tipo de tecnologia quer sinalizar um possível rompimento com um passado de completa dependência da tecnociência de países desenvolvidos. Ser capaz de produzir modelos globais, portanto, é percebido como algo que redefine o papel do Brasil no espaço geopolítico da ciência climática internacional.
Avanços na tecnociência da modelagem são custosos, o que torna difícil a tarefa de minimizar o vão que separa países como os EUA e o Brasil no desenvolvimento desse tipo de ciência. As diferenças na capacidade tecnocientífica entre esses países produzem dinâmicas diversas de produção de modelos e simulações. Modeladores do Inpe informaram-me que o número de equipes e profissionais envolvidos com modelagem nos EUA é muito maior do que no Brasil. Um deles afirmou que “há no Brasil um número muito pequeno de profissionais dedicados à modelagem, o que torna difícil para nós competir” (Nilo, 2 out. 2013). Outro destacou que “eles estão muito à frente de nós em termos históricos, em número de equipes e capacidades computacionais” (Chou, 3 out. 2014).
Como consequência disso, o ritmo e a agenda de desenvolvimentos em modelagem necessários para participar de projetos internacionais como o CMIP são ditados por centros dos EUA e da Europa. Pude presenciar essas diferenças em eventos internacionais de modelagem como o Environmental Modeling in Amazonia e o Atmospheric Modeling Seminar. Nesses eventos, discutiu-se como equipes brasileiras de modelagem poderiam alcançar desenvolvimentos que serão exigidos na próxima versão do CMIP. Pesquisadores brasileiros com quem conversei nessas ocasiões relataram que estar fora do próximo CMIP representa um retrocesso que não corresponde às “expectativas alimentadas pelo MCTI e governo federal”, que investiram em projetos de modelagem no Inpe com “o intuito de construir uma condição de autonomia científica nas questões climáticas”.
As condições desiguais de produção de modelos climáticos globais e os anseios de autonomia identificados entre equipes de modelagem do Inpe indicam a existência de um processo que “complexifica” a minuciosa descrição histórica do globalismo infraestrutural das ciências climáticas realizada por Edwards (2010). Ao analisar o desenvolvimento de infraestruturas climatológicas, principalmente nos EUA e na Europa, Edwards (2010) considera que as ciências climáticas realizaram um esforço inédito de coordenação científica internacional para o compartilhamento de informações e desenvolvimento de uma ampla infraestrutura do conhecimento climático global. Tais infraestruturas produziram o caráter global do clima e possibilitaram falar hoje em governança global das mudanças climáticas.
O caso brasileiro aqui analisado expõe algo pouco explorado no trabalho de Edwards, a condição de desigualdade na produção e controle nacional dessas infraestruturas e sua dimensão geopolítica. Conforme já discutido por outros autores (Lahsen, 2002; O’Lear, Dalby, 2015), o processo de “globalismo” da ciência climática, que procurou transpor fronteiras políticas e se estabelecer como uma comunidade epistêmica global, possui nuanças que revelam diferentes agendas e conflitos entre grupos epistêmicos dos países do sul e do norte desenvolvido. Essas desigualdades e possíveis conflitos de interesses entre grupos epistêmicos na produção da infraestrutura climatológica global constituem processos que chamarei de “geopolítica infraestrutural do conhecimento climático”.
Com esse conceito, indicam-se os processos geopolíticos associados às capacidades tecno-científicas do Estado, capacidades as quais lhe permitem atuar tecnopoliticamente no regime internacional das mudanças climáticas por meio da construção de “infraestruturas” 13 para a produção do conhecimento climático. Considero que o caso da modelagem climática brasileira exemplifica a geopolítica infraestrutural do conhecimento climático administrada por grupos científicos de um país emergente que, por tradição, se posiciona diplomaticamente nas negociações climáticas como uma liderança dos países em desenvolvimento, com um discurso fortemente “soberanista” (Viola, 2002; Viola, Franchini, 2013). Como seria possível, no entanto, atuar soberanamente nesses assuntos se o Estado brasileiro continuasse a depender de futuros climáticos projetados por países desenvolvidos? Se não possuísse seu supercomputador, seu modelo global, suas equipes de pesquisa para produzir o conhecimento climático necessário para substanciar suas ações? Essas questões inquietantes foram notadas durante o trabalho de campo. Elas indicam que, no caso da pesquisa climática brasileira, produz-se uma “convergência normativa entre ciência climática e geopolítica” (Lahsen, 2002, p.8).
