versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.3 São Paulo 2018 Epub 17-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018ao4146
O serviço de emergência é um ambiente especializado no atendimento de pacientes com afecções agudas, que podem colocar a vida do indivíduo em risco.(1) É um fenômeno mundial a superlotação destes serviços, decorrente, principalmente, da inadequação da demanda, devido à insuficiente estruturação da rede de serviços de saúde, além do aumento no número de acidentes e da violência urbana.(2)
Nas últimas décadas, a superlotação nos serviços de emergência tem se associado à piora da qualidade da assistência, decorrente do estresse, absenteísmo e carência de profissionais nestes locais; da alta rotatividade de pacientes; e do excesso da carga de trabalho, podendo levar à ocorrência de eventos adversos.(3,4)
A prevenção de eventos adversos, com consequente aumento da segurança do paciente, ganhou maior visibilidade a partir da publicação, em 1999, pelo Institute of Medicine (IOM), da obra intitulada To err is human: Building a safer health system. Nesta publicação, foram apresentados dados relacionados ao número de mortes ocorridas nos Estados Unidos decorrentes dos cuidados em saúde, chamando a atenção de organizações governamentais para a qualidade da assistência em saúde e a segurança do paciente.(5)
A cultura da segurança é um conjunto de valores, competências e comportamentos, que determina o comprometimento com a gestão da saúde e da segurança, e, desta forma, substitui a culpa e a punição pela oportunidade de aprender com as falhas e melhorar a atenção à saúde.(6)
A segurança do paciente é um problema grave de saúde pública no mundo. Estima-se que, em países desenvolvidos, um a cada dez pacientes seja prejudicado enquanto recebe cuidados dentro de um hospital. Dentre estes cuidados, a administração de medicamentos pode representar um risco para a segurança do indivíduo.(5)
Um erro de medicação é definido como “qualquer evento evitável que pode causar ou induzir ao uso inapropriado de medicamento ou prejudicar o paciente, em qualquer fase da terapia medicamentosa”.(7) Os erros de medicação estão entre as falhas mais frequentes no cuidado em saúde e podem ocasionar complicações na evolução do quadro, necessidades de novas intervenções, aumento do tempo de internação ou até mesmo incapacidades permanentes e morte.(5)
Estudo realizado nos Estados Unidos demonstrou que cada paciente internado em hospital norte-americano está sujeito a um erro de medicação por dia, sendo registrados, por ano, nestes locais, em torno de 400 mil eventos adversos evitáveis relacionados a medicamentos.(8) Estima-se que os erros de medicação em hospitais provoquem mais de 7.000 mortes por ano nos Estados Unidos, acarretando importantes custos.(9)
No Brasil, as estatísticas em relação às mortes por erros de medicação ainda são escassas. Dados do Instituto para Práticas Seguras no Uso de Medicamentos (ISMP) evidenciam que, no mínimo, 8.000 mortes ao ano são atribuídas a erros de medicação, sendo que falhas ou reações adversas em decorrência da administração de medicamentos corresponderam a 7,0% das internações no sistema de saúde, o que representa 840 mil casos/ano.(10)
A promoção de práticas seguras na administração de medicamentos deve ser constante preocupação da equipe de enfermagem, pois é uma das atividades mais executadas por estes profissionais.(11) Fatores como quantidade insuficiente de profissionais, excesso de trabalho, cargas horárias muito exaustivas, falta de materiais, número elevado de medicações a serem administradas, interrupções durante o preparo e a administração do medicamento, luminosidade precária e excesso de ruídos são condições predisponentes para a ocorrência de erros.(10)
Mesmo que muitos erros de medicação não tragam consequências sérias aos pacientes, eles devem ser notificados e estudados, para evitar sua recorrência e fortalecer um sistema seguro de administração de medicamentos.(12) A identificação dos erros de medicação é fundamental, pois sustenta as decisões necessárias para evitá-los. A presença de uma cultura punitiva perante o profissional que o comete, além de levar à sua subnotificação, reflete que esta responsabilidade não é compartilhada entre o funcionário e a instituição, que deveria prever e oferecer condições adequadas de trabalho para sua equipe.(13)
O serviço de emergência, por sua dinâmica de atendimento, condensa fatores como o estresse e a escassez de profissionais, sendo considerado uma área de alto risco para ocorrência de eventos adversos relacionados com medicamentos, como reações adversas, interações, reações alérgicas e erros de medicação. O potencial de risco para os erros de medicação neste setor é observado, principalmente, pela quantidade de medicamentos prescritos e administrados por diversas vias, dentre elas a endovenosa, que exige a adição de eletrólitos e cálculo de gotejamento, durante fases críticas do atendimento. Entretanto, este risco pode se estender para as demais fases do processo de medicação e se agravar, devido à quantidade de pacientes atendidos nestes locais.(14)
Identificar os tipos e a frequência de erros no preparo e na administração de medicamentos endovenosos em um serviço de emergência.
