versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.22 no.67 Botucatu out./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622018.0438
Direitos, conhecimento e confiança são os principais impulsionadores de sistemas de saúde integrais em todo o mundo, independentemente de seus esquemas específicos de funcionamento e financiamento. Os direitos relacionados à saúde são baseados em uma expectativa de vida mais longa e com mais qualidade. Essa definição inclusiva de saúde inclui bem-estar. Seus dois pilares são o acesso à atenção à saúde e o respeito à autodeterminação dos indivíduos. O conhecimento relacionado à saúde remete ao papel das evidências na tomada de decisões clínicas e políticas e, cada vez mais, na articulação com um conhecimento leigo mais exigente e mais bem informado. Em saúde, confiança envolve o relacionamento dos indivíduos com os sistemas e profissionais de saúde. Esse relacionamento é sustentado por um contrato moral com base no qual os indivíduos abdicam parcialmente de suas escolhas e motivações pessoais a favor do gerenciamento coletivo de conhecimentos e comportamentos. Presumidamente, o resultado é a busca de oportunidades iguais e de menos exposição aos efeitos negativos do mercado.
Os efeitos positivos de políticas representativas, do respeito a diferentes conhecimentos e do gerenciamento coletivo de riscos nos resultados de saúde e na coesão social já foram amplamente discutidos. Além disso, continua sendo inegável o efeito multiplicador de sistemas de saúde integrais na economia e nos esquemas de previdência social na chamada política pós-verdade.
O percurso político relacionado aos problemas de saúde em países desenvolvidos e em desenvolvimento na segunda metade do século 20 foi capaz de superar tensões conhecidas. As políticas têm se alinhado cada vez mais com as necessidades dos imigrantes, das minorias étnicas e religiosas, das mulheres, das crianças, dos idosos e das pessoas LGBTI. Os órgãos reguladores têm tentado intervir cada vez mais na conduta profissional para garantir decisões clínicas seguras e transparentes e um melhor controle na prestação de cuidados de saúde. O conhecimento tem tido uma posição de destaque na tomada de decisões relacionadas a políticas e na proteção da vida das pessoas. A opinião das pessoas é cada vez mais ouvida na governança de sistemas de saúde.
Em 2020, a questão será se essas tensões ocorridas foram superadas com eficácia e até que ponto novos paradoxos tornarão os problemas não resolvidos mais complexos.
Com relação a antigas tensões, ainda há desigualdades na saúde, e os direitos relacionados à saúde nem sempre são respeitados. A conduta dos profissionais de saúde está em constante vigilância, embora sua função de mediadora entre as evidências e os usuários seja considerada decisiva para a saúde da população. Isso resultou em uma relação aparentemente contraditória de desconfiança e dependência do conhecimento especializado. Os usuários são responsabilizados por suas escolhas, e as restrições subjacentes aos estilos de vida de cada indivíduo são ignoradas. Investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento para fins lucrativos continuam sendo importantes para tecnologias e conhecimentos inovadores, pois possibilitam a definição de agendas políticas e acadêmicas, embora se baseiem em relacionamentos geopolíticos injustos em todo o mundo devido a vínculos complexos envolvendo saúde em assuntos políticos, militares e económicos.
Os paradoxos emergentes em saúde incluem aquecimento global, a crise financeira e económica de 2008, fluxos crescentes de migrantes e refugiados, o ressurgimento do extremismo e nacionalismo políticos, por exemplo. Esses fenômenos não são delimitados geograficamente e impactam um número considerável de pessoas. Eles afetam a saúde e o bem-estar das pessoas, além do funcionamento dos sistemas de saúde em escala mundial. Portanto, exigem atenção especial da Academia.
“Velhas tensões e paradoxos emergentes em saúde: direitos, conhecimento e confiança” foi o tema do 17° Congresso Bienal da Sociedade Europeia de Saúde e Sociologia Médica, realizado em Portugal em 2018. Os principais tópicos de discussão no congresso estão resumidos aqui para diagnóstico de algumas tensões e paradoxos relacionados à saúde em todo o mundo e para direcionamento de futuras pesquisas.