Durante o trabalho de campo, o aspecto geopolítico da ciência climática e, particularmente, da modelagem tornava-se claro quando se discutia a inserção do Brasil no IPCC. Em evento organizado pelo IPCC, realizado no Inpe, em 2015, foram apresentadas as principais contribuições científicas brasileiras (entenda-se aqui do Inpe) e negociadas as condições de um maior engajamento da comunidade científica nacional nos grupos de trabalho do painel. As contribuições científicas apresentadas foram exclusivamente da área de modelagem climática. Apresentaram-se os desenvolvimentos realizados no Besm e a produção de cenários climáticos regionalizados para a América do Sul. Pude perceber, durante as discussões entre pesquisadores brasileiros e membros da presidência do IPCC, que um dos principais pontos abordados foi como incluir mais produções científicas latino-americanas no GT1 do IPCC. Para tanto, as dificuldades apresentadas associam-se à baixa capacidade de modelagem desses países, pois tais produções científicas baseiam-se, em sua maioria, em experiências de simulação. Nas discussões, considerou-se que a exigência de alta capacidade técnica em modelagem e os critérios de excelência baseados em publicações de alto impacto constroem uma barreira de entrada no GT1, que acaba sendo majoritariamente ocupado por grupos científicos de países desenvolvidos. A presença de equipes de modelagem do Inpe no evento, expondo suas contribuições para a ciência climática global, evidenciou aos participantes os grandes esforços realizados por essas equipes para que suas produções fossem incluídas no GT1 do IPCC/AR5. Foi notório, nesse evento, o fato de que as desigualdades encontradas na ciência da modelagem climática global expressam uma condição mais abrangente de desacordos no IPCC que não aparecem em primeiro plano como de ordem geopolítica; no entanto, estão presentes de maneira decisiva na composição do regime global das mudanças climáticas.
De outro modo, mesmo em espaços de negociação normalmente considerados de natureza eminentemente geopolítica, como a cúpula dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a geopolítica infraestrutural do conhecimento climático também se expressa na discussão de questões ambientais. A esse respeito, o caso do workshop realizado no Brasil, que antecedeu a cúpula dos Brics de 2014, é esclarecedor (ver Guerra, 7 maio 2014). A respeito da ocasião, o climatologista brasileiro Carlos Nobre, na época em sua posição de secretário do MCTI, declarou que “a geração de pesquisadores da qual ele faz parte se formou em um ambiente em que tudo passava por Estados Unidos e Europa”. Ele enfatizou que “nós, de países em desenvolvimento, sempre olhávamos para o Norte em busca de intercâmbio científico”, mas que agora “o mundo não é composto apenas por um hemisfério, e as nações dos Brics mostram claramente outros arranjos, que são essenciais para o desenvolvimento sustentável do planeta como um todo” (Guerra, 7 maio 2014). O workshop terminou com a formulação e aprovação de um documento que estabelece cooperação entre os países do bloco em áreas de pesquisa oceanográfica, modelagem do clima e prevenção de desastres naturais (Rocha, 8 maio 2014). Nesse caso, trata-se de um processo de cooperação científica entre países em desenvolvimento que procuram produzir novos arranjos de intercâmbio científico, diferentes daqueles nos quais cooperavam com países do norte. Com relação a esses novos alinhamentos político-científicos que pretendem ser construídos, conhecimentos tecnocientíficos específicos são selecionados e servem para tais objetivos e arranjos políticos de países do sul. A esse respeito, nota-se que um mês antes da realização do workshop, o modelo Besm foi apresentado na China, em uma iniciativa de unir esforços entre equipes de modelagem dos Brics (Shimizu, 22 abr. 2014). Nota-se que a modelagem climática reaparece como ciência estratégica, como uma das áreas de cooperação científica das quais países do sul devem se ocupar prioritariamente.
