versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.8 Rio de Janeiro ago. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015218.20012015
Nas últimas décadas, o processo de reorientação das políticas públicas do Estado brasileiro tem se destacado pelo realinhamento da direção conferida à sua reforma pela esfera federal, tornando clara a busca pela constituição de redes de atenção à saúde. Especificamente, no que tange à questão das políticas sociais, ocorre uma redefinição da sua função e das possibilidades de administração dos empreendimentos públicos responsáveis pela produção direta de serviços1-3, este movimento em muito decorre das preocupações com custos crescentes na área da saúde.
O crescimento do gasto com a assistência à saúde e o questionamento sobre o uso racional dos recursos públicos, que constituem a principal fonte de financiamento do setor de saúde no país, têm estimulado o debate e o surgimento de propostas de implantação de estratégias para ajustar o acesso ao sistema e melhorar a qualidade do cuidado em saúde.
A saúde configura-se como um dos campos no qual se desenvolvem discussões técnicas e políticas sobre as formas, os projetos e as estratégias de reforma, sendo que a complexidade verificada nesta área se ramifica em todos os níveis de governo4,5. No âmbito dessa complexidade, o hospital destaca-se como uma das principais organizações, devido ao fato de concentrar oferta de serviços de média e alta complexidade e por consumir considerável volume de recursos para a prestação desses serviços6. Nesse sentido, ao se discutir a atenção à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o hospital e os inúmeros aspectos conjunturais a ele relacionados devem ser levados em conta6.
Segundo Barbosa e Gadelha7, ainda que os hospitais possam desempenhar um protagonismo por, dentre outros aspectos, desempenharem atividades mais complexas e reunirem moderna e densa tecnologia, os estudos sobre inovação em saúde nessas organizações, assim como nos serviços de saúde em geral, ainda se encontram em fase embrionária e com significativos desafios. Para os autores, frente a esse quadro, faz-se necessário, inicialmente, adotar como base analítica uma compreensão acerca da inovação nos hospitais. Outro caminho em direção à inovação, segundo eles, seria o de desenvolver novas perspectivas na gestão do hospital e do sistema de saúde em geral. Os mencionados autores consideram que, no caso brasileiro, há diversos desafios a serem superados, principalmente nas organizações hospitalares estatais do SUS, que – por conta de seus limites no desempenho de sua produção de serviços – podem em parte serem vistos como organizações com pouca inovação.
Junto a esse cenário limitante, o hospital costuma ser considerado como uma das instituições que mais resistem à mudança, por conta da pouca interação entre “profissões e departamentos, fragmentação da prática clínica, grande subordinação dos usuários aos serviços e pouco governo dos gestores para atuar sobre as corporações”8.
A administração pública é vista como tendo diminuta capacidade de operação, enfraquecimento decisório, controles inexistentes na prática, além de pouca governabilidade. Este contexto é verificado na gestão pública hospitalar, acarretando envelhecimento do parque tecnológico, falta ou superficial informatização e gestão administrativa antiga. Apesar dos custos crescentes, os hospitais públicos, em sua maioria, demonstram baixa eficiência, resultados e qualidades aquém do esperado3-5.
Segundo Ibañez e Vecina Neto5: “A capacitação profissional para gerir a complexidade de um sistema hospitalar fortemente marcado pela inovação tecnológica e práticas empreendedoras é um dos grandes desafios hoje da gestão pública”.
Além da dificuldade gerencial pública, o próprio processo decisório organizacional, que contém as dimensões da estratégia e da racionalidade administrativa, também é condicionado a certas incongruências. O dirigente deve estar habilitado não apenas acerca dos aspectos formais e previsíveis do comportamento organizacional, mas também deve se familiarizar com as dimensões do informal e do imprevisto, presentes no nas organizações. Para os hospitais, essa competência supõe entender o funcionamento de uma organização profissional, o processo de produção de serviços de saúde, a rede de relações de sua organização com o ambiente, as necessidades da comunidade e a sua distribuição e evolução9,10.
A partir dessas considerações, entende-se que o estudo de hospitais do SUS que ensaiam a implantação de projetos de mudança pode trazer não só a compreensão de estratégias para o enfrentamento de desafios, como também subsídios relevantes para a construção de um planejamento racional e efetivo que auxilie a gestão dos hospitais.