A medicalização (processo de tornar algo médico) ainda é fundamental no debate e é adotada em várias abordagens multidimensionais. Uma abordagem à medicalização está relacionada às questões éticas e morais da inovação biotecnológica. Isso se deve ao fato de que suas práticas e decisões podem alterar as expectativas que os indivíduos têm de sua experiência de vida e de seus relacionamentos com outras pessoas, principalmente em fases de transição da vida (sobre reprodução assistida e cuidado paliativo1). Outra abordagem à medicalização está relacionada a disputas por direitos e legitimidade. É notável a medida na qual os médicos buscam proteger o status de evidências científicas da Medicina e de profissionais da saúde aliados para demonstrar o valor de sua prática. Além disso, as diferentes subáreas da chamada medicina alternativa ou complementar dão destaque ao valor agregado de abordagens não biomédicas à vida. Uma questão emergente é como os indivíduos e grupos usam o conhecimento médico com relação a pontos de vista específicos da interação entre patologia e comportamentos (sobre histórias de transição de homens trans e seus pontos de vista sobre masculinidade2). A questão é se a medicalização e a patologização são dimensões analíticas distintas. Nesse caso, convém agregar conceitos como livre arbítrio e reflexividade ao debate. Resumidamente, a questão inerente da medicalização deve ajudar a entender melhor as diferenças empíricas de como doenças e patologias são reconhecidas como tal no contexto mundial de pluralismo médico3.
Reprodução humana não é um tópico novo, embora muitas vezes não seja considerado fora do contexto de estudos feministas e movimentos sociais. É necessário dar mais importância à intersecção entre as formas de regulamentação social e política e os direitos dos indivíduos à autodeterminação para fortalecer a pesquisa acadêmica. Uma questão é se essas forças são opostas ou articuladas de alguma forma. No último caso, como essa articulação é traduzida. Outra questão é como as dimensões envolvidas na reprodução humana (por exemplo, fertilidade, opções contraceptivas, tecnologias de reprodução assistida, parto e papéis parentais) estão vinculadas a uma variedade de dimensões analíticas. Essas dimensões analíticas incluem experiências, representações de gênero, estratificação social, migração, modelos de trabalho, equilíbrio entre trabalho e família, interação entre experiências leigas e conhecimento especializado, financiamento e prestação de cuidados de saúde, práticas profissionais, ideologias e valores, livre arbítrio e direitos do cidadão4-6.
Conhecimento e confiança em saúde são tópicos inter-relacionados sobre os quais há uma ampla variedade de literatura. A confiança está relacionada às expectativas positivas de quem confia no conhecimento e nas intenções do provedor. Tradicionalmente considerada pelas perspectivas dos usuários e dos órgãos reguladores de profissionais de saúde, é cada vez mais defendida a existência de mais evidências sobre a confiança dos profissionais em seus colegas, nos prestadores de cuidados de saúde, nos financiadores, nas evidências científicas e nos pacientes. Além disso, precisamos descobrir se a tecnologia tem alguma influência na confiabilidade e, em caso afirmativo, de que forma7. Outro tópico de discussão é se a confiança na profissão médica está diminuindo, conforme indicam evidências empíricas sobre descobertas aparentemente contraditórias em diferentes países e serviços de saúde8. É possível que isso se deva a diferentes processos regulatórios que, na verdade, alteram concepções normativas de confiança. No entanto, não se deve desconsiderar a possibilidade de interpretações empíricas errôneas. Uma forma de melhor identificar interpretações empíricas erróneas quanto à diminuição da confiança na profissão médica é identificar o foco do ceticismo. Ele está relacionado ao conhecimento em si ou aos agentes da interação? O ceticismo quanto às evidências médicas para o benefício de outro tipo de conhecimento é diferente do ceticismo quanto a quem aplica o conhecimento. A resposta a essa pergunta requer o reconhecimento das controvérsias entre conhecimento leigo e especializado e entre as diferentes subáreas de conhecimento especializado quanto aos direitos e à legitimidade. Um terceiro tópico de discussão são as mudanças na abordagem clínica das evidências, da prática e dos pacientes que surgem da área médica, chamada de medicina narrativa. Embora a atenção acadêmica seja crescente9, ainda restam incertezas quanto ao seu conteúdo, prática, resultados e posicionamento epistemológico no campo das humanidades médicas, sugerindo a necessidade de avaliações críticas e questionamentos mais aprofundados10.