Em síntese, esta seção argumentou que a modelagem global do clima refere-se a um tipo de tecnociência central na definição das causas e dos impactos do aquecimento do clima global. Foi demonstrado que os países do norte são os maiores desenvolvedores e depositários desse tipo de conhecimento no CMIP/IPCC. Por causa dessa condição, a produção nacional desse tipo de tecnociência é uma pragmática geopolítica importante para países do sul que escalam posições no regime internacional das mudanças climáticas. No caso do Brasil, sugeriu-se que os projetos de pesquisa em modelagem climática do Inpe se inscrevem em processos geopolíticos mais amplos de negociação que envolvem países do sul. De maneira pragmática, esses projetos são concebidos como formas de rearranjar certas correlações de força das ciências e políticas climáticas globais historicamente administradas majoritariamente por países desenvolvidos. Esse processo, aqui chamado de geopolítica infraestrutural do conhecimento climático, indica que os Estados-nação almejam gerenciar soberanamente seus assuntos internos e externos de acordo com suas próprias bases de produção de conhecimento climático. Nota-se, portanto, que a geopolítica das mudanças climáticas se processa por outros meios além das negociações políticas sobre a redução de emissões de carbono comumente percebidas como o grande foco de desacordos e controvérsias entre tomadores de decisão. Assim, a própria criação de condições infraestruturais do conhecimento climático se expressa como pragmática geopolítica, como um modo de o Estado negociar seu espaço internacional e se fazer presente nas questões climáticas tecnopoliticamente.
O desenvolvimento de modelos climáticos e simulações no Inpe também se refere a uma escala local de ação tecnopolítica do Estado brasileiro. Para a orientação da política climática no Brasil, o Plano Nacional sobre Mudanças do Clima preconiza que, com a elaboração de cenários climáticos futuros para o Brasil, “o país estará mais bem capacitado para identificar regiões e setores mais vulneráveis com maior grau de confiabilidade do que o oferecido pelos modelos globais do IPCC” (Brasil, 2007, p.87). Para contemplar esse objetivo, o incentivo a projetos de modelagem regional das mudanças climáticas no Inpe tem sido valorizado por autoridades estatais como pré-requisito para a ação do Estado em escala local. Identifica-se em certos discursos de autoridades políticas que, ao realizar essas simulações, o “Inpe está colocando uma lente de aumento sobre o Brasil” 14 possibilitando que o Estado “visualize” os impactos das mudanças climáticas sobre a vida humana com elevado detalhamento.
A respeito desses projetos de modelagem climática regional, o que importa para a presente análise é como a modelagem climática se torna uma tecnopolítica ao proporcionar um modo específico de visualização e leitura das mudanças climáticas ao Estado. Quero indicar que os modelos climáticos, ao “convidar” outros modelos matemáticos e econométricos para se unir a eles, permitem que o Estado identifique determinados setores da economia e populações vulneráveis. Modelos produzem, assim, previsões e performam o clima, inscrevendo-o em representações e narrativas totalizadoras (Taddei, 2013). Tais processos serão interpretados como um modo de “governamentalidade” das mudanças climáticas que torna as condições que asseguram a vida objetos da “biopolítica” do Estado (Foucault, 2008a, 2008b).
Os conceitos de governamentalidade e biopolítica foram introduzidos por Foucault (2008a, 2008b, 2010) para traçar um número histórico de racionalidades específicas ligadas ao Estado moderno. O termo governamentalidade é um neologismo que combina dois aspectos de governo: (a) a representação e o conhecimento do fenômeno a ser governado; (b) os modos de ação sobre tal fenômeno (Miller, Rose, 2012, p.72). O primeiro aspecto se refere às “racionalidades de governo” e o segundo às “tecnologias de governo”. Tais racionalidades e tecnologias identificam a natureza dos fenômenos a ser governados e especificam metas às autoridades. O termo “biopoder” ou “biopolítica” designa formas de poder exercidas sobre sujeitos como membros de populações que têm sua forma de vida ameaçada. Foucault (2008a, 2008b) percebe que a manutenção da vida das populações é uma condição para a soberania do Estado moderno. Tais populações sob ameaça podem ser conhecidas pelo Estado por meio de uma diversidade de estudos estatísticos, predições científicas, entre outras técnicas de mensuração de risco. A partir dessas pragmáticas que objetificam populações vulneráveis, o Estado pode efetivamente “governar a vida” tecnopoliticamente.
Autores têm indicado que questões ambientais, ao ser traduzidas em termos de ameaça à vida humana e às demais formas de vida, constroem-se como uma oportunidade para que os Estados-nação demonstrem sua capacidade de “fazer viver” estabelecendo estratégias centralizadoras de conhecimento e poder (Agrawal, 2005; Taddei, 2013; Braun, 2014; Turhan, Zografos, Kallis, 2015). Para tanto, é necessário que se construa a presença das ameaças climáticas futuras como objeto de práticas governamentais. Nessa seção, é esse tipo de pragmática que quero indicar ao analisar a projeção de cenários climáticos futuros para o Brasil.