Nesse sentido, entende-se que esses projetos podem subsidiar a melhoria da gestão da clínica no âmbito hospitalar. Segundo Mendes, a gestão da clínica pode ser entendida como:
Conjunto de tecnologias de microgestão da clínica tendo em vista a provisão de uma atenção à saúde de qualidade; centrada nas pessoas; efetiva; estruturada com base em evidências científicas; segura, que não cause danos aos pacientes e profissionais; eficiente, provida com os custos ótimos; oportuna, prestada no tempo certo; equitativa, provida para reduzir as desigualdades injustas; e ofertada de forma humanizada11.
Além desse conceito, neste estudo, entende-se a gestão da clínica como uma forma de organização da atenção à saúde, visando o envolvimento de profissionais de saúde na gestão de recursos dos serviços de saúde a que pertencem, utilizando instrumental da gestão para a construção de processos gerenciais no cuidado à saúde, buscando descentralização e autonomia com corresponsabilização12.
A partir dessas considerações iniciais, o presente estudo objetiva analisar a tomada de decisão da alta administração dos hospitais públicos do Sistema Único de Saúde (SUS) em relação a projetos que foram elaborados com a intencionalidade de mudar a gestão da clínica.
Para que se constatassem inovações produzidas pelos projetos – que não é o escopo deste estudo – não bastaria a análise da tomada de decisão para manter os projetos. Seriam necessárias pesquisas de avaliação de resultado, tendo como parâmetro aspectos que caracterizam o processo de inovação. Se fossem levadas em conta as ideias de Christensen et al.13, por exemplo, deveria se avaliar se os resultados dos projetos expressaram rupturas (aí incluindo o modelo de gestão), por meio da força transformacional, no sentido de terem conseguido melhores práticas para o alcance de melhores resultados que assegurassem disponibilidade e acessibilidade não só no âmbito hospitalar, mas também na articulação deste com o sistema de saúde em geral.
Como embasamento para este trabalho utilizaram-se dois marcos teóricos: Alta Administração, pela perspectiva de Hambrick, e Tomada de Decisão, a qual foi aqui considerada como categoria semelhante ao processo decisório.
Embora o estudo do papel da Alta Administração tenha sido abordado por diversos autores ao longo do tempo, optou-se por utilizar a linha teórica de Hambrick. Foi o estudo desse autor que apresentou uma estrutura teórica mais formal baseada na perspectiva do alto escalão, propondo que os executivos seniores tomem decisões estratégicas com base em suas cognições e valores14-16.
O autor descreve a Alta Administração como sendo formada pela coalizão dominante, isto é, pelo executivo principal e sua equipe imediata. Contribui explicitando que a natureza do trabalho da Alta Administração envolve a definição da visão ou do rumo do empreendimento, assim como a filosofia e os valores da empresa.
Já extensamente estudado no decorrer dos anos, o processo decisório se mostra muito relevante, pois fazer as escolhas certas é ato crucial para todas as organizações, independente se forem públicas ou privadas. Estas escolhas são feitas a todo instante, em todos os níveis e influencia diretamente seu desempenho e sua perenidade. De fato, é impossível pensar a organização sem considerar a ocorrência constante do processo decisório.
Por ser um tema amplo, se tornou necessário neste artigo definir quais aspectos relacionados ao processo decisório seriam utilizados, tendo sido escolhida a racionalidade e o comportamento na tomada de decisão, campos descritos e abordados por Simon e Schoemaker, a abordagem incremental tão extensamente analisada por Etizzioni e Lindblom e a política (Mintzberg). Estes foram escolhidos, pois, no entendimento dos autores, permitem analisar as escolhas que precedem as ações e não somente focam nos métodos e processos que buscam a ação coordenada por parte de um grupo de indivíduos.
Segundo Simon17, o processo decisório é definido como o curso de pensamento e ação que culminará em uma seleção. Esta consiste em escolher cursos alternativos de ação ou, até mesmo, aceitar ou repudiar uma ação específica. O julgamento é inseparável da tomada de decisão, porque faz parte dela e implica análise e ação. Isto significa que análise e ação têm papel de destaque no processo de tomada de decisão: são os meios que permitem definir o problema, avaliar as possíveis alternativas e, finalmente, atingir a decisão17.
Ainda segundo Simon, a racionalidade dita objetiva sugere que o tomador de decisão adeque seu comportamento a um sistema integrado, utilizando-se de uma ampla visão das opções disponíveis, a análise das consequências da escolha e a escolha criteriosa de uma das opções. O comportamento real jamais ocorre da forma descrita, porque, dentre outros motivos, a racionalidade requer conhecimento total e antecipado das consequências de cada alternativa17.