Tratou-se de um estudo transversal e descritivo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, sob o parecer 1.463.028, CAAE: 52035115.0.0000.5505.
O estudo foi realizado no Serviço de Emergência do Hospital São Paulo (HSP), um hospital terciário, de grande porte e alta complexidade, que atende prioritariamente pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).(15)
A amostra do estudo foi de conveniência e composta por oportunidades de preparo e administração de medicamentos endovenosos realizados pelos profissionais de enfermagem do serviço de emergência, durante o período de coleta de dados.
Os profissionais forneceram autorização para participar da pesquisa antes do início da coleta de dados, sendo que o profissional não tinha ciência do momento em que iria ocorrer a observação.
A coleta de dados foi realizada no período de abril a setembro de 2016, nos quatro turnos de trabalho da equipe de enfermagem, por meio de instrumento estruturado para observação com as seguintes variáveis: categoria do profissional que administrou a medicação, classe e prazo de validade dos medicamentos, e erros encontrados no processo de preparo e administração destes.
Neste estudo, os erros foram classificados em graves ou leves em relação à gravidade clínica. Foram considerados leves os incidentes que tiveram um pequeno ou nenhum efeito no paciente, e graves aqueles que acarretaram redução ou perda permanente na função orgânica do paciente e os que conduziram ao óbito.(16)
Em relação à fase da terapia medicamentosa, os erros foram classificados em:(17) erro de dispensação, quando ocorria distribuição incorreta do medicamento prescrito; erro de omissão, quando o medicamento prescrito não era administrado ou na ausência de registro da execução da medicação; erro de horário, quando o medicamento era administrado fora do intervalo de tempo estabelecido pela instituição; administração não autorizada do medicamento, em caso de administração de medicamento não prescrito, troca de paciente, medicamento errado ou utilização de prescrição desatualizada; erro de dose, nos casos de administração de dose maior ou menor que a prescrita; erro de apresentação, quando a administração do medicamento era em apresentação diferente da prescrita; erro de preparo, quando ocorriam falhas na reconstituição ou diluição incorreta, armazenamento inadequado, ocorrência de falha na técnica de assepsia, identificação incorreta do fármaco e escolha inapropriada dos acessórios de infusão e erro de administração, como falha da técnica de assepsia dos dispositivos e conectores dos acesso venoso, administração por via diferente da prescrita, velocidade de infusão incorreta, administração de medicamento vencido ou com integridade física ou química comprometida, e associação de medicamentos física ou quimicamente incompatíveis.
Para verificar a incompatibilidade entre os medicamentos, foi utilizado o software Truven Health Analytics, Micromedex (Greenwood Village, Colorado, Estados Unidos). Como a dipirona não consta neste software e foi um dos medicamentos mais envolvidos nas observações deste estudo, sua incompatibilidade foi analisada segundo informações contidas na bula.
Por questões éticas e de segurança do paciente, quando a pesquisadora identificava erro potencial ou real, a observação era interrompida imediatamente e a mesma intervia, por meio de orientação da prática correta, junto ao funcionário.
Utilizou-se a análise descritiva. Para as variáveis contínuas, calcularam-se média, desvio padrão, mediana, mínimo e máximo e, para as variáveis categóricas, frequência e porcentual.
A amostra deste estudo foi constituída por 303 observações de preparo e administração de medicamentos endovenosos. As categorias profissionais observadas foram: 60,0% de auxiliares de enfermagem, 32,6% de técnicos de enfermagem e 7,2% de enfermeiros.
As classes medicamentosas administradas por estes profissionais foram: antimicrobianos (24,7%), analgésicos não opioides (23,1%), anti-inflamatórios (10,5%), antieméticos (9,5%), analgésicos opioides (8,9%), antiácidos (5,6%), antiarrítmicos (3,6%), diuréticos (3,3%), anticonvulsivantes (2,9%), vasodilatadores (1,6%), antiespasmódicos (1,3%), cardiotônicos (0,9%), vasoconstritores esplênicos (0,6%), antidiabéticos (0,6%), vasopressores (0,6%), vitaminas (0,3%) e inibidores do catabolismo ósseo (0,3%).
Todos os medicamentos administrados durante as observações estavam dentro do prazo de validade.