O primeiro projeto de produção de cenários climáticos para o Brasil foi realizado pelo Inpe em 2007, o projeto Cenários Climáticos Probio (Inpe, 2007b). 15 Pela primeira vez, foram simulados climas futuros regionalizados, publicados na forma de mapas que comunicam anomalias de chuva e anomalias de temperatura para o período de 2071-2100. Nesse atlas de climas futuros, focaliza-se cada uma das cinco macrorregiões do Brasil e projetam-se médias e anomalias de temperatura e chuva para cada estação do ano (ver Figura 1).
Nota-se na Figura 1 que uma das principais formas utilizadas para comunicar resultados de modelagem é por meio de representações cartográficas do clima. São utilizadas isolinhas para separar áreas com valores diferentes de chuva e temperatura, também separadas por gradações de cores. Nessa representação, são reproduzidas as divisões territoriais dos Estados nacionais da América do Sul e das macrorregiões brasileiras. As mudanças do clima, portanto, são visualizadas em um espaço político, isto é, áreas específicas de governo, territórios, fronteiras - marcações geopolíticas suscetíveis à estratégia centralizadora e autoritária do Estado 16 (Certeau, 1998; Scott, 1998; Paterson, Stripple, 2007; Bourdieu, 1996).
Segundo Mahony (2014), a modelagem das mudanças climáticas tem sua autoridade legitimada em um momento de crescente importância das capacidades técnicas que permitem saber como será o território no futuro. Assim como outros mapas, os climáticos representam poder e são valorizados porque se tornam projeções úteis ao planejamento e ordenação do território (Carey, 2012). Nesse sentido, padrões cartográficos tornam-se grades de inteligibilidade dos fenômenos climáticos que permitem um modo específico de leitura desses fenômenos ao Estado (Scott, 1998). A partir desses espaços codificados e suscetíveis à leitura, novas predições podem ser realizadas permitindo que objetivos específicos de governo possam ser estipulados (Taddei, 2013).
Os cenários Probio deram início a uma série de outros estudos de modelagem realizados por outras instituições brasileiras em parceria com o Inpe. Nos parágrafos seguintes, analisarei o projeto realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o estudo realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ambos em parceria com o Inpe. Esses estudos foram chamados de “Mudanças climáticas, migrações e saúde: cenários para o Nordeste brasileiro 2000-2050” e “Aquecimento global e a nova geografia da produção agrícola no Brasil”, respectivamente. A respeito desses estudos, os materiais que serão analisados são obras de divulgação científica dessas pesquisas, forma pela qual os resultados de modelagem são frequentemente transmitidos aos tomadores de decisão e ao público. 17
O estudo realizado pela UFMG e Fiocruz (Cedeplar/UFMG, Fiocruz, 2008) utilizou as projeções de anomalias de temperatura e precipitação para a região Nordeste (elaboradas pelo projeto Cenários Climáticos Probio) para realizar estudos de impacto no crescimento econômico e na saúde pública dessa região. Os dados das projeções do Probio foram integrados a modelos econômicos e demográficos por meio dos quais foram desenvolvidos índices de vulnerabilidade nas áreas da saúde e migração. Com isso, o estudo produziu correlações complexas entre o aumento da temperatura, queda do PIB na região, crescimento populacional, desnutrição, falta de recursos hídricos, aumento da ocorrência de doenças, migração das populações e aumento dos gastos públicos em decorrência desses eventos. Com base nas projeções, foram feitas inferências minuciosas sobre as populações locais consideradas em risco como a seguinte:
[Com base nos modelos] A população residente no nordeste setentrional deverá migrar rumo à floresta em função da proximidade e da história migratória dessas regiões. Uma das dificuldades que os migrantes nordestinos deverão enfrentar nos municípios a que chegarem é a restrição do acesso a serviços de água e esgoto. Essa inferência é possível a partir da observação de que algumas das áreas que poderão vir a receber os maiores contingentes de migrantes não apresentavam a infraestrutura necessária para o fornecimento de água tratada e a coleta e tratamento de esgoto em 2000 (Cedeplar/UFMG, Fiocruz, 2008, p.33).
Nesse trecho, a associação entre o aquecimento da temperatura e o fenômeno migratório da população do Nordeste é identificado em trajetórias específicas na região e mensurado na forma de necessidades de infraestruturas de abastecimento de água e saneamento. Migração, falta de saneamento e possibilidade de aumento de doenças são fatores que conseguem ser associados com base na modelagem e projeção de um futuro climático aquecido para a região.