Como há limites no ato de analisar as informações, os indivíduos satisfazem-se com a quantidade que suas mentes são capazes de processar, assim, a decisão não é um processo racional de considerar todas as alternativas possíveis, mas de simplificar a realidade de forma a ajustá-la à mente humana.
Soma-se o fato de que, na prática, as informações aparecem fragmentadas no meio de uma série de tarefas gerenciais, os problemas surgem desestruturados e os sistemas de informação muitas vezes limitam-se a dados passados.
Diante da necessidade de respostas rápidas, o processo decisório ocorre de forma diferente da visão racional, e a intuição baseadas na percepção de variáveis cruciais desempenha papel de destaque. Assim, encontrar soluções não depende apenas de ser racional, de interromper o processo e analisar, mas é necessário experimentar, flexibilizar, adaptar e atuar num processo contínuo de aprendizado17.
De acordo com Schoemaker18, as decisões estratégicas em organizações podem ser examinadas sob quatro modelos: a racionalidade unitária, a organizacional, a política e a contextual. Cada perspectiva enfoca parte da complexa realidade que determina as escolhas estratégicas ou os resultados nas organizações e divergem em relação à congruência de objetivos e à eficiência coordenada.
Por ser perpassado por variáveis abstratas e simbólicas, o processo decisório nunca é genuinamente racional, como um algoritmo uniforme. Os produtos (decisões) podem ser completamente diversos.
A perspectiva incremental surgiu dos questionamentos aos preceitos da visão racional dos processos decisórios, visto como pretensioso e distanciado da realidade prática do tomador de decisão. No modelo incremental, que incorpora pressupostos da abordagem comportamental, os tomadores de decisões só podem ser entendidos como atores sociais, ou seja, elementos dotados de limitações cognitivas que se encontram em contínua interação com outros agentes e com a construção social em que se inserem. A ideia é estruturar processos decisórios de forma que o centralismo dê lugar à manifestação da pluraridade societal.
Os “incrementalistas”, como Etizioni19 e Lindblom20, chancelam que a seleção de valores e a análise empírica não podem se realizar distintamente no tempo e sem influência mútua. Ao contrário, valores e políticas são escolhidos simultaneamente, num processo marcado pela interdependência.
Lindblom20considera que o tomador de decisão, independente dos valores e objetivos, concentra sua atenção em valores marginais ou incrementais.
As discussões sobre as limitações dos modelos de processos decisórios levaram à busca por um modelo que permitisse analisar tanto a tomada de decisão quanto a de não decisão, levando em consideração aspectos como poder, força, influência e autoridade. Surgiu então a proposta de analisar o contexto do processo decisório sob o prisma da questão política. Para Mintzberg21, a política numa organização pode ser analisada como constituinte e situada entre os sistemas que a influenciam. Entre outros, pode-se citar o sistema de autoridade, o de ideologia e o de competência (perícia e técnica). Mintzberg21 concebe como arena política o modo informal com que a organização lida com conflitos observados internamente. Estes são parte integrante das relações de trabalho e, quando ocorrem, são inicialmente reprimidos pelos dirigentes. À medida que se intensificam e se alastram por toda estrutura de poder, tornam-se insuportáveis para a Alta Administração e, às vezes, de difícil controle.
A particular escolha dos autores por esses marcos teóricos-conceituais decorre da necessidade de promover uma maior tessitura à interpretação da intricada realidade na qual os diretores hospitalares estão inseridos, permitindo a análise dos principais motivos de suas tomadas de decisão quanto à manutenção dos projetos. Em outras palavras, pretende-se, compreender – dentre outros aspectos – se a manutenção dos projetos foi motivada pelo desejo de dar continuidade a ações que vinham sendo desenvolvidas; ou porque as estratégias previstas nos projetos vinham obtendo resultados positivos; ou porque as ações ainda se encontravam em curso, não tendo a maturidade suficiente para serem avaliadas em termos de eficiência, efetividade e eficácia.
Este estudo faz parte de uma pesquisa maior cujo objetivo geral foi o de avaliar a implantação de projetos de mudança da gestão da clínica em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS)12. Essa de cunho qualitativo – aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês (HSL) – foi realizada em cinco hospitais do SUS, sendo um de cada região brasileira. Os projetos avaliados foram um dos trabalhos de conclusão do Curso de Especialização em Gestão nos Hospitais do SUS, desenvolvido pelo HSL em parceria com o Ministério da Saúde.
