versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.2 São Paulo abr./jun. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1620
Num conceito mais amplo, desenvolvimento infantil é entendido como um processo que se inicia desde a vida intrauterina e envolve vários aspectos, como o crescimento físico, a maturação neurológica e a construção de habilidades relacionadas ao comportamento nas esferas cognitiva, social e afetiva da criança. O desenvolvimento infantil envolve o aumento da capacidade do indivíduo em realizar funções cada vez mais complexas e sofre influência de vários fatores, merecendo atenção especial de profissionais da saúde e da educação(1–3).
A alta prevalência de doenças, o nascimento de gestações desfavoráveis e/ou incompletas e a vida sob condições socioeconômicas adversas são alguns dos riscos a que crianças de países em desenvolvimento estão expostas, aumentando suas chances de apresentar atrasos em seu potencial de crescimento e desenvolvimento(4–5). Estudos mostram a influência da renda familiar, peso ao nascer e condições nutricionais na ocorrência de atrasos no desenvolvimento infantil(4,6).
A tarefa de identificar e acompanhar crianças vulneráveis ao atraso no desenvolvimento neuropsicomotor depara-se com a complexidade dos fatores que levam a esses atrasos, a inexistência de um sistema eficiente de vigilância, a não-utilização de instrumentos adequados de avaliação por ocasião da triagem, entre outros(7).
Na tentativa de acompanhar objetivamente o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças de zero a seis anos, foi elaborado o Teste de Triagem de Desenvolvimento de Denver (TTDD). Criado por Frankenburg et al., em 1967, é um instrumento de detecção precoce das condições de desenvolvimento da criança, avaliando quatro áreas/categorias: motor-grosseiro, motor fino-adaptativo, linguagem e pessoal-social(1,8–12).
A conduta motora está associada à maturação do sistema nervoso, correspondendo ao controle das aquisições motoras. A conduta de linguagem abrange as percepções de sons, imagens e suas respostas, enquanto a conduta adaptativa compreende a reação da criança frente a objetos e situações. Já a conduta pessoal-social corresponde à avaliação do comportamento frente a estímulos culturais(1,8–10).
Em 1990, os autores propuseram uma nova versão, conhecida como Teste de Triagem do Desenvolvimento de Denver Revisado (TTDD-R) ou Denver II. Alguns itens relacionados à linguagem foram excluídos e outros, de difícil aplicação ou interpretação, foram modificados ou excluídos. O teste passou a conter 125 itens, alterando-se, também, a maneira de interpretar a aplicação das tarefas e do teste como um todo(1,4,9–10,12–13).
Vale ressaltar que esse instrumento não é um teste de avaliação dos coeficientes de inteligência e de desenvolvimento, mas permite avaliar a condição atual do desenvolvimento maturacional da criança, não devendo ser utilizado como um instrumento diagnóstico(8,11).
Os dados obtidos por meio da sua aplicação indicam se a criança está progredindo conforme o esperado para sua idade cronológica e maturidade, fornecendo subsídios para o planejamento de estratégias de atuação junto à criança e para a orientação aos pais(1,4,8–10).
Dentre os testes utilizados para acompanhamento do desenvolvimento infantil, o TTDD-R é um dos mais utilizados, segundo levantamento bibliográfico realizado nos últimos 25 anos e que analisou 174 artigos científicos(12).
Na área da Enfermagem pediátrica, esse teste é utilizado como estratégia efetiva de levantamento de dados sobre a criança, essenciais para elaboração da prescrição dos cuidados de enfermagem, visando à assistência integral da criança e da família(8).
Devido a sua praticidade, o TTDD-R pode ser utilizado em unidades básicas de Saúde, ambulatórios, consultórios, clínicas, unidades pediátricas em hospitais, creches, pré-escolas e serviços especializados em distúrbios do desenvolvimento infantil. Permite a cada profissional uma leitura dos dados obtidos, conforme sua formação específica(8).
A aplicabilidade do TTDD-R em ambulatório pediátrico é de fundamental importância, visto que, sendo um serviço de atenção primária, que visa à promoção da saúde, propicia a detecção precoce de déficits no desenvolvimento neuropsicomotor. Diante disso, este trabalho propôs-se a abordar a utilização desse instrumento no acompanhamento do desenvolvimento de crianças atendidas em um ambulatório que atende crianças em uma favela de São Paulo.
Avaliar o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças entre zero e seis anos de idade, atendidas em ambulatório, por meio do Teste de Triagem de Desenvolvimento de Denver II (TTDD-R).
Trata-se de um estudo descritivo exploratório de abordagem quantitativa, realizado no ambulatório do Projeto Einstein na Comunidade de Paraisópolis (PECP), localizado no município de São Paulo.
