versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.12 Rio de Janeiro dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152112.20572015
Com o aumento da motorização, principalmente nos países em desenvolvimento, o número de acidentes de trânsito tem aumentado acentuadamente, sendo o consumo de álcool um dos seus principais preditores1, pois existe uma correlação linear entre aumento de alcoolemia e ocorrência desse tipo de acidente2-5.
A importância dessa relação para a saúde pública fez com que diversos países desenvolvidos adotassem, com sucesso, medidas para a redução da morbimortalidade no trânsito. Nos Estados Unidos e na Europa houve redução dos acidentes de trânsito com a adoção de medidas preventivas, tais como: redução da disponibilidade de bebidas alcoólicas, fiscalização em postos de checagem de sobriedade com poderes irrestritos para aplicar o teste do bafômetro e suspensão da habilitação para quem dirige com alcoolemia acima dos limites legais1,6.
Como medida preventiva para o controle dos acidentes de trânsito, em 19 de junho de 2008, o Brasil sancionou a Lei 11.7057, a Lei Seca, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ao proibir o consumo de álcool por condutor de veículo automotor, sujeitando-o a penalidades como prisão, multa, suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo, se flagrado dirigindo alcoolizado. Em 20 de dezembro de 2012, foi sancionada a Lei 12.7608, que tornou a Lei Seca mais rígida ao impor tolerância zero ao motorista que ingeriu álcool, aumentando o valor da multa e admitindo prova testemunhal ou outros meios para provar embriaguez.
Desde março de 2009, o Governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) realiza a Operação Lei Seca9, abordando motoristas em vias públicas de tráfego intenso da capital, Região Metropolitana e Baixada Fluminense para fiscalizar o atendimento às normas do CTB. Vale ressaltar que o risco de morte por acidentes de trânsito depois da promulgação da Lei Seca reduziu em 7,4% a taxa padronizada de mortalidade por este tipo de acidente no Brasil, que passou de 18,7/100 mil habitantes para 17,3/100 mil habitantes. Essa diminuição também foi observada no RJ (32,5%), onde a redução no risco de morte na população masculina residente em sua capital foi de 64,4%10.
Considerando que alguns fatores sobre o fenômeno beber e dirigir e as características dos condutores que adotam tal comportamento nos dias atuais ainda não estão claros e que, após a promulgação da Lei Seca, apenas dois estudos foram conduzidos com esse fim11,12, esta pesquisa objetivou avaliar os resultados e as recusas ao teste do bafômetro entre motoristas interceptados pela Operação Lei Seca na capital do RJ e Baixada Fluminense.
Estudo transversal realizado com base em dados cedidos pelo Governo do Estado do RJ, a partir de coleta efetuada por agentes da Polícia Militar e do Departamento de Trânsito desse estado durante atendimento de condutores de veículo automotor interceptados pela Operação Lei Seca entre 22 e três horas das quintas, sextas, sábados e domingos de dezembro de 2013 e janeiro de 2014. Os dados (data e local da interceptação, sexo, idade e resultado ou recusa ao teste do bafômetro) encontravam-se registrados nos formulários utilizados pelos agentes da Operação Lei Seca e foram cedidos de forma anônima, sendo compilados em banco de dados para o desenvolvimento deste estudo.
Foram interceptados, enquanto circulavam por vias públicas de bairros da zona sul da capital homônima do RJ (Humaitá, Gávea e Lagoa) e de municípios da Baixada Fluminense (São João de Meriti, Nova Iguaçu e Duque de Caxias), 4756 condutores de carros, motocicletas e utilitários, que compõem a amostra não probabilística do estudo. A interceptação não seguiu critérios sistemáticos e foi realizada fortuitamente pelos policiais, que informavam os motoristas sobre as alterações ocorridas no CTB advindas com a Lei Seca, solicitavam a realização do teste do bafômetro e a apresentação do Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo e da Carteira Nacional de Habilitação.
Aos condutores que apresentaram teste do bafômetro negativo (≤ 0,04 mg de álcool/L de ar alveolar) não foram atribuídas quaisquer medidas administrativas ou criminais relacionadas ao comportamento de beber e dirigir. Em caso de resultado positivo (≥ 0,05 mg de álcool/L de ar alveolar), recolhia-se a Carteira Nacional de Habilitação, aplicava-se multa, suspensão do direito de dirigir por 12 meses e declarava-se prisão em flagrante aos condutores cujo resultado do teste fosse ≥ 0,34 mg de álcool/L de ar alveolar. Em caso de recusa ao teste do bafômetro, recolhia-se a Carteira Nacional de Habilitação e apreendia-se o veículo até a apresentação de outro condutor sóbrio e habilitado.