Os projetos, denominados de Projetos Aplicativos (PAs), relacionados às áreas de competência da gestão da clínica, foram elaborados por grupos formados por profissionais de cada hospital participante do curso. O processo de elaboração dos PAs envolveu diagnóstico, definição de metas e ações, participação das equipes dos hospitais, bem como dos colegiados de gestão e dos distritos de saúde.
A seleção dos projetos considerados neste estudo se deu em duas etapas. Na primeira, de 34 projetos de gestão da clínica apresentados no referido curso, foram selecionados 24, segundo o preenchimento dos seguintes critérios: (1) coerência entre a proposta de projeto e a do curso; (2) realização de análise de contexto; (3) clareza da proposta; (4) definição de plano de ação; (5) análise de viabilidade e previsão de mecanismos de monitoramento e avaliação das propostas.
Na segunda etapa, (por que de 24 projetos inicialmente selecionados resultaram 5?) para cada um dos 24 projetos foram atribuídas notas de 0 a 10, por 2 avaliadores, sendo que cada um dos critérios mencionados foram pontuados de 0 a 2. A nota final de cada projeto/hospital resultou da soma das médias alcançadas em cada critério.
Os projetos selecionados foram distribuídos pelas suas respectivas regiões. Em cada, selecionou-se o projeto de média mais elevada. Os hospitais correspondentes aos cinco projetos selecionados (um por região) foram contatados. Os gestores dos hospitais de três regiões não aderiram formalmente à pesquisa com a justificativa que o projeto não tinha sido plenamente implantado. As justificativas para a não implantação foram: “mudanças de gestão” e “falta de apoio institucional” ou “falta de recursos”. Frente a isso, foram escolhidos os projetos que estavam classificados em sequência nas três regiões. Assim, foram contemplados cinco projetos correspondente a cada região do país, com a adesão formal à pesquisa por parte dos gestores dos hospitais. Esses hospitais serão mencionados neste estudo com os códigos Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
A maioria dos PAs selecionados focalizou seus objetivos de mudança em apenas um setor do Hospital e elegeu o de emergência como foco principal da intervenção. Ainda que os PAs tivessem diferentes focos, conforme observa-se no Quadro 1, eles – direta ou indiretamente – relacionavam-se à gestão da clínica, uma vez que no curso a mesma foi desdobrada em três áreas de competência: gestão em saúde, atenção em saúde e educação em saúde.
Além da avaliação dos projetos de aplicação, as estratégias metodológicas da pesquisa maior foram: observação participante nos hospitais, entrevistas semiestruturadas com profissionais de saúde e entrevistas abertas com os gestores dos hospitais.
No presente estudo, de natureza qualitativa, estão sendo focalizadas especificamente as entrevistas dos gestores e os relatórios das observações que não foram submetidos a procedimentos analíticos, mas apenas utilizados para melhor compreender e contextualizar as entrevistas.
A entrevista aberta teve como disparador uma pergunta sobre a opinião do diretor acerca da experiência da implantação do projeto no hospital. No caso de o atual diretor não ter participado do início desse projeto de aplicação, foram entrevistados, na medida do possível, os precedentes com essa experiência. Neste contexto, foram obtidas nove entrevistas, sendo duas no Nordeste, uma na região Sudeste, duas no Centro-Oeste, uma no Norte e três na região Sul. Os gestores aqui são nomeados pela região à qual pertence o seu respectivo hospital.
As entrevistas foram analisadas a partir do Método de Interpretação de Sentidos22. Esse método baseia-se em princípios hermenêutico-dialéticos que buscam interpretar o contexto, as razões e as lógicas de falas e ações e as inter-relações entre grupos e instituições. Assim, busca não só a compreensão dos sentidos subjacentes às entrevistas, mas também a contextualização da lógica dos mesmos.
Na exploração dos textos produzidos pelas entrevistas, foram utilizadas as seguintes questões: Quais os aspectos que contribuíram para a tomada de decisão pela manutenção dos projetos implantados? Como os gestores avaliam a manutenção dos projetos implantados? Quais são as diferenças e os pontos comuns entre as tomadas de decisão ocorridas nos cinco hospitais estudados?