As desigualdades sociais são fundamentais na pesquisa em saúde. Elas podem ser exploradas, por um lado, no vínculo bidirecional entre relacionamentos assimétricos e distribuição assimétrica de recursos, e, por outro lado, na saúde, no bem-estar, na mortalidade e na morbidez. Inicialmente limitados à estratificação baseada na renda, os avanços conceituais demonstram que os privilégios e as desvantagens são multidimensionais e interdependentes11. Eles podem estar relacionados a capitais culturais e sociais12-14; condições de trabalho, carga de trabalho e equilíbrio entre trabalho e família15; situação empregatícia16; ou gênero, etnia e cidadania17. Além disso, essas desigualdades sociais nos sistemas de saúde podem ser consideradas em termos de acesso a cuidados de saúde, qualidade da interação entre os usuários e os profissionais, e a capacidade de os indivíduos entenderem, lidarem e usarem as informações especializadas. Um direcionamento de pesquisa interessante é expandir sobre a multidimensionalidade e interdependência de fatores subjacentes às relações assimétricas e à distribuição de recursos em saúde. Outro direcionamento é refletir sobre como e por que alguns atributos sociais em saúde são vinculados a dominância e discriminação. Um terceiro direcionamento é analisar em mais detalhes a dupla influência de determinantes sociais e resultados de saúde. Por fim um quarto direcionamento é usar esses desenvolvimentos conceituais em pesquisa aplicada, particularmente em epidemiologia e nas áreas médicas relacionadas.
As reformas da saúde são um campo mais amplo de discussão que pode ser abordado de diferentes ângulos de análise. Um ângulo abordado no congresso foi o papel dos líderes clínicos na melhoria do controle de custos, da qualidade e da segurança como alternativa às decisões superiores de fora de organizações da saúde e a cortes severos no orçamento18. No entanto, as diferenças nos sistemas nacionais de saúde e descobertas contraditórias na literatura com relação aos resultados de empresários institucionais facilitam a realização de pesquisas empíricas mais avançadas em diferentes países e cenários. Outro direcionamento é descobrir quais agentes são mais adequados para funções de liderança e qual combinação de conhecimento profissional e de gerenciamento melhora os resultados organizacionais e as relações intra e interprofissionais. Também é importante estudar os efeitos das funções de liderança nas ideologias, na autonomia e na autoridade das profissões19. Outro ângulo de análise sobre as reformas da saúde foi a adoção de sistemas de saúde para a mobilidade forçada (por exemplo, migrantes, refugiados e aqueles que buscam asilo). Esse problema é particularmente importante na Europa20, mas deve ser levado em consideração por todos os sistemas de saúde cujos princípios sejam baseados na solidariedade e no compartilhamento de riscos. Os direcionamentos de pesquisa incluem a maneira como diferentes países normalmente lidam com esses fenômenos, os limites à inclusão, o aumento da discriminação, e os efeitos políticos, ideológicos e representacionais na população residente e nos recém-chegados21. Um terceiro ângulo de análise das reformas da saúde foi o envolvimento dos usuários na tomada de decisões. Os estudos devem incentivar uma posição analítica (em vez de normativa) que possibilite a melhor compreensão das mudanças na representatividade política e na cidadania, nos relacionamentos dos indivíduos com o conhecimento especializado e as instituições, e a dinâmica interna de grupos de defesa22.
Comportamentos, bem-estar e tecnologias refletem os efeitos de oportunidades aparentemente novas proporcionadas aos indivíduos no contexto de consumismo, liberdade de escolha e decisões informadas. Um direcionamento de pesquisa é como as escolhas e a responsabilidade dos indivíduos pelos resultados de saúde estão conectadas a risco, gênero, idade, igualdade e emancipação23-25. Há também as mudanças nas políticas relacionadas ao cuidado informal, autogerenciamento e governança do corpo em busca do bem-estar26, e ao melhor gerenciamento de doenças comunicáveis e não comunicáveis27,28. A tecnologia é fundamental para esse debate, considerando que desmaterializa os processos e reduz o tempo e o espaço. Além disso, ao proporcionar aos indivíduos a chance de tomar suas próprias decisões, ela é capaz de reconfigurar interações humanas entre os usuários e os profissionais29-31. Também é importante analisar de maneira mais detalhada os efeitos da privacidade e da vigilância de dados e as mudanças ocasionadas pela Inteligência Artificial.