Sobre os erros de medicação, não foram constatados erros de omissão; administração não autorizada de medicamentos; e nem de apresentação e dispensação. Já com relação aos erros de dose, 2,6% das medicações foram administradas em dose maior ou menor do que a dose prescrita. No que diz respeito aos erros de horário, 5,6% das medicações não foram administradas respeitando-se a recomendação de não ultrapassar 30 minutos para mais ou para menos em relação ao horário que a medicação estava aprazada.
Durante o preparo das medicações, foram identificados os seguintes erros: falta de higienização das mãos antes do preparo (70,2%); não utilização de técnica asséptica no preparo (80,8%); não identificação correta da medicação (47,9%); não conferência da identificação do paciente (62,3%) e diluição da medicação em volume menor do que o recomendado pelo fabricante (1,6%).
Na etapa de administração, as falhas identificadas foram: não higienização das mãos antes da administração (81,1%); não utilização de técnica asséptica na administração (84,8%) e velocidade de administração incorreta (4,0%). Do total de medicamentos administrados, em 10,8% era recomendada a aferição do pulso, sendo que, em 24,3% das vezes, esta medida não foi realizada.
Em 31,3% das observações, havia mais de uma medicação para o mesmo horário e paciente: 56,8% delas eram incompatíveis, 25,2% ainda não tinham sido testadas e 17,8% eram compatíveis.
O erro no processo de preparo e administração de medicamentos pode resultar em sérias consequências ao paciente e à sua família, além de gerar incapacidades, prolongar o tempo de internação e recuperação, demandar novos procedimentos e intervenções, atrasar ou impedir o paciente de reassumir suas funções sociais e até levar à morte.(18)
Neste estudo, a maioria de todas as oportunidades de preparo e administração de medicamentos foi de antimicrobianos e analgésicos não opioides, sendo que a categoria profissional mais observada e mais sujeita ao erro foi a dos auxiliares de enfermagem. Estudo realizado em um pronto atendimento do Estado do Paraná, com o objetivo de caracterizar a administração de medicamentos injetáveis, identificou que a maioria das prescrições era de analgésicos (29,1%), seguidos dos anti-inflamatórios (26,3%).(19) A prescrição de analgésicos de qualquer classe ou de medicamentos que possuam como efeito secundário o alívio da dor é comum nos serviços de emergência e unidades de pronto atendimento, uma vez que a dor é queixa frequente nestes locais, o que pode justificar tal achado.(20) O fato de terem sido os auxiliares de enfermagem os profissionais mais observados neste estudo corrobora achados da literatura, uma vez que o preparo e a administração de medicamentos são atividades que podem ser compartilhadas entre os membros da equipe de enfermagem e, geralmente, é delegada para esta categoria.(21)
Neste estudo, foi constatada a administração de medicamentos em dose maior ou menor do que a prescrita. Erros de dose, na maioria das vezes, podem ser atribuídos à redação das prescrições médicas, como a utilização de siglas e/ou abreviaturas, ausência do registro do paciente, falta de posologia e omissão da data. A administração de doses incorretas pode resultar em ineficiência do tratamento, prologando o tempo de internação e comprometendo a qualidade da assistência prestada.(22)
No que diz respeito aos erros de horário, neste estudo, foram administradas medicações fora do horário recomendado. Estudos brasileiros encontraram dados alarmantes em relação a este achado: 57,2% das medicações foram preparadas com mais de uma hora de antecedência à sua administração(7) e até 69,7% dos medicamentos foram administrados na hora errada.(23) O preparo e a administração de medicamentos, muitas vezes, ocorrem em horário incorreto devido à prática frequente de otimizar ou adiantar as atividades, o que deve ser supervisionado e desencorajado, já que medicamentos podem ter comprometimento de sua eficácia quando diluídos muito precocemente e não administrados, além de estarem expostos a contaminação, luz, calor e umidade. Outro fator relevante é o tempo e a duração da ação dos medicamentos, que, quando não administrados no horário correto, podem ficar prejudicados, comprometendo a recuperação do paciente.(24)
Nesta pesquisa, durante o preparo e a administração das medicações foram identificados frequentemente falhas na higienização dos profissionais e na assepsia dos materiais. Estudo descritivo, cujo objetivo era verificar a ocorrência erros na administração de antibióticos em uma unidade de terapia intensiva de um hospital de ensino brasileiro e caracterizá-los, identificou ausência de desinfecção dos frascos dos medicamentos a serem ministrados por via endovenosa em 58,4% das vezes, seguida da falta de higienização das mãos em 29,2% das situações pelos profissionais da equipe de enfermagem antes da realização do procedimento.(24) Essa medida individual é simples, pouco dispendiosa e previne a propagação das infecções relacionadas à assistência à saúde.(24)
A não identificação correta da medicação e não conferência da identificação do paciente antes da administração do medicamento foram erros encontrados em observações deste estudo. Estes dois passos - confirmar se é o paciente certo e a medicação certa - são fundamentais para a segurança na administração de medicamentos.(25) Os achados desta pesquisa podem ser atribuídos ao fato de ela ter sido realizada em um serviço de emergência, local onde a demanda de atendimento, muitas vezes, supera a capacidade física e de recursos humanos e materiais, além de, devido ao estado grave do paciente e risco de morte, muitas medicações necessitam de realização rápida e, até mesmo, com prescrição verbal. Apesar deste cenário, estratégias devem ser implementadas, como a dupla checagem pela equipe médica e de enfermagem, para que seja ampliada a segurança na terapia medicamentosa nestes locais.
