On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.27 no.6 São Paulo Nov./Dec. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201400086
As doenças crônicas não transmissíveis, em especial as que acometem o sistema cardiovascular e as associadas às causas externas como acidentes de trânsito e acidentes de trabalho, são responsáveis por um número cada vez maior de pessoas com seqüelas físicas. Estas sequelas resultam em deficiência física e necessitam de ações e serviços que visem a reabilitação e a re-integração social com qualidade e acesso garantido.( 1 , 2 )
Das pessoas acometidas pelos agravos acima é expressivo o número das que evoluem para amputações. A amputação pode ser resultante da inadequada prevenção de doenças de base, da ação terapêutica no tratamento de doenças avançadas ou de um evento agudo.( 3 , 4 ) Ela é considerada uma cirurgia reconstrutora, na qual se separa do organismo, parcial ou totalmente, um membro ou parte do corpo.( 5 )
Logo, há necessidade de atendimento no sentido de reabilitar a pessoa amputada – proveniente de quaisquer causas – assegurando-lhe o direito de assistência integral para manutenção da saúde.
Dentre os modelos organizacionais de ações e serviços de saúde, encontram-se as Redes de Atenção à Saúde, com diferentes níveis de atenção integrados que visam garantir a excelência do cuidado aos usuários do sistema. Têm como objetivo potencializar o desempenho do sistema de saúde em termos de acesso, equidade, eficácia clínica e sanitária e eficiência econômica.( 5 ) As Redes de Atenção à Saúde buscam manter relações horizontais entre os serviços de atenção à saúde e a Atenção Primária à Saúde. Por sua vez, os usuários do sistema de saúde transitam por estas Redes para obterem atenção a sua saúde, e dependem da eficácia desta articulação para ter suas necessidades atendidas.( 5 ) Neste sentido, estudos( 6 , 7 ) sinalizam as dificuldades encontradas pelas pessoas com deficiência, quando procuram implementar sua reabilitação, defrontando-se com o desinteresse profissional, o descrédito nas políticas públicas existentes, o sistema educacional despreparado e as dificuldades de acesso.
Portanto, este estudo justifica-se visto que a amputação tem uma grande repercussão social e envolve serviços e profissionais de todos os níveis de atenção em saúde. Concomitante a isso, o cuidado e tratamento em saúde a pessoas amputadas exige que os profissionais de saúde desenvolvam competências específicas acerca da problemática das amputações.( 8 , 9 ) Competências para intervenções no cuidado ao processo de amputação e de reabilitação, contextualizadas e desenvolvidas com baliza nas políticas públicas e sua conjuntura de disponibilidade de estrutura física, de gestão de pessoas e de processos e de serviços de uma rede de assistência articulada e fundamentada nos princípios do SUS brasileiro.
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi analisar a rede de atenção à pessoa amputada na perspectiva dos profissionais de saúde que atuam com pessoas submetidas à amputação.
Trata-se de pesquisa qualitativa desenvolvida no nível de atenção da alta complexidade e compreendeu hospitais públicos dos municípios que compõem a grande Florianópolis, região sul do Brasil, com serviços especializados em traumatologia e ortopedia, fisiatria, cirurgia geral, cirurgia vascular e Centro de Reabilitação.
Os participantes do estudo foram profissionais da saúde envolvidos no cuidado à pessoa com amputação durante a hospitalização e reabilitação. Foram excluídos os profissionais que não aceitaram participar do estudo e que estavam afastados por férias ou licença de saúde, no período da coleta dos dados. Para realizar a análise as falas dos participantes foram codificadas.
