On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.27 no.6 São Paulo Nov./Dec. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201400089
O cuidado prestado à criança na Atenção Primária à Saúde visa a promoção de saúde por meio de ações prioritárias de vigilância e acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento infantil neste âmbito. Faz-se necessário o estabelecimento de condições para a prestação desse cuidado, fortalecendo os atores envolvidos por meio do provimento de recursos e subsídios às equipes de saúde e de autonomia e responsabilização aos usuários, para que o trabalho em saúde alcance sua finalidade que é a de resolver as necessidades de saúde da criança e sua família.(1)
Um dos requisitos necessários para se efetivar o cuidado é o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde. O acesso de primeiro contato é um dos atributos essenciais da atenção primária à saúde e denota a acessibilidade e uso desses serviços em caso de problemas no qual as pessoas buscam atenção à saúde.(2)
Pode-se dizer que um serviço acessível é aquele de fácil abordagem, disponível às pessoas, no qual não há barreiras geográficas, gerenciais, financeiras, culturais ou de comunicação, possibilitando que os indivíduos recebam atenção, e que esta seja resolutiva, ou seja, que o problema seja resolvido ou naquele ou em outro ponto de atenção, ao primeiro contato com o serviço.(3)
Nessa perspectiva, o estudo traçou como objetivo apreender o acesso em duas unidades de atenção primária à saúde, uma tradicional e outra com a estratégia saúde da família, com distintos processos de trabalho e avaliar se houve resolutividade da assistência à saúde da criança nesse âmbito, nesses dois modelos utilizados no Brasil.
Trata-se de uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa cujo referencial teórico-metodológico para interpretação dos dados foi a hermenêutica.(4-6)
A coleta de dados foi desenvolvida em dois serviços de atenção primária que possuem modelos de atenção distintos um do outro. Os sujeitos do estudo foram todos os profissionais que atuavam nessas duas unidades.
Para a obtenção dos dados utilizou-se a técnica da observação não participante, com roteiro previamente estabelecido e para o registro da observação foi utilizado o diário de campo. O período de coleta de dados foi de dois meses e encerrou-se em decorrência da saturação das informações observadas, fornecendo ao pesquisador suficientes informações para responder ao seu questionamento de pesquisa.
As informações coletadas do diário de campo provenientes da observação foram ordenadas, organizadas, categorizadas, contextualizadas e interpretadas por meio do método de Análise Temática.(7)
Na pré-análise estabeleceu-se o primeiro contato com o material, identificando os núcleos de sentido, em seguida explorou, por meio de recortes das partes representativas dos textos do diário de campo e, por fim os dados foram agrupados e interpretados possibilitando a construção de uma categoria que explicitasse o acesso aos serviços nas unidades investigadas.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Optou-se pela apresentação dos dados no formato de quadro no qual se pode observar a categoria sistematizada: “A influência do processo de trabalho no acesso e resolutividade da atenção primária à saúde da criança” com suas sub-categorias e os relativos relatos de observação em cada uma delas, conforme quadro 1.