Em termos de trajetória analítica, foram seguidos os seguintes passos: (a) leitura geral das entrevistas, buscando uma compreensão geral das mesmas; (b) identificação de trechos relacionados às questões avaliadas; (c) análise dos sentidos explícitos ou subentendidos nos trechos das entrevistas e (d) elaboração de síntese interpretativa por questão, articulando os sentidos dos entrevistados com os marcos teórico-conceituais e os estudos relacionados ao assunto.
Os hospitais atendem exclusivamente a usuários do Sistema Único de Saúde. São em sua totalidade de grande porte (mais do que 150 leitos) e se constituem em referências assistenciais importantes para regiões de saúde onde se inserem (Quadro 2). Em certos casos essa referência tem abrangência estadual. Isto é explicado pelo fato de todos apresentarem mais de uma habilitação em alta complexidade pelo Ministério da Saúde.
É também comum entre eles a presença de ambulatório de especialidades. Apesar disso, todas as unidades apresentam como principal porta de entrada de pacientes o setor de urgência e emergência, o que pode explicar porque dois dos projetos voltados à gestão da clínica tenham sido aplicados na reorganização desse importante setor de atendimento.
Em sua constituição como hospitais públicos, há representantes da esfera da gestão estadual e municipal, não estando a federal representada nesse conjunto. Ainda no que se refere à gestão, não há uniformidade quanto à figura jurídica que os qualifica. Há serviços que se caracterizam pela administração direta e outros pela indireta, por meio de organizações de saúde ou fundações de direito público.
Como peculiaridades, observa-se uma diversidade nas linhas de cuidados consideradas prioritárias de atendimento. Há hospitais cuja concentração se volta para a atenção ao trauma, alguns com presença marcante da linha de cuidado em oncologia, outros com ênfase em cardiologia intervencionista e outros, ainda, com forte traço da ginecologia/obstetrícia. Este último aspecto é confirmado pela diversidade das tipologias de habilitação das unidades, que variavam conforme suas linhas de cuidado prioritárias.
Considerando as perspectivas expressas nas entrevistas, constatamos que os gestores percebiam relevantes mudanças promovidas pelos projetos no contexto hospitalar, corroborando uma das premissas da gestão da clínica, que é aprimorar a organização hospitalar orientando o processo de cuidado no sentido da atenção integral ao paciente, de forma humanizada23,24.
A gente conseguiu melhorar [...] Hoje nós temos uma equipe mais equilibrada de médicos [na emergência], a gente tem uma equipe que compreende bem o que entra e o que não deve entrar (Nordeste/2)
O que a gente busca é o que?, uma qualidade de atendimento, com humanização e conhecimento científico. Então a gente viu que isso é possível. (Norte)
A gente melhorou muito a estrutura do hospital. Então quando você consegue fazer com que a equipe seja responsável você tem um resultado muito mais significativo (Sul/3)
Outra dimensão da gestão da clínica, presente nas entrevistas, o envolvimento de forma coordenada e sistematizada dos profissionais de saúde na gestão dos recursos dos hospitais a que pertencem, também pôde ser verificada23,24. Os hospitais Centro-Oeste e Norte destacaram que ocorreram expressivos avanços em eficiência administrativa e otimização dos recursos públicos, com consequente ganho social.
A família poder levar o paciente para casa. É muito importante para a família, para o paciente e para o hospital. Libera um leito [...] desocupa o leito [...] então a gente vê as reinternações, que diminui muito (Centro-Oeste/1).
Os hospitais Sul e Sudeste relataram um evidente crescimento profissional do corpo clínico, corroborando a ideia de que se buscou o desenvolvimento de capacidades de liderança das equipes de gestão do hospital, além da construção de protocolos, fluxogramas e diretrizes baseadas em princípios éticos e evidências científicas24-26.
A instituição que eu conheci, quando eu voltei, funcionava, do ponto de vista administrativo, diferente e a assistência tinha se reorganizado realmente na gestão clínica do cuidado (Sudeste/2).
Quando a gente iniciou esse processo... vinha em um processo de todos participarem, da gestão participativa acontecer de fato e não só fazer gestão participativa no discurso (Sul/1).
Os dirigentes apresentaram motivações bastante semelhantes quanto aos fatores que influíram na escolha pela manutenção do projetos.