Realizadas entrevistas semiestruturadas com os 19 profissionais das áreas de conhecimento: médicos, enfermeiros, assistentes sociais, nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas. As entrevistas ocorreram no local de trabalho de cada profissional, no período de dezembro de 2012 a março de 2013 e foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas e importadas para o software ATLAS Ti, para auxiliar o processo de categorização dos dados. A análise dos dados ocorreu pela análise de Conteúdo. Insere-se em um conjunto de técnicas para análise de processos de comunicação com vistas a aprender o conteúdo emitido e organiza-se em três fases: (1) pré-análise, na qual ocorre a organização do material por meio da leitura a sistematização das ideias iniciais; (2) exploração do material, com o intuito de efetuar a definição das categorias, a categorização e classificação dos dados; (3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação, que corresponde ao momento da análise crítica e reflexiva dos resultados encontrados confrontando com os objetivos traçados no início da pesquisa.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Para apresentar os resultados obtidos na pesquisa, optou-se por elaborar um esquema em forma de fluxo que representa a forma como a rede de atenção à pessoa amputada é mencionada pelos profissionais entrevistados.
Na figura 1, ressalta-se o papel da Atenção Primária em Saúde e Estratégia de Saúde da Família que, em alguns momentos, não participa do processo de rede de atenção no atendimento à pessoa com amputação. Alguns profissionais expressaram que o encaminhamento para reabilitação ocorre em um fluxo direto da alta complexidade, aqui demonstrado pelo elo estabelecido entre os hospitais que executam a cirurgia de amputação e a consulta ambulatorial posterior ao procedimento e o serviço de referência em reabilitação. Por sua vez, a figura 2 representa o preconizado pelo Ministério da Saúde, ou seja, a atenção básica é o elemento coordenador da referência e contrarreferência para os diversos serviços de saúde. Logo, constata-se que os resultados apresentados na figura 1, não condizem com o recomendado pelo Ministério da Saúde.
Figura 1 Fluxograma de rede a partir da visão dos profissionais da alta complexidade; APS - Atenção Primária em Saúde; ESF - Estratégia de Saúde da Família
Das falas dos participantes desta pesquisa emergiram duas temáticas a serem discutidas, sendo elas: Fortalezas da rede de atenção e Fragilidades da rede de atenção.
Na categoria intitulada “Fortalezas da rede de atenção”, é pertinente destacar a alusão à palavra fortaleza, em que se discute os pontos positivos da rede de atenção. Nesta direção, constata-se que o sistema de saúde brasileiro, a partir de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade na atenção à saúde, reconhece e busca garantir à pessoa com amputação as condições necessárias para sua reabilitação.
Emergiram como fortalezas da rede de atenção à pessoa com amputação, as parcerias entre diversas profissões ou trabalhos realizados conjuntamente em uma mesma instituição com foco no encaminhamento para reabilitação. Cabe ressaltar o empenho dos profissionais no sentido de encaminhar as pessoas com amputação para outros serviços de reabilitação, inclusive em municípios mais distantes, com interação com a atenção primária.
Por sua vez, na categoria denominada “Fragilidades da rede de atenção à pessoa com amputação”, a palavra fragilidade é entendida como entraves estabelecidos no decorrer do processo de reabilitação da pessoa com amputação, sejam por incapacidade de atendimento do sistema público ou por desconhecimento do fluxo do processo pelos profissionais nele envolvidos. Um entrave citado pelos profissionais diz respeito ao profissional que é considerado habilitado para realizar o encaminhamento da pessoa com amputação para a referência em reabilitação. No entanto, detecta-se que não há consenso entre os participantes.
O presente estudo teve como limitações, a dificuldade em encontrar ao menos um profissional de cada área de atuação para realizar a entrevista. Os resultados representam o olhar previamente fixado a partir de um nível de atendimento – o hospitalar. Por outro lado, a existência de redes de atenção de atenção à saúde requer o entendimento de processo contínuo, no qual os diversos níveis interagem entre si para a realização do direito de acesso aos serviços de saúde, um dos focos deste artigo.