As variáveis analisadas foram sexo, idade, local de abordagem, resultado e recusa ao teste do bafômetro. Procederam-se transformações nas variáveis idade – classificada em três faixas etárias (18 a 25 anos, 26 a 59 anos e 60 anos ou mais); local de abordagem – classificado como capital (Gávea, Humaitá e Lagoa) e Baixada Fluminense (São João de Meriti, Nova Iguaçu e Duque de Caxias); e resultado do teste do bafômetro – classificado como negativo (zero mg de álcool/L de ar alveolar) ou positivo (≥ 0,01 mg de álcool/L de ar alveolar).
Realizaram-se análises descritivas da amostra e de associação entre as variáveis sexo, faixa etária e local de abordagem com as recusas e os resultados do teste do bafômetro através do teste qui-quadrado e, em seguida, em um modelo de regressão logística múltipla, adotando-se nível de 0,05 para significância estatística. As análises foram conduzidas no software estatístico R versão 3.1.1. O diagnóstico de ajuste do modelo logístico baseou-se no critério de redução da deviance em comparação ao modelo nulo.
O presente estudo obedeceu às recomendações éticas da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde13 e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital Escola São Francisco de Assis da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A amostra teve predominância de condutores do sexo masculino (83,6%), concentrados na faixa etária de 26 a 59 anos (78,5%), interceptados predominantemente na capital (68%). Dos 4756 (100%) condutores interceptados, 59 (1,2%) apresentaram resultado positivo no teste do bafômetro e 229 (4,8%) recusaram-no (Tabela 1).
Variável | n | % | |
---|---|---|---|
Sexo* | |||
Feminino | 781 | 16,4 | |
Masculino | 3970 | 83,6 | |
Faixa etária | |||
18-25 anos | 759 | 16,0 | |
26-59 anos | 3735 | 78,5 | |
60 anos ou mais | 262 | 5,5 | |
Local | |||
Capital | 3235 | 68,0 | |
Baixada Fluminense | 1521 | 32,0 | |
Bafômetro | |||
Positivo | 59 | 1,2 | |
Negativo | 4468 | 94,0 | |
Recusas | 229 | 4,8 |
*Excluídos os sem informação.
Quanto aos resultados e às recusas ao teste do bafômetro, apenas a variável local de abordagem apresentou significância estatística tanto na análise bivariada (Tabela 2) quanto na multivariada, onde observam-se maiores chances de resultados positivos e recusas ao teste entre os condutores interceptados na Baixada Fluminense (OR = 4,01 e OR = 5,14, respectivamente) (Tabela 3).
Variável | Bafômetro | p-valor | Recusas | p-valor | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Positivo n (%) | Negativo n (%) | Sim n(%) | Não n(%) | ||||
Sexo | |||||||
Feminino | 12(1,6) | 741(98,4) | 0,555 | 28(3,6) | 753(96,4) | 0,100 | |
Masculino | 47(1,2) | 3723(98,8) | 200(5,0) | 3770(95,0) | |||
Faixa etária | |||||||
18-25 | 09(1,2) | 709(98,8) | 0,976 | 41(5,4) | 718(94,6) | 0,563 | |
26-59 | 47(1,3) | 3510(98,7) | 178(4,8) | 3557(95,2) | |||
60 ou mais | 03(1,2) | 249(98,8) | 10(3,8) | 252(96,2) | |||
Local | |||||||
Capital | 23(0,7) | 3140(99,3) | 0,004 | 72(2,2) | 3163(97,8) | < 0,001 | |
Baixada Fluminense | 36(2,6) | 1328(97,4) | 157(10,3) | 1364(89,7) |
Variável | Bafômetro positivo | Recusas | |||
---|---|---|---|---|---|
OR bruta (IC 95%) | OR ajustada (IC 95%) | OR bruta (IC 95%) | OR ajustada (IC 95%) | ||
Sexo | |||||
Feminino | 1,0 | 1,0 | 1,0 | 1,0 | |
Masculino | 0,78(0,41-1,48) | 0,60(0,31-1,15) | 1,43(0,95-2,14) | 1,05(0,69-1,58) | |
Faixa etária | |||||
18-25 | 1,06(0,28-3,93) | 0,69(0,18-2,61) | 1,44(0,71-2,92) | 0,85(0,41-1,76) | |
26-59 | 1,11(0,34-3,60) | 0,83(0,25-2,71) | 1,26(0,66-2,40) | 0,85(0,44-1,66) | |
60 ou mais | 1,0 | 1,0 | 1,0 | 1,0 | |
Local | |||||
Capital | 1,0 | 1,0 | 1,0 | 1,0 | |
Baixada Fluminense | 3,70(2,18-6,26) | 4,01(2,33-6,88) | 5,12(3,84-6,83) | 5,14(3,83-6,89) |
Apenas 1,2% dos condutores interceptados pela Operação Lei Seca na capital do RJ e Baixada Fluminense apresentaram resultado positivo no teste do bafômetro. Apesar de os agentes responsáveis pela Operação Lei Seca selecionarem vias públicas de tráfego intenso consideradas estratégicas para a instalação dos pontos de interceptação, observando possíveis vias de desvio dos condutores, é provável que frequência um pouco maior de resultados positivos no teste do bafômetro seria observada se não houvessem ferramentas disponíveis em redes sociais ou outros meios pelos quais os condutores podem obter informações sobre os locais de realização da operação, tal como aplicativos de smartphones. Isto porque aqueles indivíduos que dirigiriam alcoolizados podem ter mudado de trajeto para evitar interceptação após consultar uma dessas fontes. Além disso, é possível que parte dos 229 (4,8%) condutores que recusaram o teste do bafômetro estivessem alcoolizados e, ao recusa-lo, “escaparam” de penalidades mais severas constantes no CTB e, consequentemente, diminuíram a frequência de resultados positivos no bafômetro.