Após análise das entrevistas, foi possível verificar que a maioria dos gestores utilizou a racionalidade técnica como a principal fundamentação para tomada de decisão17,18,27,28. Pode-se verificar que tomaram decisões num contexto organizacional limitado e fragmentado, o que, em última análise, tornou impossível a racionalidade da forma como gostariam, e tiveram que enfrentar rapidamente os problemas, manejando suas consequências. Os dirigentes, indubitavelmente, gostariam de deter maior controle do contexto organizacional, planejando e “ajustando” melhor a realidade, porém foram, muitas vezes, surpreendidos pela desarmonia do contexto organizacional. Vale ressaltar que, por vezes, um mesmo gestor demonstrou a utilização de diferentes vertentes do processo decisório, a depender do tipo de problema enfrentado.
Os depoimentos dos hospitais Nordeste e Centro-Oeste podem indicar uma evidente utilização do modelo de ator unitário de Schoemaker18, evidenciando uma atitude mais centralizadora na tomada de decisão, decisão de “cima para baixo”. Apesar de não apresentarem uma perspectiva narcisista, os diretores entendem que tomam decisões que têm uma forte influencia na alocação, desenvolvimento e desdobramentos dos recursos organizacionais, sejam eles humanos ou não29,30.
Comecei a imaginar que determinadas ações só poderiam ser feitas se eu estivesse em um determinado posto (Nordeste/1).
Na época, eu estava como diretor técnico e a gente tinha a possibilidade dessa governança (Centro-Oeste/2)
Frente ao reconhecimento, por parte dos profissionais, das mais diversas restrições e dificuldades vividas e como forma de atingir os objetivos institucionais, seus depoimentos sugerem uma aproximação com a perspectiva do modelo organizacional de Schoemaker, integrando e articulando o trabalho de cada setor do hospital18. Esse modelo foi utilizado pelos hospitais Sul e Sudeste.
Você vai lá e todo mundo tem que explicar o resultado que está ali na parede. Porque... quer dizer... a responsabilização era da equipe inteira. (Sul/1).
Isso conseguiu ficar muito inserido dentro da instituição. Ela trabalha como um todo. (Sudeste/1).
Considerando a presença de um imaginário de descrédito por parte dos hospitais públicos associado à busca pela operacionalidade, o aparecimento de resultados positivos relacionados aos projetos foram apontados como fatores críticos para que estes fossem mantidos. Na visão dos gestores, os resultados positivos teriam uma dupla ação, de aumento da autoestima institucional e, consequentemente, de estímulo aos servidores e de arrefecimento das pressões políticas externas.
O estímulo e a participação dos servidores foram destacados nos hospitais das regiões nordeste, centro-oeste e sul como muito relevantes para a concretude e a manutenção dos projetos, visto que, por vezes, eles descrevem ser necessário um esforço adicional que não estaria presente na descrição de trabalho dos profissionais. Este aspecto corrobora a noção de que os indivíduos se ligam às organizações por vínculos afetivos, imaginários e inconscientes31.
E nós começamos com uma equipe de voluntários... na verdade eu ficava na direção e ficava no SAD [Serviço de Atendimento Domiciliar] fazendo de tudo um pouco (Centro-Oeste/1)
No Hospital Sul, percebemos mais claramente a presença do conceito de Hambrick e Mason14 de que a alta administração deve dar o rumo da instituição, conferindo autonomia para que se possa atingir objetivos específicos e bem delimitados. As características e as atitudes da Alta Administração são vistas como determinantes, em última análise, da performance organizacional. Neste campo, o gestor descreve que o estímulo aos servidores ocorre através da divulgação, com clareza, dos propósitos e do exemplo conferido pela própria direção.
O diretor tem que dar o tom... o diretor tem que dar o foco... porque a gente também mostrava que apesar de todo o processo que a gente fazia para o nosso cliente... nós também tínhamos como um dos clientes mais importantes nosso profissional. Então, a gente trabalhava muito mostrando assim... o que podia melhorar nesse sentido (Sul/1).
Como anteriormente referido, um mesmo gestor utilizou-se de diferentes abordagens nas tomadas de decisão, este foi o caso das regiões norte e nordeste. Nestes casos, também associamos seus depoimentos à abordagem incremental19,20,32.
Ambos descreveram a utilização de intuição baseada na percepção de variáveis marginais ou subjetivas, como a ambiência.