Quadro 1 Categoria sistematizada
O primeiro contato na atenção primária | Os usuários chegam ao balcão solicitando determinadas informações, as recepcionistas orientam ou encaminham para os respectivos setores que são solicitados: curativos, vacina, inalação. As informações repassadas na recepção se dão de forma pontual, o atendimento desse usuário depende do direcionamento da recepção: “onde fica a sala de vacina? [pergunta o usuário] dê a volta e aguarda no saguão [responde a recepcionista]”, “gostaria de falar com a enfermeira? ela não se encontra hoje, está de atestado”, responde a recepcionista e a mulher vai embora. |
Organização do serviço e sua influência no acesso | Antes das oito horas da manhã são os Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) que fazem o trabalho da recepção: atendem os pacientes, pegam os prontuários, marcam consultas de especialidades, atendem telefone e repassam informações requisitadas pelos usuários. Os pacientes necessitam ficar na fila todos os dias para conseguir ficha, chegam em torno de quatro, cinco horas da manhã. É o vigia da unidade que avisa quantas fichas estarão disponíveis naquele dia. Pela manhã, cerca de 30 pessoas aguardam a unidade abrir formando duas filas, uma para cada médico da área de abrangência da ESF. Depois que abre a unidade, as recepcionistas entregam as fichas conforme a ordem na fila, se não sobrar ficha o usuário vai embora, ou se ele estiver passando muito mal e quiser aguardar, é realizada uma avaliação. [...] quando não tem fichas ou o pediatra está de férias, entram em contato em outra UBS para tentar uma vaga de encaixe para a criança. As pessoas que não conseguem ficha naquele dia e quiserem aguardar para passar por uma avaliação, podem aguardar. Nessa avaliação, é feita a pré-consulta (medidas de sinais vitais), se não estiver bem, falam [técnicos e/ou auxiliares de enfermagem] para o paciente ir para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA). |
O acesso à atenção programada em saúde | A agenda de puericultura da enfermeira da equipe 31, em um dia pela manhã prevê consultas às crianças em geral e numa tarde, para recém-nascidos de alto risco. Essa organização pretende atender as crianças egressas de UTI Neonatal e que não conseguiam agendar puericultura. Todas as quintas-feiras à tarde são destinadas ao atendimento de gestantes e de crianças de 0 a 3 anos por meio de agenda aberta, em que a equipe da odontologia ensina as mães medidas preventivas de saúde bucal. Para o restante da faixa etária, a agenda é aberta de tempos em tempos e os pacientes vêm para deixar o nome na fila de espera. |
Entendem-se os resultados como circunscritos à realidade observada, o que é uma limitação do método qualitativo. Por esse motivo, esses resultados não devem ser tomados de forma generalizada. Assim, analisaram-se as informações obtidas e sistematizadas anteriormente em torno da dificuldade do acesso para o cuidado à criança na atenção primária.
Note-se que a atuação na atenção primária à saúde é um campo fértil de trabalho do enfermeiro e este, ao olhar para o conjunto desses dados pode refletir sobre sua forma de cuidar das crianças nesse âmbito de atenção e mudar sua prática no sentido de ampliar o acesso e melhorar a resolutividade para as crianças e suas famílias, sendo esta a aplicação prática do estudo.
Quanto ao acesso aos serviços de saúde, constatou-se que a recepção constitui-se no primeiro local de busca de informações para os usuários que procuram as unidades. Neste local são direcionados os pacientes conforme a apresentação da necessidade, suas dúvidas ou queixas.
A recepção de ambas as unidades, independente do modelo de atenção adotado, se tradicional ou saúde da família, se comportou como uma barreira e filtro aos usuários. A indicação seria de acolhê-los e transformar esse momento em estabelecimento de vínculo, em escuta qualificada, boas práticas de atenção, de forma a garantir um atendimento humanizado, resolutivo, legitimando este ponto como a porta de entrada preferencial para as redes de atenção à saúde.(8)
Essas características denotam um cuidado em saúde da criança, envolvendo as mães e a família de forma integral, e pressupõe a adoção de um conceito de saúde ampliado, no qual estão inseridas necessidades biológicas, psicossociais, culturais e subjetivas. Para que isso possa se efetivar é condição essencial atuação interdisciplinar das equipes de saúde, com ações coordenadas e longitudinais de vários profissionais.(9)
Uma das formas de atuação interdisciplinar é investir na ferramenta do acolhimento, o qual poderá ser desenvolvido por meio de duas dimensões: uma atitudinal, voltada para atenção humanizada, com escuta qualificada dos problemas de saúde, envolvendo uma resposta positiva às demandas e a criação de vínculos entre a equipe de saúde e a população adstrita. A outra, organizativa, para estabelecimento dos fluxos, referência e contrarreferência, territorialização, a superação dos constrangimentos ou de respostas negativas como a ausência de fichas e o estabelecimento de um processo de avaliação inicial adequado.(10)
Ou seja, a recepção deixa de ser um lugar de poder, capaz de decidir sobre o acesso ou não do usuário.
