versão On-line ISSN 2317-6431
Audiol., Commun. Res. vol.19 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312014000200016
As disfunções temporomandibulares (DTMs) abrangem um grupo de condições musculoesqueléticas e neuromusculares que envolvem as articulações temporomandibulares (ATM), os músculos mastigatórios e todos os tecidos associados(1). A causa das DTMs é complexa, multifatorial e está relacionada a fatores predisponentes, desencadeantes e perpetuantes, como a condição oclusal, trauma, estresse emocional, fontes de estímulo de dor profunda e atividades parafuncionais(2).
Os sinais e sintomas associados a esses transtornos são diversos e podem incluir dificuldades na mastigação, na fala e em outras funções orofaciais(1). Entre as manifestações mais comuns, estão também dor aguda ou persistente, sensibilidade nos músculos mastigatórios, nas ATMs e nas estruturas adjacentes, limitações ou desvios dos movimentos mandibulares e ruídos articulares(3-5). As formas crônicas das DTMs podem levar à abstenção no trabalho e ausência de interação social, resultando em redução geral na qualidade de vida(1).
Muitos estudos foram realizados com eletromiografia de superfície (EMGS) na avaliação dos músculos mastigatórios(6-8) e esse método é capaz de demonstrar as funções e disfunções desses músculos(9). No entanto, a utilidade da EMGS ainda é controversa, principalmente quando relacionada ao diagnóstico das desordens temporomandibulares(10). Acredita-se que, se utilizada de acordo com as recomendações específicas e em conjunto com história clínica e exame físico bem conduzidos, a EMGS gera dados objetivos documentáveis, válidos e reprodutíveis sobre a condição funcional dos músculos mastigatórios de um indivíduo(11). Além disso, a EMGS é uma técnica de avaliação não invasiva, de baixo custo e fácil utilização(12).
O desempenho, durante a mastigação habitual, depende da associação de vários fatores, como oclusão, força máxima de mordida e cinemática dos ciclos de mastigação(13). A maioria das pesquisas com EMGS na musculatura mastigatória está relacionada à ativação neuromuscular durante o repouso ou apertamento máximo(14). No entanto, compreender a influência da DTM durante a mastigação habitual do indivíduo é essencial, principalmente por sua influência na qualidade de vida. Dessa forma, o estudo do comportamento elétrico durante a mastigação, como, por exemplo, o tempo de ativação em diferentes faixas de amplitude, poderá trazer mais informações sobre o controle motor de indivíduos com DTM.
Para analisar a diferença do tempo de ativação muscular entre os grupos foi utilizada a comparação do tempo de trabalho durante a mastigação bilateral simultânea, uma variável ainda pouco explorada na literatura. O tempo de trabalho, ou duty factor, é descrito como a duração da atividade muscular acima ou abaixo de um limiar pré-estabelecido pelo tempo total de registro eletromiográfico(15).
Comparando com indivíduos saudáveis, aqueles com DTM mostram menor estabilidade e menor regularidade nos ciclos de mastigação(16,17). Estudos prévios demonstraram que a dor orofacial em indivíduos com DTMs está associada com movimentações articulares de menor amplitude e mais lentas(18,19). Os fatores psicológicos, manifestados muitas vezes pela depressão ou estresse, também influenciam a associação entre a dor e a atividade motora, provavelmente como um fator protetor desenvolvido pelo indivíduo(20). Dessa forma, espera-se distinguir o padrão eletromiográfico entre os grupos, encontrando menor tempo de ativação muscular em indivíduos com DTM. Essa pode ser a chave para a utilização da EMGS como ferramenta diagnóstica na prática clínica.
Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar o tempo de ativação dos músculos masseteres e temporais anteriores, durante a mastigação de pacientes com DTM, por meio do parâmetro tempo de trabalho ou duty factor, em diferentes faixas de amplitude, relativas ao esforço muscular máximo.
A amostra do estudo foi composta por 22 indivíduos do gênero feminino, com faixa etária de 18 a 48 anos de idade. Foram distribuídas em dois grupos, Grupo DTM e Grupo Controle. O primeiro com média de idade (desvio padrão) de 28,5 anos (8,6) e o segundo com 24,7 anos (3,5).
A seleção das voluntárias foi realizada por meio de contato por telefone, quando respondiam a perguntas sobre a intensidade, duração e localização da dor, utilização de aparelhos e ausência de dentes, além de informar sua disponibilidade de horário. Em seguida, foram divididas entre os grupos DTM e Controle, mediante a aplicação do Eixo 1 do Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders (RDC/TMD), proposto por Dworkin e LeResche(7). O exame clínico do RDC/TMD, devidamente ajustado, foi realizado por um examinador treinado e seguindo as orientações de Dworkin e LeResche(7) para a aplicação.