Tinha bem mais dificuldades que hoje, que não tinha um pronto socorro ambiente que tem hoje... hoje existe até um ambiente hospitalar. (Norte/1)
A utilização de apoio político e da comunidade foi fator significativo nos campos do nordeste e do centro-oeste. Os gestores pontuaram que a manutenção dos projetos foi mais natural a partir do ponto em que a população foi inserida nos processos de adaptação e flexibilização dos projetos, indo ao encontro da ideia de gestão participativa e compartilhada como um caminho possível e necessário para o fortalecimento do sistema como um todo23,33.
A prática na gestão hospitalar pública pautada num aspecto mais técnico pode ser verificada através da apropriação de conceitos e ferramentas de gerência. Esta apropriação foi apontada nas entrevistas como capaz de promover um maior entendimento dos propósitos e do seguimento dos projetos pela instituição como um todo, assim como promover, do ponto de vista político, uma construção de base participativa, como os espaços de educação permanente e de discussão dos resultados com a direção. Estes movimentos de diálogo, análise e elaboração de soluções frente às demandas das pessoas afetadas pelos projetos, na perspectiva dos gestores, foram de grande relevância para o adensamento da participação dos servidores.
Para Barbosa34, a crescente complexidade dos hospitais e de seu entorno não permite a existência ou a persistência de decisões apenas fundamentadas no bom-senso e nas experiências passadas. A competência seria determinada por um conjunto de fatores pessoais, inatos e intuitivos, além da experiência, mas também através do desenvolvimento de conhecimentos e habilidades. Dussalt35 diz que impõe-se desenvolver a competência gerencial entendida como nível do saber (teorias, conceitos, dados), das habilidades (utilização do saber para analisar, organizar) e das atitudes (agir ético).
Ter a informação, as pessoas saberem que tudo que a gente faz. Você tem que ter dados, você tem que ter uma casuística, você tem que ter uma medição daquilo. Você tem que saber daquilo (Norte/1)
Mas acredito que o sucesso da gente ter avançado é que a equipe sempre ponderava em cima de dados, fatos e questões reais (Sul/1)
Além dos aspectos intersubjetivos, políticos e relacionais, outros mais tangíveis, como a realização de pré-teste e as modificações nas estruturas físicas, também apareceram como importantes para o seguimento dos projetos.
As declarações convergem para a opinião de que a manutenção dos projetos, apesar de benéfica, é tão ou mais difícil que a própria implementação.
Os movimentos sentidos pelos gestores em oposição ao ato de continuidade são constantes, dentro e fora do ambiente hospitalar.
No contexto hospitalar, as dificuldades enfrentadas se relacionam, principalmente, com as mudanças ocorridas e a consequente resistência dos servidores, inclusive, com a presença dos sindicatos e conselhos. Este aspecto reafirma a ideia de Minztberg21 de que a política em organizações deve ser considerada como constituinte e situada entre os sistemas que influenciam a organização.
A rotatividade foi muito grande. Aquelas pessoas que a gente treinou já não são as mesmas. (Nordeste/1)
Um ponto muito estudado e debatido nas últimas duas décadas, a relação negativa entre a falta de comunicação efetiva entre os setores e o desempenho institucional, também esteve presente nas entrevistas29.
Apesar da gente estar vivendo um momento de muita comunicação, para tudo quanto é lado, falta comunicação ainda dos projetos de educação que a gente tem... mas quem está na linha de frente, alimentando aquilo não se sente parte daquele projeto. (Nordeste/1)
Os gestores dos cinco hospitais foram taxativos em relacionar as mudanças políticas externas às instituições como um fator significativo. A interferência política nas decisões hospitalares se tornam presentes em todo o processo de implementação e manutenção dos projetos.
Porque não existe uma continuidade em nada aqui. Não existe continuidade de governo,... por isso que eu acho que a gente não anda de uma forma tão veloz como gostaríamos. Essa dificuldade de continuidade que acho que atrapalha demais. (Nordeste/2)
Uma coisa que é comum no público é que muda o gestor, muda tudo. (Norte/1)
Agora com essas descontinuidades de gestão... acabou dando uma quebrada, uma arrefecida... Porque assim... de uma forma ou de outra ele não dava autonomia para o diretor. Tinha que nomear as pessoas de confiança dele, tirar as que estavam. (Sul/2)
Essa discussão, aí ela depende do querer ou não querer do político que está no cargo no momento... Então, nos dependemos dos rumos políticos. (Centro-Oeste/2)
Além da influência política, a eterna luta entre a pressão por produção e a qualidade dos serviços prestados se fez presente nos discursos dos gestores, se tornando mais evidente quando o aparecimento dos resultados é mais lento. Neste universo de estudo, pôde-se depreender que o imaginário imediatista dominante na sociedade moderna faz efeito contrário à manutenção dos projetos, pois afeta os indivíduos, com ênfase nos políticos, que não conseguem ter uma visão além do presente imediato36. Outros fatores como a morosidade de resposta do sistema às demandas dos hospitais, a burocracia no repasse e no financiamento e as mudanças de servidores também são apontados como obstáculos frequentes à continuidade dos projetos.