Esse serviço atende cerca de 10 mil crianças, com até 10 anos de idade, oferecendo atendimento médico e hospitalar gratuito, orientação para uso dos medicamentos fornecidos e múltiplas iniciativas complementares na área de Saúde(14).
Participaram da amostra 35 crianças entre 0 e 6 anos, regularmente matriculadas e atendidas na referida instituição, com a concordância dos seus responsáveis legais, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A maioria das crianças tinha entre 12 e 36 meses de idade (19; 54,3%), segundo a tabela 1.
Tabela 1 Distribuição das crianças submetidas ao TTDD-R, de acordo com o estágio do desenvolvimento
Estágios do desenvolvimento | Crianças | |
---|---|---|
n | % | |
Lactente* | 5 | 14,3 |
Infante ou “toddler”** | 19 | 54,3 |
Pré-escolar*** | 11 | 31,4 |
Total | 35 | 100 |
*Lactente: crianças até 12 meses de vida;
**Infante ou “toddler”: crianças de um a três anos de vida;
***Pré-escolar: crianças de três a seis anos de vida.
A coleta de dados foi realizada mediante aprovação do projeto de pesquisa pela Comissão Científica da Faculdade de Enfermagem do Hospital Israelita Albert Einstein e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (CAAE: 0160.0.028.000-08), além da autorização da gerência do ambulatório onde ocorreu a coleta.
Os dados foram colhidos no segundo semestre do ano de 2008, por meio da aplicação do TTDD-R, sendo que os materiais utilizados para sua execução foram: pompom de lã vermelha com um fio; chocalho de cabo estreito; uvas passas; sino pequeno; dez blocos de madeira quadrados e coloridos, com 2,5 cm3; pote transparente com abertura estreita; bola de tênis; lápis vermelho; boneca de plástico pequena com mamadeira; caneca de plástico com asa e papel em branco(1).
Os dados foram analisados quantitativamente por meio de técnicas de estatística descritiva e apresentados em números absolutos e percentuais, sob a forma de tabelas, considerando-se os critérios de interpretação dos resultados do teste.
O TTDD-R correlaciona cada item com a idade e o percentual da população padronizada que realizou determinado item ou comportamento. Cada um dos itens avaliados é classificado como:
–. normal: quando a criança executa a atividade prevista para a idade ou não executa uma atividade realizada por menos de 75% das crianças da mesma idade;
–. cuidado: quando a criança não executa ou se recusa a realizar atividade que já é feita por 75 a 90% das crianças daquela idade;
–. atraso: quando a criança não executa ou se recusa a realizar atividade que já é executada por mais de 90% das crianças que têm sua idade(1,8–10,13).
A interpretação dos itens permite classificar o teste como: normal, quando a criança não apresenta nenhum “atraso” ou um cuidado no máximo; risco, quando apresenta dois ou mais “cuidados” e/ou um ou mais “atrasos”; não testável, quando “recusa-se” a realizar a atividade em um ou mais itens com a linha da idade completamente à direita (ou seja, realizada por quase todas as crianças) ou em mais do que um item com a linha da idade na área em que 75 a 90% já executam o item(1,10,13).
A maioria das crianças avaliadas (24; 68,5%) apresentou desenvolvimento compatível à sua faixa etária, sendo que 10 (28,6%) apresentaram teste “de risco” e apenas 1 (2,9%) apresentou resultado “não testável”.
Considerando-se, inicialmente, o número de crianças com “atrasos”, em um total de 7, constatou-se que a categoria “motor fino-adaptativo” foi a que se destacou (3; 42%), seguida pelas categorias “pessoal-social” (2; 28,6%) e “linguagem” (2; 28,6%). Quanto ao número total de atrasos identificados, em um total de 10, metade (5; 50%) ocorreu na área da linguagem (Tabela 2).
Tabela 2 Número de crianças que apresentaram “atraso” e itens detectados como “atraso” na aplicação do TTDD-R, de acordo com cada área/categoria do teste*
Áreas/categorias | Crianças que apresentaram “atraso” | Itens do teste identificados como “atraso” | ||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Pessoal-social | 2 | 28,6 | 2 | 20 |
Motor fino-adaptativo | 3 | 42,9 | 3 | 30 |
Linguagem | 2 | 28,6 | 5 | 50 |
Motor-grosso | - | - | - | - |
Total | 7 | 100 | 10 | 100 |
*Atraso: ocorre quando a criança não executa ou se recusa a realizar uma atividade que já é executada por mais de 90% das crianças de sua idade.