No Grupo Controle, foram incluídos sujeitos sem sinais e sintomas de DTM, de acordo com o Eixo 1 do RDC/TMD(7), que não faziam uso de medicamentos miorrelaxantes ou antidepressivos e que não apresentavam outras comorbidades, como dor de cabeça ou dor na região cervical. O Grupo Controle excluiu qualquer pessoa com bruxismo ou diagnóstico de DTM, pelo RDC/TMD.
No Grupo DTM, foram incluídos os sujeitos com classificação diagnóstica no grupo “Ia” do RDC/TMD, isto é, dor miofascial sem limitação da abertura bucal. Foram excluídos desta pesquisa indivíduos com falha dentária, uso de aparelho, próteses fixas ou removíveis, com história de trauma na face e luxação ou trauma nas ATMs. Além disso, foram critérios de exclusão para ambos os grupos, mulheres gestantes, sujeitos com distúrbios neurológicos centrais e/ou periféricos, com histórico de tumores e de cirurgia na região da face e pescoço, com participação em qualquer tipo de tratamento fonoaudiológico, odontológico ou fisioterapêutico, que estivessem utilizando medicamentos miorrelaxantes ou antidepressivos, ou apresentando dores em outras regiões do corpo.
Vinte e cinco mulheres que se enquadraram nos critérios foram convidadas a comparecer ao Laboratório de Análise da Postura e do Movimento Humano – (LAPOMH), na Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (USP), para avaliação dos critérios de inclusão e exclusão na amostra e coleta de dados. Foram excluídas três pacientes, após aplicação do questionário diagnóstico RDC/TMD, pois se enquadravam em dois grupos diagnósticos distintos e não apenas no grupo “Ia” (dor miofascial).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), processo n° 12978/2011, de acordo com a resolução 196/96 CNS/MS. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A coleta de dados consistiu de avaliação eletromiográfica de superfície, seguindo padronização proposta pelo projeto Surface ElectroMyoGraphy for the Non-Invasive Assessment of Muscles (SENIAM), que permite intercâmbio de dados e garante a validade e confiabilidade do estudo(21).
Os sinais mioelétricos foram captados através de eletrodos de superfície ativos simples, diferenciais, de prata pura (Ag), da EMG System Brasil® (São José dos Campos, Brasil). Também foi utilizado um eletrodo de referência de aço inox (Bio-Logic Systems® Corp), localizado na região do manúbrio esternal, com a função de diminuir o efeito de interferências eletromagnéticas e outros ruídos de aquisição do sinal eletromiográfico.
Os eletrodos foram posicionados na pele das voluntárias, depois de limpa com algodão embebido em álcool 70%, paralelos, em direção das fibras musculares, com as barras de prata perpendiculares a essas fibras, para maximizar a captação e minimizar a interferência de ruídos (Figura 1).
De acordo com a literatura, a variável “tempo de trabalho”, ou duty factor, é descrita como a porcentagem do tempo total de registros eletromiográficos, em que a ativação muscular esteve acima ou abaixo de um limiar pré-estabelecido, a partir da atividade eletromiográfica relativa a um determinado nível de força de mordida(15). Desse modo, justifica-se a utilização de um instrumento que pré-estabeleça a força de mordida.
O instrumento utilizado para avaliar a força da mordida foi o dinamômetro digital, modelo IDDK (Kratos®, Cotia-SP, Brasil), com capacidade de até 100 Kgf. O dinamômetro foi posicionado nos primeiros molares, a fim de obter-se a maior força de mordida. Foram coletadas três repetições de contração voluntária máxima, em posição de máxima intercuspidação dentária, concomitantemente à eletromiografia de superfície, com descanso de dois minutos entre cada repetição. O pico de força de cada coleta foi monitorado no visor digital do dinamômetro, para garantir a consistência do esforço nas três contrações. Coletou-se o sinal eletromiográfico de superfície dos músculos masseter e temporal anterior, durante as repetições, utilizando-se o equipamento Myosystem Br-1P84 (Datahominis®, Uberlândia-MG, Brasil). Ao final, considerou-se a média dos três valores de amplitude eletromiográfica, para realizar a normalização dos dados.