A respeito da questão da migração da população nordestina, é interessante perceber como o movimento dessas populações pelo território surge no estudo como questão de segurança. Informa-se que “os retirantes climáticos” nos próximos cinquenta anos podem deixar sua terra em direção às cidades e outros estados (Cedeplar/UFMG, Fiocruz, 2008, p.29). Essa questão é tratada no texto como se o movimento dessas populações representasse perigo, riscos à saúde, algo indesejado social e politicamente. Nesse sentido, indica-se que as projeções das alterações climáticas trazem à tona o antigo problema biopolítico da circulação de pessoas e coisas como algo que deve ser gerido pelo Estado, sobretudo, quando estão em jogo questões sanitárias e a escassez de recursos naturais. Como modo de gestão dessas ameaças, os projetos biopolíticos procuram “maximizar a boa circulação e desestimular a má circulação de pessoas e coisas” (Foucault, 2008a). Torna-se evidente o caráter biopolítico adquirido pelo estudo naquilo que é sugerido pelos autores ao Estado como medida administrativa dos efeitos das mudanças climáticas na região. Segundo os autores, o Estado deve criar certos condicionamentos para que se fixe o “retirante climático” na região por meio da construção de um milhão de cisternas; do aumento de incentivos governamentais para desenvolver novas técnicas agrícolas; da construção de novas infraestruturas de saneamento e atenção à saúde; e da continuidade de programas sociais como o Bolsa Família (Cedeplar/UFMG, Fiocruz, 2008). Tais medidas administrativas têm como alvo vidas que se tornam vulneráveis à medida que sistemas e infraestruturas dos quais dependem para sobreviver são ameaçados pelas mudanças climáticas (Collier, Lakoff, 2014). Como pragmática, a modelagem climática cria um espaço no qual a biopolítica possa ser elaborada, pois identifica infraestruturas críticas à manutenção da vida e caracteriza “populações vulneráveis” como objetos de governo passíveis às intervenções calculadas do Estado.
O estudo realizado pela Embrapa e o Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura/Universidade Estadual de Campinas, por sua vez, utilizou os cenários modelados do Probio para produzir estimativas de perdas no cultivo de diferentes gêneros agrícolas no Brasil. Conforme anunciado no título do estudo (Embrapa, 2008), trata-se de exposição e análise da “nova geografia da produção agrícola no Brasil”. Ou seja, para o próximo século, estuda-se quais cultivos agrícolas terão que ser deslocados para outras áreas devido ao aquecimento crescente e quais serão as perdas estimadas para o setor agrícola. Isso ressalta a importância dada, por um lado, ao fator territorial e, por outro, às perdas econômicas relacionadas ao aquecimento crescente da temperatura.
A partir das simulações do Probio para 2100, nesse estudo foram feitas deduções estatísticas para os anos 2010, 2020, 2050 e 2070. A redução da escala temporal indica que o estudo da Embrapa buscou produzir coordenadas temporais que trazem as mudanças climáticas para uma escala temporal de proporções humanas e que, dessa maneira, podem inculcar mais facilmente um sentido de urgência nos atores do meio empresarial e político (Taddei, 2012; 2013). Tratando-se de escalas espaciais e aspectos territoriais, o estudo territorializa os impactos do aquecimento da temperatura na agricultura em estados brasileiros e seus respectivos tipos de cultivos.
A apresentação dos impactos do aquecimento no território nacional se dá por meio de mapas acompanhados por textos que tratam diretamente do assunto em termos de perdas estimadas em valores monetários. Fala-se em um montante de R$7,4 bilhões e R$14 bilhões em perdas do setor agrícola, respectivamente, para os anos de 2020 e 2070, sendo a soja a cultura mais afetada com perdas estimadas em 40% da produção em 2070. Alerta-se que estão ameaçados vários gêneros agrícolas. Além da soja - maior responsável pela balança comercial do setor - a produção de mandioca - principal base alimentar da região Nordeste do país - é destacada como um caso de ameaça à “segurança alimentar”, devido às alterações climáticas.
De acordo com Foucault (2008b, p.51), a questão da segurança alimentar, como um problema relacionado à alta do preço dos alimentos, é um problema biopolítico, pois se refere à indisponibilidade de recursos vitais à população. Segundo o autor, o problema requer do Estado a elaboração de um conjunto de técnicas governamentais que incidam sobre a circulação dos alimentos a fim de regular sua escassez. Compreender a circulação de alimentos e lhe impor, por um lado, certos constrangimentos e, por outro, liberações são as principais características desse tipo de governamentalidade.