Tal ferramenta pode ser implantada por meio do estabelecimento do diálogo, podendo proporcionar soluções para dificuldades presentes, formando uma mistura de conhecimento técnico com o conhecimento popular. Nessa perspectiva, a troca de conhecimentos poderá ocorrer desde que o trabalhador de saúde apresente sensibilidade para a escuta, compreenda as necessidades de saúde e, assim, integre-as ao conhecimento técnico, proporcionando uma melhor acolhida ao usuário na unidade de saúde.(11)
Observou-se a existência de problemas na organização do trabalho, em que muitos trabalhadores deixaram suas funções específicas para exercer seu trabalho em postos diferentes dos de sua competência, suprindo um déficit de trabalhadores. Além do mais, o excesso de trabalho e as condições do local tornaram-se elementos impeditivos para que o trabalhador desenvolvesse seu trabalho de forma acolhedora e humanizada, com vistas à resolução dos problemas de saúde das crianças.
Estudo com trabalhadores da recepção de uma unidade básica de saúde descreveu o trabalho como fragmentado, no qual o foco do seu trabalho voltou-se com base nos procedimentos ofertados, as necessidades de saúde voltadas para uma visão biológica do processo saúde-doença, as tecnologias duras e leve-duras. A finalidade do trabalho neste estudo se revelou como caridade ou indeterminada, desconhecida para o próprio trabalhador.(12)
Outro estudo que avaliou o acesso à unidade de saúde da família na visão dos usuários, obteve resultado semelhante a este, em que os usuários relataram demora no atendimento, contribuindo para a diminuição da credibilidade da estratégia de saúde da família, dificultando o acesso e assim, reiterando a descrença no serviço de saúde prestado pelo setor público.(13)
Tal achado coincide, também, com o estudo apontando, dentre outros resultados análogos, a (des)humanização do cuidado, demonstrado pela presença de pessoas de madrugada nas unidades de saúde para conseguir o atendimento.(14)
Ainda, ao invés de adotar a prática de classificação de risco, com a escolha de uma metodologia apropriada para tal, uma das unidades adota a conduta denominada avaliação. Essa prática não deve ser tomada como acolhimento, visto que esse é um dispositivo utilizado com o princípio de gerenciar novas maneiras de realizar o cuidado em qualquer espaço e momento de trabalho com utilização de tecnologias de conversação que permitam uma ausculta sensível, garantindo o acesso universal e dando uma resposta positiva com agilidade aos serviços e usuários.(15)
Esta perspectiva poderia estar presente de forma mais expressiva e consolidada nas equipes de saúde da família estudadas, porém, os resultados observados, não evidenciaram diferenças na forma de organização dos serviços quanto ao acesso da unidade de saúde da família relativamente à unidade básica tradicional, a qual, ao contrário, demonstrou oferecer melhor acesso e resolutividade dos casos, em comparação à unidade de saúde da família, que por meio de “fichas” e “avaliações”, acabou por distanciar-se de princípios que a caracterizam como estratégia preferencial de promoção de saúde à população.
A Saúde da Família é uma estratégia que visa as ações de promoção à saúde, mediante o empoderamento dos indivíduos e famílias para seu cuidado, uma vez que ao se responsabilizar pela saúde da população do território, as equipes devem ampliar a prática curativo/preventiva, buscando promover a qualidade de vida, o que correspondendo a um dos principais fundamentos da mudança do modelo assistencial em saúde.(16)
Contudo, apenas adotar a estratégia saúde da família como prática sem realmente mudar o modelo de atenção faz com os usuários do serviço se afastem, pois a população fica desavisada e “perdida”, não sabe a qual serviço recorrer para sanar suas necessidades de saúde.