Neste estudo, identificou-se a diluição da medicação em volume menor do que o recomendado pelo fabricante. Estudo realizado em hospital público no interior de São Paulo, com o objetivo de identificar a frequência de erros ocorridos no processo de diluição de medicamentos intravenosos em unidade crítica, observou que, de 180 doses, 125 (69,5%) apresentaram pelo menos um erro de diluição, não sendo detectada forma de registro e nem avaliação e/ou monitoramento destes erros.(26) Estas falhas devem ser identificadas e corrigidas, como, por exemplo, com materiais educativos e de consulta, pois podem comprometer a eficácia terapêutica dos medicamentos em questão.
Outro aspecto importante em relação à segurança na administração de medicamentos é a velocidade de administração, que, nesta pesquisa, foi incorreta algumas observações. Em revisão da literatura que objetivou investigar a produção científica sobre erros na administração de medicamentos na prática assistencial da equipe de enfermagem, o principal erro de medicação esteve associado à velocidade incorreta na infusão dos medicamentos.(27) Tal achado pode estar associado, quando utilizada a bomba de infusão, aos erros de programação ou ao seu manuseio inadequado, e, quando se utilizou a infusão gravitacional, ao cálculo incorreto de gotejamento e à falta de supervisão por parte da equipe, indicando a necessidade de capacitação dos profissionais envolvidos nesta prática.
Em 10,8% dos medicamentos administrados, era recomendada a aferição do pulso do paciente, sendo que, esta medida não foi realizada em 24,3%. Alguns medicamentos têm o potencial de ocasionar alterações nos parâmetros vitais agravando o estado de saúde do paciente. Desta forma, as boas práticas na administração de medicamentos incluem a vigilância e a monitorização contínua dos pacientes sob risco, o que pode ser potencializado no serviço de emergência, local do nosso estudo, já que os pacientes já se encontram, na maioria das vezes, em estado grave de saúde.(25)
Em 31,3% das observações, havia mais de uma medicação para o mesmo horário e paciente, em relação à compatibilidade destas medicações que foram administradas concomitantemente, mais da metade era incompatível e um quarto ainda não tinha sido testada. Em decorrência das condições clínicas dos pacientes nos serviços de emergência, o tratamento com medicamentos intravenosos é comum, o que pode resultar em inúmeros riscos, devido à complexidade da farmacoterapia intravenosa, sobretudo da administração do medicamento.(28)
A incompatibilidade é uma interação física e/ou química inesperada entre duas ou mais substâncias quando em mistura, que pode comprometer a segurança e a eficácia do tratamento pelo produto formado. Além disso, a incompatibilidade pode implicar em consequências que vão desde uma simples obstrução de cateter até a morte do indivíduo. É necessário que a equipe multiprofissional esteja atenta a este problema, principalmente pelo desconhecimento e pela falta de capacitação dos profissionais.(28)
Este estudo traz como limitação o fato de ter sido realizado em centro único e com tamanho de amostra reduzida, o que pode prejudicar a comparação com outras realidades e a generalização dos resultados. Além disso, a intervenção da pesquisadora, em caso de erro potencial ou real, pode ter causado interferência nos achados da investigação. Entretanto, os resultados deste estudo podem contribuir para que falhas individuais ou no processo de preparo e administração de medicamentos sejam identificadas e que medidas para a prevenção sejam implementadas, como o treinamento e a educação permanente da equipe, o que resulta em aumento da qualidade da assistência e segurança do paciente.
Os principais erros relacionados ao preparo e à administração de medicamentos endovenosos foram a não higienização das mãos no preparo e administração dos medicamentos, e a falta de assepsia dos materiais utilizados para a infusão.