Ao descrever os resultados do teste do bafômetro entre condutores de veículo interceptados pela Operação Lei Seca na capital do RJ, em 2010, estudo de metodologia semelhante à deste encontrou 3,1% de testes positivos e 1,1% de recusas11. É possível que a frequência de resultados positivos no teste do bafômetro encontrados pelo presente estudo na capital do RJ tenha sido 4,4 vezes menor (Tabela 2) que os reportados por aquele devido ao maior tempo de exposição à Lei Seca e às suas ações de fiscalização, já que foi conduzido cinco anos após sua promulgação e quatro após o início da Operação Lei Seca no RJ. Entretanto, a frequência de recusas ao teste do bafômetro encontrada por este estudo é 2 vezes maior (Tabela 2) que a encontrada por aquele. Provavelmente isto se deva ao fato de que, à época da coleta de dados, se o indivíduo estivesse conduzindo veículo sob efeito do álcool, a recusa ao teste do bafômetro implicava em autuações menos graves que um resultado positivo no teste.
Estudo conduzido em Belo Horizonte encontrou 15% de testes positivo no bafômetro entre condutores interceptados por postos de checagem de sobriedade em 2009, um ano após a promulgação da Lei Seca12. Cabe destacar que, além de a amostra de condutores desse estudo ter sido aleatória, a interceptação dos veículos tinha fins educativos e não fiscalizatórios. Sendo assim, os condutores foram persuadidos a realizar o teste do bafômetro com a garantia de que não sofreriam qualquer punição e que os resultados não seriam compartilhados com a polícia, cujo envolvimento limitou-se à garantia de segurança no trânsito da equipe de pesquisadores e dos próprios condutores.
Condutores interceptados na Baixada Fluminense apresentaram maiores chances de resultados positivos (OR = 4,01) e recusas ao teste do bafômetro (OR = 5,14) em comparação àqueles interceptados na capital do RJ. Esses resultados sugerem que a menor exposição em anos dos condutores da Baixada Fluminense à Operação Lei Seca aumenta a chance do descumprimento da Lei, isto porque a Operação Lei Seca na Baixada Fluminense iniciou apenas em 2012, três anos após iniciada na capital do RJ.
Diante disso, ainda que a população brasileira venha apresentando reduções significativas no comportamento de beber e dirigir14, acreditamos que são as ações sistemáticas de fiscalização do cumprimento das normas constantes no CTB, aqui representadas pela Operação Lei Seca, que influenciam positivamente esse comportamento na capital do RJ, que apresenta as menores frequências de direção alcoolizada do Brasil15.
No contexto, vale ressaltar a necessária discussão sobre a importância do estabelecimento de políticas e de medidas legais de restrição ao consumo de bebidas alcoólicas e direção veicular. É fundamental que esse debate envolva governo, legislativo, profissionais de saúde e de educação, sociedade, famílias e jovens, visando ao avanço das políticas públicas16.
Dentre os limites do presente estudo, destacam-se: a amostra ser do tipo não probabilística, o que não permite inferências para toda a população do RJ; a interceptação arbitrária dos condutores influenciada pelo costume policial em abordar “veículos suspeitos”, refletida na elevada proporção de condutores do sexo masculino (83,6%) e; a realização do estudo com dados de apenas dois meses da Operação Lei Seca, o que impossibilita a análise de sazonalidade das ocorrências, especialmente porque nos meses de dezembro e janeiro há muitos feriados e férias coletivas, onde os indivíduos tendem a consumir (mais) bebidas alcoólicas. Mesmo com essas limitações, ressalta-se que os resultados aqui apresentados colaboram para o preenchimento de importante lacuna sobre o fenômeno beber e dirigir nos dias atuais, além de apontarem para uma possível influência positiva das ações sistemáticas de fiscalização efetuadas pela Operação Lei Seca desde 2009 nesse comportamento dos motoristas da capital do RJ.