versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.6 São Paulo nov./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014228
A Síndrome do Aumento da Resistência das Vias Aéreas Superiores (SARVAS) é o diagnóstico dado aos casos que não apresentam as mesmas características da polissonografia que os pacientes com Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS).
O quadro clínico da SARVAS caracteriza-se por ronco e fragmentação do sono, despertares eletroencefalográficos breves e aumento da resistência das vias aéreas superiores ao fluxo aéreo inspiratório1, embora não ocorra a redução significativa do fluxo de ar ou a dessaturação da oxihemoglobina, como é observado nos quadros de SAOS. A região em que ocorre a obstrução no momento da apneia ou hipopneia é a orofaringe, que é mais susceptível ao fechamento em pacientes com SAOS e SARVAS2. Mesmo com as diferenças polissonográficas, os pacientes com SARVAS podem apresentar sintomatologia de sonolência diurna, dores de cabeça e depressão correlacionada ao distúrbio respiratório noturno3.
A atuação da Fonoaudiologia na área de Motricidade Orofacial consegue atingir resultados positivos importantes, alcançando da mudança do tônus dos músculos que compõem a orofaringe, em casos de distúrbios do sono, principalmente no que se refere a pacientes com o diagnóstico de SAOS4. No entanto, não há relatos de atendimento fonoaudiológico de pacientes com SARVAS.
Com a possível semelhança entre a implicação do tônus reduzido em musculatura de orofaringe na ocorrência da obstrução e/ou redução do calibre dessa região anatômica nos casos de SAOS e SARVAS, e conhecendo a possibilidade da terapia miofuncional orofacial nos casos de SAOS, a hipótese é de que tal modalidade de tratamento também pode beneficiar pacientes com SARVAS.
O objetivo do presente estudo foi verificar o efeito da terapia miofuncional orofacial em um caso de Síndrome do Aumento da Resistência das Vias Aéreas Superiores no que se refere aos aspectos morfofuncionais do sistema estomatognático, dados antropométricos e qualidade do sono.
O desenho da pesquisa é classificado como um estudo analítico de intervenção de relato de caso5.
O trabalho fundamentou-se em um caso clínico, atendido na Clínica de Fonoaudiologia da Instituição envolvida, sendo que o mesmo assinou o Termo de Autorização para Utilização dos Dados.
Paciente de 61 anos de idade, gênero masculino, quadro de tensão arterial alta, apresentando o diagnóstico de Síndrome do Aumento da Resistência das Vias Aéreas Superiores. Foi descrito na polissonografia o índice de despertar de 19,5 por hora; aumento da latência do sono em 69 minutos; arquitetura do sono alterada com aumento do estágio N1 em 16,2% do tempo total de sono e diminuição da eficiência do sono em 63,8%. Eventos exclusivamente obstrutivos com predominância de hipopneias, sendo a menor saturação de 88%. Ressaltou-se, ainda, a queixa diurna de sonolência e presença de ronco.
O tratamento indicado pelo otorrinolaringologista especialista em medicina do sono foi o aparelho de avanço mandibular, porém sem sucesso. Com informações da mídia, o paciente descobriu a possibilidade da intervenção fonoaudiológica e procurou a Clínica de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru - Universidade de São Paulo, com a seguinte queixa: "acordo assustado cerca de 6 vezes durante a noite e eu me sinto cansado durante o dia".
Mediante a avaliação miofuncional orofacial verificou-se Distúrbio Miofuncional Orofacial, caracterizado por redução do tônus e da mobilidade da musculatura do palato mole, da úvula, da língua e da região suprahióidea, tendo sido adotada a conduta de terapia fonoaudiológica, na área de Motricidade Orofacial.
Durante 3 meses, foram realizadas sessões semanais de terapia miofuncional orofacial, com duração de 50 minutos cada, totalizando 12 sessões. Além de comparecer às sessões terapêuticas, o paciente foi orientado a realizar todos os dias, por 3 vezes, os exercícios miofuncionais orofaciais orientados.
Em terapia, o paciente foi posicionado em frente a um espelho para que o feedback visual auxiliasse na realização adequada ou mais aproximada dos exercícios solicitados. O processo terapêutico foi conduzido por uma fonoaudióloga com experiência em atendimentos de pacientes com distúrbios de sono.