Quanto às atividades classificadas como “cuidado”, num total de 21, identificadas em 18 crianças, verificouse também que a área de linguagem se destacou, tanto em relação ao número de crianças (7; 38,9%), quanto ao número de itens do teste (9; 42,9%), como mostra a tabela 3.
Tabela 3 Número de crianças que apresentaram “cuidado” e itens detectados como “cuidado” na aplicação do TTDD-R, de acordo com cada área/categoria do teste*
Áreas/ categorias | Crianças que apresentaram “cuidado” | Itens do teste identificados como “cuidado” | ||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Pessoal-social | 6 | 33,3 | 7 | 33,3 |
Motor fino-adaptativo | 5 | 27,8 | 5 | 23,8 |
Linguagem | 7 | 38,9 | 9 | 42,9 |
Motor-grosso | - | - | - | - |
Total | 18 | 100 | 21 | 100 |
*Cuidado: ocorre quando a criança não executa ou se recusa a realizar uma atividade que já é feita por 75 a 90% das crianças de sua idade.
Em relação à única criança (2,9%) que apresentou recusas durante o teste, observou-se discreto predomínio entre itens da área da linguagem (2; 50%), conforme a tabela 4.
Tabela 4 Número de crianças que apresentaram “recusa” na aplicação do TTDD-R, de acordo com cada área/categoria do teste*
Áreas/categorias | Crianças que apresentaram “recusa” | |
---|---|---|
n | % | |
Pessoal-social | - | - |
Motor fino-adaptativo | 1 | 25 |
Linguagem | 2 | 50 |
Motor-grosso | 1 | 25 |
Total | 4 | 100 |
*Recusa: ocorre quando a criança recusa-se a realizar a atividade em um ou mais itens já realizados por mais de 90% das crianças de sua idade, ou em mais do que um item em que 75 a 90% das crianças de sua idade já realizam.
O número de “atrasos” e de testes definidos como “de risco” entre as crianças avaliadas reforçam o que estudos anteriores enfatizam, no que se refere aos efeitos cumulativos de fatores de risco múltiplos, que aumentam a probabilidade de comprometimento no desenvolvimento infantil(15–16).
Crianças de países subdesenvolvidos concentram a grande maioria das possíveis causas que levam a atrasos no desenvolvimento. Vale ressaltar que este estudo foi realizado junto à comunidade da segunda maior favela do Estado de São Paulo. Todavia, existem outras variáveis, como educação materna, tamanho da família e ocupação do pai, as quais, neste estudo, não foram abordadas e também são importantes preditores do desenvolvimento futuro da criança(7).
Como o objetivo dos ambulatórios é prestar atendimento primário à população, contemplando diversas especialidades da área da saúde, a aplicação cotidiana do TTDD-R facilitaria o acompanhamento das possíveis falhas encontradas no desenvolvimento neuropsicomotor das crianças, permitindo o estabelecimento de programas de intervenção que visem à prevenção de distúrbios.
Analisando-se os resultados encontrados em relação aos testes “de risco” ou “não-testáveis”, a conduta recomendada é repetir o TTDD-R em outra ocasião, preferencialmente após duas semanas, para uma melhor avaliação da criança.
Em relação à maior ocorrência de “atrasos” e “cuidados” na área da linguagem, dois estudos desenvolvidos com crianças em creches também destacam a persistência de deficiências nessa área, que se acentuam a partir dos três anos de idade. Segundo os autores, esses resultados se justificam, entre outros fatores, pela imaturidade neurofisiológica para a aquisição e domínio da linguagem e pelos estímulos sociais, essenciais para que os padrões linguísticos se desenvolvam(13,17).
Considerando essa situação, seria importante orientar os pais sobre a necessidade de acompanhar as atividades de seu filho e utilizar estratégias que estimulem a sua verbalização, como falar pausadamente e articuladamente, cantar cantigas, ler histórias infantis, entre outras.
Na persistência de testes de “risco”, deve-se avaliar a possibilidade de encaminhar a criança a profissionais especializados (fonoaudiólogo, psicólogo, otorrinolaringologista, entre outros), como recomenda a literatura(4), a fim de se identificar outros fatores relacionados a esse desempenho insuficiente, como, por exemplo, os déficits auditivos ou problemas emocionais.
Diante dos resultados, concluiu-se que a maioria das crianças apresentou desenvolvimento normal, sendo que 1/4 delas apresentou teste “de risco” e apenas 1 obteve resultado “não-testável”. A área da linguagem foi a que apresentou maior número de itens com “atrasos” e “cuidados” na realização das atividades pelas crianças.
Considerando-se o número de crianças com “atrasos” ou “cuidados”, constatou-se que a área da linguagem destacou-se em relação ao “cuidado”, identificando-se mais crianças com “atrasos” na área “motor fino-adaptativo”.