Quando relacionada às mudanças climáticas, contudo, a segurança alimentar se torna um problema profundamente técnico que transcende a questão de sua indisponibilidade e circulação no mercado. Trata-se de um novo conjunto de problemas que exigem que o Estado atue de maneira pragmática, fomentando novas técnicas de produção como, por exemplo, a necessidade de se produzir com baixa emissão de carbono e de adaptar os gêneros agrícolas ao aquecimento da temperatura. Nesse sentido, a questão da circulação de alimentos como um problema de assegurar a disponibilidade de tais recursos às populações está associada à necessidade de “assegurar a vida” dos gêneros agrícolas em um futuro aquecido. Assim, o alvo da biopolítica dirige-se a questões de segurança que requerem garantir a vida futura dos cultivos agrícolas que sustentam a vida humana (Cavanagh, 2014).
Ao acessar a geografia futura da agricultura brasileira, o estudo de modelagem da Embrapa afirma que:
Os cenários futuros projetados para a agricultura brasileira neste estudo podem parecer assustadores e até desanimadores à primeira vista, mas é importante ressaltar que eles só vão acontecer com tanta intensidade se o modo de produção do país permanecer da forma como é feito hoje. Algumas perdas devem ser inevitáveis, visto que o país só agora começa a conhecer sua vulnerabilidade neste setor (Embrapa, 2008, p.75).
Tais medidas são sugeridas ao final do trabalho e consistem em uma sequência de pacotes tecnológicos que devem ser fornecidos pelo Estado para ser implementados no setor agrícola. Sugerem-se técnicas de integração pastagem-lavoura para reduzir as emissões de carbono da agropecuária; a adoção de sistemas florestais que evitem as queimadas para o plantio; o plantio direto que evita o manejo e liberação do carbono no solo; e o melhoramento genético e a transgenia para adaptar as plantas a um novo regime de chuvas e temperaturas futuras.
As “narrativas sobre futuros aquecidos” (Bailão, 2014) e propostas de medidas estatais adequadas para a segurança dos gêneros agrícolas são produzidas com base na antecipação dos futuros climáticos realizada com modelos matemáticos, por meio de seu poder de prever e “performar socialmente a temporalidade” (Taddei, 2013); o que lhes atribui o caráter tecnopolítico de criar espaços para o planejamento biopolítico do Estado.
Este artigo discutiu como a ciência da modelagem climática constrói objetos de governo e permite certos tipos de atuação governamental do Estado no regime das mudanças climáticas. Considerou-se importante compreender quais conhecimentos tecnocientíficos são produzidos para a administração do Estado, e quem os desenvolve. Além disso, permitiu-se pensar o que a centralidade desse tipo de conhecimento pode significar em termos de práticas de governo sobre as mudanças climáticas. Assim, dirigiu-se o olhar para processos e atores que normalmente não são incluídos em análises das políticas climáticas.
Ao explorar a dimensão política dos processos de produção do conhecimento climático, foram identificadas iniciativas de grupos científicos ligados ao Estado brasileiro que pretendem superar condições desiguais no sistema de ciência internacional e criar condições para práticas governamentais do Estado em escala local. Depreendeu-se que as escolhas feitas por esses grupos no campo da ciência carregam significados geopolíticos e governamentais importantes, pois constituem pragmáticas por meio das quais estipulam-se certos horizontes para a atuação do Estado.
Não se conclui com isso, no entanto, que relações deterministas e utilitaristas estejam ocorrendo entre ciência e política climática no Brasil. Reconhece-se que tecnologias como a modelagem, que buscam intervir em atividades e processos, produzem suas próprias dificuldades, não funcionam a contento e, às vezes, convergem pobremente para as racionalidades nas quais seu papel é concebido. De fato, como observaram Miller e Rose (2012, p.53), “governar não é a realização do sonho de um programador”.
O que se pretendeu iluminar neste trabalho foram pragmáticas que expressam certos esquemas idealizados, sempre incertos e incompletos, de planejar, produzir e atingir certos objetivos de governo. Pude perceber tais pragmáticas ao investigar a modelagem climática, ao conhecer sua maneira de produzir conhecimento, e, ao mesmo tempo, de estipular certos horizontes para as práticas governamentais e atuação do Estado. Com isso, esboçou-se um certo modo de governamentalidade, uma certa maneira de planejar e atuar nas mudanças climáticas cuja centralidade do Estado e certos tipos de conhecimento são considerados indispensáveis.