Os exercícios miofuncionais orofaciais foram alterados em todas as 12 sessões, buscando-se exigir movimentos mais refinados e adequar a tonicidade muscular, utilizando os exercícios isotônicos e isométricos. Dessa maneira, o Quadro 1 apresenta a relação de exercícios miofuncionais utilizados no processo terapêutico. Ressalta-se que durante cada semana o paciente executou de 3 até, no máximo, 6 tipos de exercícios diferentes. Esse formato de terapia teve como base o modelo proposto por Guimarães (2009)4.
Quadro 1: Relação dos objetivos do planejamento terapêutico do caso clínico, os exercícios miofuncionais orofaciais, com respectiva frequência e duração
O recrutamento dos diferentes grupos musculares foi realizado por meio de exercícios isotônicos e isométricos, possibilitando abordar a mobilidade e a tonicidade. Inicialmente, foram priorizados os exercícios isotônicos, sendo que após alcançar coordenação e precisão na execução dos movimentos, os exercícios isométricos passaram a ser executados de modo sequencial aos isotônicos. Adicionalmente, foi abordada a importância do desempenho adequado das funções orofaciais para a manutenção do trabalho miofuncional orofacial.
Uma semana após a 12ª sessão de terapia o paciente foi reavaliado, tendo sido prescritos exercícios miofuncionais orofaciais de manutenção, quatro exercícios no total, abrangendo músculos supra-hióideos, da língua e do palato mole, que deveriam ser feitos apenas uma vez ao dia.
Os dados de avaliação foram coletados antes, após e nos acompanhamentos longitudinais (1 mês, 2 meses, 4 meses e 10 meses após a alta). Assim, foram realizadas as seguintes avaliações:
Foram analisados os aspectos da avaliação Motricidade Orofacial, considerando os escores propostos pelo protocolo de avaliação Miofuncional Orofacial MBGR6 para os aspectos de tonicidade e mobilidade de supra-hióideos, língua e palato mole. Assim, para os movimentos da língua foram adotados os índices: 0 para "normal", 1 para "aproximado", 2 para "tenta realizar" e 3 para "não realiza". Na mobilidade de palato mole, o escore 0 foi para "normal", 1 para o "movimento reduzido" e 2 para "movimento ausente". Quanto à tonicidade de supra-hióideos, língua e palato mole foi classificado 0 para "normal", 1 para "aumentado" e 1 para "diminuído".
Em relação à mobilidade de palato mole, foram solicitadas quatro provas: Falar [a] repetidamente, bocejo, movimento voluntário de elevação e sustentação do movimento de elevação. Ressalta-se que apenas o movimento Falar [a] repetidamente está contido no protocolo MBGR.
O grau de Mallampati Modificado foi classificado nas avaliações realizadas7. Para isso, foi solicitado que o paciente deglutisse e em seguida realizasse abertura da boca. Dessa maneira, pode ser classificado grau I, II, III e IV, dependendo da facilidade de visualização da luz orofaríngea, quanto maior o grau, menor a visualização desse espaço.
Também foram averiguados os dados antropométricos de circunferência cervical e Índice de Massa Corpórea (IMC). Para a mensuração da circunferência cervical, adotou-se como padrão a medida sob a proeminência laríngea, utilizando uma fita métrica de plástico de comprimento máximo de 150 centímetros (cm) (Figura 1). Para a obtenção do IMC, realizou-se a aferição do peso e da altura na balança Welmy, modelo 110, posteriormente calculou-se a divisão da massa do indivíduo pelo sua altura elevada ao quadrado.
Foi aplicado o Questionário de Berlim8, contemplando 10 itens, organizados em 3 categorias referentes à: roncopatia e apneias presenciadas (5 itens), sonolência diurna (4 itens) e hipertensão arterial/obesidade (1 item), sendo que duas ou três categorias positivas são indicativas de aumento do risco para que o indivíduo apresente a SAOS.
Também utilizou-se a Escala de Sonolência de Epworth9 referente a probabilidade de o indivíduo cochilar em 8 situações de vida diária, classificando cada situação de 0 a 3 pontos: quanto maior a pontuação, maior a probabilidade de cochilar. O escore total varia de 0 a 24 pontos, sendo que acima de 10 pontos é sugestivo do quadro de Sonolência Diurna Excessiva.