A mastigação padronizada foi coletada com as voluntárias sentadas em uma cadeira, com as costas apoiadas no encosto, olhos abertos, pés no solo e braços apoiados sobre os membros inferiores. Obteve-se o registro da mastigação bilateral durante contrações, nas quais a voluntária era orientada a mastigar o material Parafilm M® (Pechinery Plastic Packaging, EUA) colocado entre os dentes pré-molares, primeiro e segundo molar inferior e superior, bilateralmente e concomitantemente, por um período de dez segundos. Foi utilizada uma folha do Parafilm M® de cada lado, dobrada duas vezes. As voluntárias realizaram a elevação da mandíbula no mesmo ritmo determinado pelo som de um metrônomo ajustado em 80 batimentos por minuto (b.p.m.), através do comando verbal: “Morde, Morde, Morde...” (22).
A análise dos dados foi realizada no sinal eletromiográfico de superfície coletado, considerando cinco ciclos mastigatórios para cada músculo (temporal anterior esquerdo, temporal anterior direito, masseter direito e masseter esquerdo) de todas as voluntárias. A duração média de cada ciclo foi de, aproximadamente, 0,3 segundos e a duração de cada um foi normalizada de 0-100%.
O valor médio de RMS da contração máxima, obtido, inicialmente, junto com a realização da prova de força muscular, foi utilizado como referência para normalização dos valores de amplitude de cada ciclo mastigatório. A amplitude do sinal eletromiográfico foi categorizada em faixas de ativação pré-determinadas(23), sendo que os valores foram considerados mínimos, quando entre 0 e 39,9% da amplitude do máximo apertamento; moderados, de 40 a 74,9%, ou acentuados entre 75 e 100%.
A partir da normalização da amplitude, a quantidade de tempo de ativação em cada uma das faixas acima citadas foi somada, para representar a estratégia do controle motor de cada ciclo mastigatório.
A estatística descritiva foi realizada com base nos valores médios e desvios padrões do duty factor. Foi considerado o tempo de trabalho de 15 ciclos mastigatórios (cinco ciclos de três repetições) para cada voluntário. As comparações realizadas consideraram a análise intergrupos (DTM versus. Controle) dos níveis de ativação de cada músculo. O teste estatístico para comparação intergrupos foi o teste t-Student para dados não pareados, determinado após a verificação de normalidade de distribuição dos dados pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Foi utilizado o nível de significância de p<0,05.
A comparação da força de mordida e das porcentagens de tempo de ativação muscular nas diferentes faixas de ativação eletromiográfica, entre os grupos avaliados, não evidenciou diferenças significativas (p>0,05).
O valor médio da força de mordida para o Grupo DTM foi de 38,03 Kg/f, enquanto para o Grupo Controle foi de 42,93 Kg/f.
Observou-se que, para todos os músculos, houve predominância de tempo de ativação na faixa de 0-39%, o que sugere mais tempo de contração na faixa classificada como mínima ativação, tanto para o Grupo com DTM, como para o Grupo Controle.
Os resultados revelaram, ainda, um padrão semelhante entre os grupos, em relação à distribuição dos valores normalizados na faixa de máxima porcentagem de tempo de ativação, ou seja, todos os músculos apresentaram períodos menores de tempo de ativação, entre 75-100%, característicos de uma contração concêntrica.
As médias e desvios padrão e a comparação entre grupos, em cada faixa de porcentagem de tempo de ativação muscular, encontram-se na Tabela 1.