Uma das ações da estratégia saúde da família é a atenção programada, a qual descreve-se como o encontro clínico de iniciativa do profissional de saúde, que se foca em aspectos do cuidado que não são considerados em um atendimento de uma condição aguda ou de uma agudização de condição crônica. Esse encontro se faz com base num plano de cuidado elaborado, revisado e pactuado entre a equipe de saúde e as pessoas usuárias.(10)
Nas observações realizadas, foi possível detectar que esse tipo de atenção à criança ocorre pela puericultura dos enfermeiros em ambas as unidades, pela consulta puerperal associada à primeira consulta do recém-nascido com os profissionais médicos da equipe de saúde da família e pela equipe de odontologia da unidade de saúde da família com prevenção à saúde bucal de gestantes e crianças de zero a três anos.
Quanto ao acesso a esses serviços, observou-se que mudanças na forma de agendamento ocorreram com a puericultura do grupo de recém-nascidos de alto risco provindos da unidade de terapia intensiva neonatal, em que foi apreendida por parte da enfermeira, a dificuldade de agendamento e de atendimento desse público prioritário que carece de atenção meticulosa.
Tal achado complementa o estudo sobre o cuidado do pré-termo e baixo peso egresso da unidade de terapia intensiva neonatal, em que as famílias descreveram seu itinerário nos serviços de saúde em busca da continuidade do cuidado à saúde do filho após a alta hospitalar. As mesmas expressaram que esse itinerário é marcado por barreiras de acesso, vínculo frágil e vulnerabilidade institucional dos serviços de saúde, gerando insegurança, insatisfação e não-efetividade no seguimento da criança.(17)
Foi possível observar que a maioria dos atendimentos realizados às crianças se dá por meio das consultas médicas em que o acesso ao cuidado em saúde da criança é priorizado em situações agudas de doenças, ou seja, o foco desse cuidado acaba sendo a doença, as queixas e a respectiva intervenção para a cura, o que retrata um cuidado em saúde médico-centrado, que supervaloriza os aspectos biológicos dos indivíduos e utiliza como instrumentos desse cuidado tecnologias duras e leve-duras,(1) o que acaba por não alcançar as necessidades de saúde da criança de forma integral.
Sobre as necessidades de saúde, estudo realizado segundo a percepção de usuários, constatou que essas necessidades, apresentam-se atreladas à produção e reprodução social e à acessibilidade às ações de saúde e o vínculo relacionado às necessidades de autonomia e autocuidado, concluindo que a relação de confiança possibilita o fortalecimento das potencialidades para o enfrentamento do processo saúde-doença.(18)
O cuidado em saúde, dessa forma, pode se tornar resolutivo se houver inversão das tecnologias de cuidado, buscando inserir nos projetos terapêuticos ações que transferem conhecimento ao usuário, elevem sua autoestima, consigam incorporar sua vivência no seu processo terapêutico singular, fazendo-o também sujeito do seu estado de saúde, tendo a possibilidade de trabalhar a saúde com tecnologias leves, em um processo mais relacional do que instrumental, o que significa elaborar projetos terapêuticos centrado nas necessidades dos usuários e tendo-o como protagonista do seu processo de saúde.(19)
Neste estudo não foram observadas diferenças na atenção programática executada no modelo de estratégia saúde da família em contrapartida ao da unidade de saúde tradicional, ambas mantiveram tal atendimento por meio de agendamento semanal. A parcela maior de atendimento à criança foi realizada por meio de atenção à demanda espontânea, tendo como causa da procura por atendimento, casos de condições agudas de doenças e agravos, todos passíveis de resolução no âmbito da atenção primária à saúde.
O acesso ao primeiro contato demonstrou fragilidades no que se refere à criança na atenção primária à saúde, ficando evidenciada a existência de barreiras organizacionais, impedindo ou dificultando o acesso ao cuidado por meio de dispositivos impostos burocraticamente. Percebeu-se, ainda, um cuidado fragmentado e descoordenado em ambos os serviços de atenção primária, demonstrando que tais serviços carecem de estruturação e desenvolvimento de cuidados de saúde resolutivos para a criança e sua família.