Para o acompanhamento mais amplo do quadro, de modo subjetivo, foi elaborada uma Escala Analógica Visual de 10 cm em que o paciente assinalou com um traço a qualidade do sono da noite anterior. Colocando o traço mais próximo da extremidade esquerda, o paciente classificou o sono com uma qualidade muito ruim, e quanto mais próximo o traço da extremidade direita, seu sono havia sido o melhor possível. Para a quantificação, posteriormente foi medida da extremidade esquerda até o traçado marcado pelo paciente com uma régua milimetrada.
Quanto à mobilidade e tonicidade, observou-se evolução após o processo terapêutico, assim como a manutenção desses aspectos. Entretanto, na reavaliação de 2 meses após a alta, obteve-se similaridade dos resultados anteriores, exceto em dois movimentos de língua. Mesmo com o relato do paciente de continuar satisfeito com os resultados (estar dormindo melhor, apresentando poucos episódios de despertar noturno e acordar descansado) realizou-se a adição de um exercício para a melhoria da precisão da mobilidade de língua (Tabela 1).
Tabela 1: Resultados da mobilidade de língua nas avaliações antes das sessões terapêuticas, imediatamente após a alta, 1 mês, 2, 4 e 10 meses após a alta
(a) tremor leve; (b) tremor moderado; (c) contração de músculos cervicais; (d) instabilidade na execução do movimento; (e) incapacidade de contenção de toda língua contra o palato.
Em relação à mobilidade de palato mole, na avaliação antes da terapia, observou-se que no movimento de "falar [a] repetidamente" e para o "bocejo", a pontuação foi de 1; já no "movimento voluntário de elevação" e "sustentação do movimento de elevação", a pontuação foi 2. Para os quatro movimentos no período imediatamente após a terapia, 1 mês da alta, 2, 4 e 10 meses, a pontuação foi 0.
Na avaliação da tonicidade, foi obtida a pontuação de 1 (diminuído) para língua, assoalho da boca e palato mole, na avaliação realizada antes da terapia. A pontuação foi de 0 para a tonicidade de língua, assoalho da boca e palato mole no após imediato à terapia, bem como em 1, 2, 4 e 10 meses após a alta.
Em avaliação fonoaudiológica inicial, verificou-se o grau de Mallampati IV, apresentando discreta melhora nas avaliações subsequentes para o grau III (Tabela 2).
Quanto aos dados antropométricos aferidos, observou-se redução de 2 cm na circunferência cervical e o IMC manteve-se semelhante durante as avaliações, indicando que o peso do paciente estava adequado à sua altura (Tabela 2).
Nos resultados da Escala de Sonolência Epworth, do Questionário de Berlim e da Escala Analógica Visual, foi obtida melhora nos três parâmetros, conforme disposto na Tabela 3.
Tabela 3: Resultados da Escala de Sonolência Epworth, do Questionário de Berlim e da Escala Analógica Visual nas avaliações antes das sessões terapêuticas, imediatamente após a alta, 1, 2, 4 e 10 meses após a alta
Além dos achados das avaliações, ao longo do tratamento o paciente relatou que sentiu uma melhora importante na qualidade do sono, despertando, no máximo, três vezes e tendo notado estar mais descansado ao longo do dia. Vale ressaltar que nos acompanhamentos longitudinais o relato do paciente foi de permanência dos benefícios, sem apresentar melhora ou piora do quadro.
Durante o processo terapêutico, a fonoaudióloga esteve em contato com o cardiologista, devido ao quadro de tensão arterial alta, e com otorrinolaringologista (médico especialista do sono), que realizou o diagnóstico e indicou o tratamento odontológico. Não houve mudanças nas reavaliações médicas, incluindo os resultados do exame de polissonografia.
A conduta do caso foi a continuidade de três exercícios para língua, músculos suprahióideos e para o palato mole uma vez ao dia para a manutenção das condições obtidas durante o sono.
A publicação de estudos de casos clínicos envolvendo distúrbios do sono traz a vivência da prática do tratamento miofuncional orofacial, que ainda precisa ser mais compreendido, para que se pontue a atuação da Fonoaudiologia.