Diante dos resultados encontrados neste estudo, contatou-se como uma fortaleza significativa o fato das Redes de Atenção à Saúde estarem consolidadas enquanto política pública de saúde. Portanto, elas têm responsabilidade compartilhada nos diferentes níveis de gestão e maior incentivo financeiro.( 10 )
Um ponto positivo apontado pelas falas dos profissionais diz respeito ao entendimento sobre o fluxo dos serviços de rede de atenção. Muitos entendem claramente a necessidade de iniciar o processo de aceitação por parte da pessoa com amputação, no sentido de reabilitá-la para atividades de convívio social e laborativas e demonstram, ainda, conhecimento da rede de assistência oferecida às pessoas que dependem destes serviços. Neste sentido, estudos versam( 11 , 12 ) acerca da importância da formação altamente especializada de profissionais com foco na educação da pessoa com amputação em todo o seu processo de reabilitação, cuja finalidade é reabilitar em tempo adequado e otimizar custos do tratamento. Pela lógica dos autores, profissionais capacitados acerca de como e quando reabilitar beneficia o serviço que custeia o tratamento de preparo de um membro para a colocação de prótese. Cabe lembrar que no contexto da deficiência física adquirida, devem ser consideradas as singularidades da pessoa, variáveis conforme o grau de capacidade e funcionalidade, no sentido de ofertar apoio às pessoas, respeitando suas escolhas, compensações e potencialidades.( 13 - 15 )
Outra ênfase, nas falas dos profissionais, diz respeito ao trabalho da equipe multiprofissional. Isto é, internamente nas instituições, o serviço social trabalha em conjunto com a psicologia, a enfermagem, a medicina e a fisioterapia. Externamente, o serviço social atua em contato com a atenção primária, evidenciando um trabalho significativo nesta rede de atenção.
Ressalta-se o comprometimento demonstrado por profissionais no preparo de encaminhamentos pós-amputação, assim que o diagnóstico é estabelecido. Alguns sinalizaram conhecimento específico ao aporte para reabilitação fornecido pelo sistema público, com destaque para as áreas da fisioterapia e do serviço social. Ainda, demonstraram compreensão acerca da burocracia que permeia o encaminhamento da pessoa com amputação para o serviço de reabilitação.
Por fim, sinaliza-se que o sistema público para reabilitação de pessoas com deficiência disponibiliza a Tecnologia Assistiva, que é todo o arsenal de recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar habilidades funcionais de pessoas com deficiência, promovendo vida independente e inclusão social.( 16 )
Com relação às fragilidades na rede de atenção à pessoa com amputação, muitos dos profissionais entrevistados neste estudo demonstraram desconhecer a referência para reabilitação, repassando tal atividade de encaminhamento e orientação ao paciente para profissionais do serviço social e fisioterapia, o que evidencia a fragmentação do cuidado. Deste modo, cada profissional da equipe de saúde abrange uma parte do atendimento. Enquanto a enfermagem e a medicina ocupam-se com o cuidado da ferida operatória e comorbidades associadas, a fisioterapia atua na orientação de exercícios para preparo do coto para possível protetização e o serviço social interage com o paciente, a família e a rede de atenção para assegurar a continuidade do tratamento.