Tabela 1 Diferenças das médias e desvios padrão (DP) do tempo de ativação muscular
Músculos | 0-39,9% | 40-74,9% | 75-100% | ||||||
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DTM vs. Controle Média (DP) (s) | Diferença da média (DP) (s) | IC 95% | DTM vs. Controle Média (DP) (s) | Diferença da média (DP) (s) | IC 95% | DTM vs. Controle Média (DP) (s) | Diferença da média (DP) (s) | IC 95% | |
Temporal direito | 137,3 (30,54) vs. 94,1 (9,50) | 43,23 (31,99) | 29,96-116,42 | 86,6 (34,70) vs. 72,0 (24,57) | 14,62 (12,64) | 11,75-41,00 | 49,5 (15,63) vs. 45,2 (12,4) | 4,21 (6,04) | 8,40-16,83 |
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Temporal esquerdo | 112 (21,11) vs. 106 (15,27) | 6,0 (25,73) | 47,68-59,68 | 83,3 (25,87) vs. 84,4 (39,7) | 1,05 (15,73) | 33,86-31,76 | 46,3 (7,92) vs. 49,2 (20,08) | 2,83 (6,05) | 15,53-9,85 |
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Masseter direito | 120,2 (19,34) vs. 112,5 (12,5) | 7,67 (22,09) | 38,40-53,76 | 80,2 (26,42) vs. 84,5 (28,43) | 4,25 (12,29) | 29,89-21,39 | 45,0 (7,54) vs. 48,1 (11,04) | 3,14 (4,41) | 12,35-6,06 |
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Masseter esquerdo | 121,1 (14,11) vs. 89,8 (11,82) | 31,26 (18,96) | 8,29-70,82 | 94,7 (27,36) vs. 69,9 (29,07) | 24,82 (12,62) | 1,51-51,15 | 51,1 (10,69) vs. 43,4 (14,39) | 7,69 (5,85) | 4,52-19,91 |
Legenda: DTM = Disfunção Temporomandibular; DP = Desvio Padrão; IC = Intervalo de Confiança de 95%; s = segundos; vs = versus
Evidências disponíveis na literatura demonstram que as disfunções temporomandibulares artrogênicas e miogênicas geram grande influência na atividade dos músculos durante a mastigação, resultando na diminuição do nível de ativação(19). O pequeno aumento verificado no tempo de ativação eletromiográfica de superfície do Grupo Controle, apesar de não ser significativa, pode indicar uma provável diferença de estratégia de controle motor das unidades motoras, em comparação com o grupo com DTM “Ia”. Essa diferença, identificável com o uso da ferramenta duty factor, pode estar relacionada aos sintomas e alterações da função mastigatória causados pela DTM e deve ser investigada, futuramente, quanto ao seu potencial para diferenciar grupos de diagnóstico, visto que não se conhece seus parâmetros para portadores de artralgias isoladas, por exemplo.
Os resultados encontrados neste trabalho não podem ser comparados diretamente com referências anteriores, pelo fato de ser o primeiro a utilizar o tempo de trabalho, ou duty factor, em indivíduos portadores de DTM de origem muscular.
Um estudo avaliou(15) a variável duty factor em 11 indivíduos com bruxismo, separados em três grupos: um grupo com deslocamento de disco e com dor, um grupo com deslocamento de disco e sem dor e outro grupo sem nenhuma alteração. Foi analisada, por três dias consecutivos, a atividade elétrica dos músculos masseter e temporal, durante estado de vigília e sono, usando gravadores portáteis de EMGS.
O EMGS foi calibrado para gravar toda a atividade muscular acima do limiar, pré-determinada pelo autor, de 20 N de força de mordida. O duty factor para a atividade muscular acima de 20 N em indivíduos com dor e deslocamento de disco, variou de 8,5% a 13% e para atividades musculares sustentadas (acima de 15 s) foi obtida a média de duty factor de 9,4%. Porém, nenhum resultado significativo foi observado, devido ao fato de os grupos não possuírem sete pessoas cada, número que a power analysis (α=0.05, β=0,80) indicou como necessário para cada grupo de diagnóstico para aplicação da variável. Os resultados do presente estudo, com tamanho amostral maior, também não demonstraram diferenças nos tempos de ativação muscular de sujeitos do Grupo Controle e indivíduos com DTM de origem muscular. No entanto, os dados foram analisados em apenas duas faixas de ativação, uma acima e outra abaixo de 20 N de apertamento, enquanto no presente estudo, os níveis de ativação foram relativizados pelo esforço máximo.
Considera-se ainda que, apesar de utilizar um número de voluntárias maior que sete, como proposto anteriormente(15), o “n” do presente trabalho pode ter sido insuficiente para alcançar os resultados esperados. Pesquisas futuras, com um número maior de mulheres, podem trazer informações estatisticamente relevantes.
Com base nos resultados deste estudo, fica claro que o uso da EMGS isoladamente não tem o poder de diferenciar indivíduos com DTM de indivíduos saudáveis(11,24). No entanto, essa variável pode acrescentar informações sobre a estratégia utilizada pelo sistema neuromuscular para realizar a contração muscular, como o aumento ou diminuição do tempo de ativação muscular em determinada faixa de amplitude, ajudando a identificar situações de hiper ou hipoativação, resultantes, por exemplo, de inibição reflexa por dor, ou espasmo protetor(18). Assim, os resultados suportam o interesse de acrescentar o duty factor no conjunto de história clínica e exame físico bem conduzido da DTM, a fim de investigar se o tempo de ativação pode colaborar na elaboração da conduta terapêutica, para decisão por técnicas que favoreçam ou reduzam a ativação muscular e se há efetividade dessas técnicas.
A utilização dos dados objetivos obtidos com a EMGS, como ferramenta diagnóstica na prática clínica, apenas será possível quando em conjunto com a história clínica e exame físico do indivíduo.