Neste estudo, optou-se pela aplicação do protocolo de avaliação Miofuncional Orofacial MBGR6, por sua possibilidade de classificação dos aspectos em escores, além de abranger todas as estruturas e funções miofuncionais orofaciais. Mesmo assim, houve necessidade de adicionar itens na avaliação da mobilidade de palato mole, o que expressa a necessidade de elaboração ou adaptação de protocolos diretivos a esses pacientes.
A terapia foi estruturada mediante a proposta de Guimarães, seguindo as estratégias e quantidades de exercícios, porém houve adaptação mediante a resposta do paciente. Em uma revisão crítica da literatura, verificou-se a escassez de estudos aprofundados sobre os efeitos musculares dos exercícios miofuncionais orofaciais de modo individualizado, sem evidência cientifica que respalde a frequência e quantidade para a execução desses10.
A melhora da mobilidade e tonicidade da musculatura orofacial e faríngea após a terapia miofuncional orofacial, neste caso, concorda com os resultados obtidos em pacientes com SAOS4.
Especificamente a respeito da tonicidade, além de observada melhora após as 12 sessões de terapia, também constatou-se a manutenção de seus resultados até 10 meses após a alta. Essa preocupação se origina dos achados que a força lingual pode reduzir de 2 a 4 semanas após a suspensão dos exercícios miofuncionais orofaciais11. Ressalta-se que os exercícios não foram suspensos no momento da alta, mas sim reduzidos em quantidade e frequência de realização.
O presente estudo resultou em pequena variação do grau de Mallampati Modificado, entretanto essa avaliação deve ser considerada em estudos posteriores devido sua correlação com a gravidade da apneia obstrutiva do sono, sendo, assim, o grau de Mallampati um possível indicador da ocorrência de obstrução nas vias aéreas superiores7 12, além da sua correlação com a habilidade em elevar, abaixar e lateralizar a língua13.
A associação do IMC com o agravamento do nível de obstrução das vias aéreas superiores12 é um fator que pode interferir nos resultados da terapia miofuncional orofacial, o que não ocorreu no caso deste paciente, pois seu IMC manteve-se dentro dos parâmetros de normalidade durante todo o processo.
Para pacientes com SARVAS, não há a definição de tratamento de padrão ouro14, o que implica na necessidade de se acompanhar parâmetros de qualidade do sono, averiguando a eficácia do tratamento adotado. Dessa maneira, foi adotado em todas as avaliações o uso de três mensurações de qualidade do sono, sendo duas dessas, Escala de Sonolência Epworth e Questionário de Berlim, instrumentos padronizados e frequentemente aplicados em casos de distúrbios do sono. A terceira mensuração, por meio da escala analógica visual, demonstrou aumento da qualidade do sono, assim como os dois outros instrumentos, sendo que houve um estudo em que pacientes com SARVAS e SAOS de nível leve e moderado responderam a uma escala analógica visual antes e após a cirurgia de uvulopalatoplastia, mas referente ao ronco15, diferenciando-se à utilizada neste estudo, pois a queixa do paciente era o frequente despertar.
Foi imprescindível o contato com os dois médicos que já acompanhavam o caso para o respaldo em exames quantitativos, garantindo que a resposta subjetiva do relato positivo do paciente, somada às avaliações realizadas pela fonoaudióloga, iriam de encontro à saúde geral e bem-estar do paciente.
A comprovação da atuação benéfica da Fonoaudiologia nos casos de SARVAS requer mais pesquisas, com uma casuística maior e com a utilização de métodos de avaliação quantitativos, possibilitando correlacioná-los aos parâmetros qualitativos, como o relato do paciente. A presente pesquisa contou com a participação de apenas um paciente, limitando o nível de evidência, porém o mesmo apresentou alta adesão ao tratamento. Sugere-se a realização de estudos com amostras mais amplas, adotando-se tal controle de exercícios aplicados e avaliações longitudinais.
O efeito da terapia miofuncional orofacial demonstrou-se efetivo em um caso clínico com o diagnóstico de Síndrome de Aumento da Resistência das Vias Aéreas Superiores devido à melhora da mobilidade e tonicidade orofacial, diminuição do grau de Mallampati e da circunferência cervical, além do aumento da qualidade do sono após o processo terapêutico.