As soluções singulares que os projetos trouxeram favorecem sua continuidade, assim como, o próprio amadurecimento dos mesmos confere caráter duradouro na ótica dos gestores.
Se entrar um secretário e falar que ele não quer nada disso, ele não vai ter sucesso. Porque são avanços perceptíveis e facilitou a vida das pessoas. (Norte/1)
Acho que não tem mais volta, não tem mais volta... é o caminho, acho que não tem outra lógica assim.(Centro-Oeste/1)
A análise das entrevistas nos permitiu verificar que muitos problemas são comuns aos diversos empreendimentos hospitalares, e, concomitante, foi possível verificar que soluções já foram encontradas, como, por exemplo, a questão da rotatividade de servidores, marcante na entrevista Nordeste, e que foi adereçada no Norte.
Então a gente já começa a ter bons resultados nas pessoas... e a coisa mais importante de ver como funciona é quando as pessoas não são... a pessoa não é o mais importante, é o grupo que é mais importante... quando é uma coisa personificada não vira. (Norte/1)
Os problemas de comunicação entre a alta administração e a assistência também foram apontadas como relevantes no campo nordeste, o contraponto foi verificado nos depoimentos do Centro-Oeste e do Sul:
E tinha um grupo de profissionais, que eram essas pessoas que foram fazer o curso, que ocupavam posições estratégicas dentro do hospital. E que, na realidade, esse grupo que otimizou a implantação do serviço (Centro-Oeste/1).
Nós [direção] tínhamos também tarefas a cumprir e indicadores para apresentar. A gente trabalhava muito... os nossos tinham que estar verdinhos... [resultados acima das metas estabelecidas] porque exatamente... para mostrar que a gente estava trabalhando e por isso a gente estava cobrando deles (Sul/1).
Como semelhanças entre os campos, podemos destacar as dificuldades relacionadas às mudanças políticas e a presença de resultados positivos que auxiliaram na continuidade dos projetos. Uma peculiaridade que não chega a causar estranheza foi o fato dos campos nos quais os projetos adereçaram as portas de entrada e de saída dos pacientes, enfrentarem problemas com a falta de alinhamento da rede SUS, nas diferentes esferas, municipal, estadual e federal. Talvez este possa ser considerado como ponto de partida para outros estudos.
A partir das perspectivas dos gestores, este estudo nos proporciona elementos que auxiliam no entendimento de parte da realidade enfrentada por esses profissionais nos hospitais públicos do Sistema Único de Saúde, no que tange à continuidade de projetos de gestão da clínica.
Pode-se evidenciar que a tomada de decisão é prática de enorme dimensão que contempla aspectos racionais, como uso de técnicas de gestão e da capacidade de análise, interpretação e síntese, e aspectos subjetivos, como seleção de valores e vivências pessoais, visto que os problemas gerenciais são mais amplos, ambíguos, complexos e menos estruturados na prática.
A tomada de decisão favorável à manutenção de projetos é, em si, um ato complexo e indissociável das variáveis do meio, porém grande parte das dificuldades e resistências encontradas pelos sujeitos deste estudo guardam similitudes.
Os aspectos técnicos, como melhora dos fluxos médico-administrativos e aumento da eficiência hospitalar não aparecem como os únicos critérios analisados em prol da continuidade dos projetos, começam a aflorar quesitos como uma maior participação da comunidade e dos próprios profissionais na construção de soluções aos problemas do cotidiano6. Como em outros estudos, os sujeitos da pesquisa demonstram que a falta de plena autonomia hospitalar, grande dependência de decisões políticas externas e a ausência de respostas tempo-oportunas por parte do sistema de saúde aparecem como fatores relevantes nas decisões dos gestores9,37,38.
Essas considerações, por serem produzidas numa perspectiva de pesquisa qualitativa, não se prestam a uma generalização. Podem, entretanto, contribuir para a formulação de categorias analítica-conceituais que sirvam de ponto de partida para futuros estudos acerca do assunto.