A fragmentação entre a atuação de profissionais intra e inter institucionalmente se deve à crise universal dos sistemas de atenção à saúde, que foram planejados e desenvolvidos com a ideia de continuidade de uma atuação voltada para resolução de eventos agudos desconsiderando a epidemia contemporânea das condições crônicas. Por conta disto, tem-se uma demanda de situação de saúde do século XXI sendo tratada por um sistema de atenção à saúde instituído no século XX, quando predominavam as condições agudas.( 16 )
As amputações, que ocorrem nos serviços locais desta investigação, são conseqüência na maioria das vezes das doenças crônicas. Logo, a equipe de saúde deve conhecer a rede de atenção a estas pessoas. Nesta perspectiva, observa-se que a literatura internacional de diferentes países aponta boas evidências de que as redes de atenção à saúde podem melhorar a qualidade clínica, incluindo os resultados sanitários, a satisfação dos usuários e reduzir os custos dos sistemas de atenção à saúde.( 14 )
Um destaque para as falas dos profissionais é a inexistência de encaminhamentos para a rede de atenção primária que deveria ser o serviço que mais presta acompanhamento ao usuário visto que com a proximidade das unidades de atenção básica e com o serviço da estratégia de saúde da família, as reais necessidades e dificuldades da pessoa com amputação seriam mais bem conduzidas. E, ainda, parte das complicações advindas de doenças crônicas que evoluem para a amputação pode ser evitada quando ocorre o diagnóstico precoce e institui-se um efetivo tratamento e acompanhamento na atenção primária. A APS é, em tese, o eixo central das RAS por fundamentar-se como primeiro nível de atenção, enfatizando a função resolutiva dos cuidados primários sobre os problemas mais comuns de saúde e a partir do qual se realiza e coordena o cuidado em todos os pontos de atenção.( 17 )
Ao inferir tamanha importância à atenção primária em saúde, faz-se necessário realizar críticas às normativas que organizam os serviços de saúde de atenção básica, média e de alta complexidade. Neste sentido, ao preconizar a atenção primária à saúde como menos complexa que os níveis secundário e terciário, há uma distorção do conceito de complexidade, remetendo a uma banalização da atenção primária à saúde.( 16 ) De outro modo, uma pessoa com amputação ou com potencial risco para evoluir para uma amputação, demanda um complexo processo de assistência à saúde, que irá permear todos os níveis de complexidade. Nesta lógica, pode-se considerar a existência de um paradoxo, na medida em que a figura 2 sinaliza que a atenção primária é a base da pirâmide do sistema de saúde que deve ser voltado para a prevenção de agravos, reduzindo o sofrimento dos usuários e os custos operacionais do sistema de saúde nos níveis secundário e terciário. E ainda, num sistema de rede, contemplando todos os níveis de atenção, a atenção primária é ponto central da articulação entre os serviços existentes e o atendimento à população.
Quando questionados em relação à existência ou não de um protocolo para cuidado de pessoas submetidas à amputação, os profissionais das áreas médica e de enfermagem responderam não existir algo sistemático a seguir. A justificativa é que, na grande maioria dos casos, a amputação é realizada por complicações de doenças vasculares, fato que particulariza ainda mais o cuidado. A existência de protocolo é citada por profissionais do serviço social no sentido de encaminhamento da pessoa para um serviço de reabilitação. Outra informação enfatizada pelos entrevistados é a dificuldade de profissionais da medicina vascular de encaminhar pacientes à referência de reabilitação após realizarem o procedimento. Mas, esta informação é rebatida pelos profissionais ouvidos no centro de reabilitação, ao afirmarem que aceitam o encaminhamento de qualquer médico e que a maior dificuldade enfrentada é o encaminhamento adequado da pessoa com amputação ao centro de referência.
Outro aspecto relevante, neste estudo, evidencia a forma como os profissionais entendem a reabilitação. Muitos a atribuem a um serviço específico, com profissionais habilitados a reestabelecer a condição social da pessoa com amputação, com procedimentos, por exemplo, como a protetização. Mas, é notório que ações de reabilitação devem permear o cuidado desde a condução do tratamento de doenças crônicas até o restabelecimento das condições psíquicas, físicas e sociais da pessoa com amputação.( 18 )
O objetivo central do estudo de compreender a rede de atenção à pessoa amputada foi alcançado, e evidenciou-se, por um lado, o empenho dos profissionais para que seja realizado o cuidado em saúde a esta parcela populacional. Por outro lado, ressaltado os entraves que dificultam prestar um atendimento focado na reabilitação, onde o paciente possa usufruir dos direitos que a legislação lhe assegura sem tantos transtornos e longos períodos de espera. A grande fortaleza existente no contexto da reabilitação é uma legislação consolidada e estabelecida através das Redes de Atenção à Saúde, além do trabalho multiprofissional e inter-instituicional ocorrido em alguns espaços. A principal fragilidade apontada é a falta de conhecimento dos profissionais da alta complexidade sobre as redes de atenção à saúde e ainda a maneira como a reabilitação é vista, não sendo inserida em um contexto de cuidado desde que exista a possibilidade ou ocorrência da amputação.