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Tomando decisões na atenção à saúde de crianças/adolescentes com condições crônicas complexas: uma revisão da literatura

Tomando decisões na atenção à saúde de crianças/adolescentes com condições crônicas complexas: uma revisão da literatura

Autores:

Herminia Guimarães Couto Fernandez,
Martha Cristina Nunes Moreira,
Romeu Gomes

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.6 Rio de Janeiro jun. 2019 Epub 27-Jun-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018246.19202017

Introdução

A pediatria vem passando por mudanças em que o aumento das doenças crônicas infantis impacta na atenção hospitalar. As hospitalizações por condições crônicas complexas de saúde (CCCS) no Brasil, representaram, no ano de 2013, 21% do total dos 56 mil leitos pediátricos1. Em 2008, 47,6 % das internações pediátricas de hospitais do município do Rio de Janeiro (RJ) foram por doenças crônicas2. Em 2006, em um ambulatório especializado de pediatria de um hospital de referência no RJ, 56,3% das crianças e adolescentes tinham dependência de dois a quatro diferentes tipos de tecnologia3. No mesmo hospital, em 2015, 87,2% das internações de pediatria foram por CCCS, em função de malformações congênitas e anomalias cromossômicas4. Tais pesquisas sinalizam um alerta para a mudança do perfil epidemiológico da atenção pediátrica, com presença das CCCS e multiplicidade de demandas e decisões a serem tomadas.

A CCCS delimita um grupo de crianças que vive com dependência de cuidados de saúde especializados, necessidades de reabilitação, comprometimento de múltiplos sistemas e necessidade de tecnologias de suporte à vida5-7.

Reconhecer as necessidades dessas crianças significa planejar sua atenção e enfrentar obstáculos de acesso aos serviços de reabilitação e às tecnologias de suporte às funções de alimentação e respiração. Isso inclui considerar a multiplicidade de atores e interesses envolvidos no seu cuidado, retirando-as da invisibilidade.

Nosso objetivo é sistematizar uma definição de tomada de decisão (TD) na condução do cuidado prestado às crianças com condições crônicas de saúde em um universo de negociação entre famílias e profissionais de formações e especialidades diversas, como ela se dá e quais aspectos ela integra, e as dificuldades que atravessam as decisões. A TD é entendida por nós como um processo do qual participam pacientes, seus familiares e profissionais de saúde, envolvendo um fluxo de troca de informações, seguido pela decisão e implementação do cuidado8-10.

Essa discussão pode contribuir para uma maior visibilidade das necessidades dessas crianças, prevenindo possíveis vulnerabilidades no processo de cuidado que é intenso, permeado por muitas interpretações, que gera sobrecarga para suas famílias, e se desdobra nas dificuldades que os profissionais envolvidos no trabalho com elas enfrentam.

As seguintes questões guiaram a análise da literatura: 1) Quais são as características da TD relacionada ao cuidado prestado às crianças com condições crônicas? 2) Quais são os atores e principais debates envolvidos na produção acadêmica sobre TD na atenção a esse grupo de crianças? 3) Quais são as funções atribuídas aos atores envolvidos na TD e quais suas principais dificuldades?

Metodologia

Realizamos uma revisão da literatura, entendida como estudo exploratório da produção do conhecimento acerca de um assunto ou tema11,12. O levantamento foi efetuado em abril de 2016, nas bases PubMed e Lilacs com uso dos descritores seguindo parâmetros do Decs13, listados no Quadro 1.

Quadro 1 Descritores utilizados para busca13. 

Descritores Doença crônica (“chronic disease”) Tomada de decisões (“decision making”) criança, pré-escolar, adolescente, lactente, recém-nascido (child OR “preschool child” OR adolescent OR infant OR “newborn infant”)
Definições Doenças que têm uma ou mais das seguintes características: são permanentes, deixam incapacidade residual, são causadas por alteração patológica não reversível, requerem treinamento especial do paciente para reabilitação, pode-se esperar requerer um longo período de supervisão, observação ou cuidado. Processo de realizar um julgamento intelectual seletivo quando se é apresentado a várias alternativas complexas consistindo de diversas variáveis, e que geralmente leva à definição de um modo de agir Sinônimos: Tomada de decisão conjunta, compartilhada. Nota de Indexação Português: é diferente de “Tomada de decisão clínica”, definida como processo de formulação de um diagnóstico baseado no histórico médico-clínico e em exames físicos ou mentais e/ou a escolha de uma intervenção apropriada. ou de uma ideia. Considerando a existência de uma fragmentação por faixa etária, o Decs delimita 5 faixas: recém-nascido, de zero a um mês de vida; lactente, de 1 a 23 meses de vida; pré-escolar, entre 2 e 5 anos de idade; criança entre 6 e 12 anos; adolescente, de 13 a 18 anos de idade.

Contamos com apoio de um bibliotecário adequando os termos de busca. Consideramos publicações com acesso aos resumos, em espanhol, inglês ou português; excluímos as que se referiam a doenças crônicas em jovens e ou adultos assim como as que diziam respeito à TD médica sobre diagnóstico de determinada condição crônica ou sobre seu diagnóstico diferencial. Assim a revisão foi relacionada ao processo de cuidado das crianças com condições crônicas e não as relativas ao diagnóstico e/ou diagnósticos diferenciais de doenças crônicas. Selecionamos artigos que destacaram os sujeitos envolvidos com essa TD e não as doenças, sua etiologia e clínica diferencial. Quanto ao limite temporal, estabelecemos o ano de 2000, marco de um novo século, no qual a OMS14 reconhece a necessidade de novas orientações para cuidados com doenças crônicas.

Inspirada em Moreira et al.12 e Gomes et al.11, a análise do acervo ocorreu em dois movimentos analíticos: (a) descrição do conjunto dos artigos, considerando as seguintes variáveis: data e país de publicação, desenho metodológico, origem, perfil das crianças e seus diagnósticos, sujeitos participantes e objetivos do artigo; (b) adaptação da análise de conteúdo temática proposta por Bardin15 com leitura exaustiva e crítica do conjunto dos artigos, identificação dos temas e dos sentidos atribuídos a eles nos diferentes textos e agrupamento de núcleos temáticos que sintetizassem a produção11,12. Esse material foi interpretado à luz de duas perspectivas teóricas que evocam dimensões transversais ao campo da atenção à saúde: a de Anne Marie Mol8,16 com sua análise sobre as duas lógicas que se desenham a partir dos atores e suas redes no que se refere a atenção às doenças crônicas, a lógica da escolha e a lógica do cuidado; e a perspectiva das trocas de bens de cuidado e bens de cura no diálogo entre Moreira17 e Martins18, ambos acionando a Teoria da Dádiva proposta por Mauss.

Resultados

Inicialmente selecionamos 286 artigos, cujos resumos foram lidos. Após aplicação dos critérios de exclusão, reunimos 69 artigos, lidos na íntegra. Destes, foram excluídos: aqueles cujos desenhos da pesquisa não possuíam descrição clara da metodologia utilizada; os baseados em opiniões pessoais; os textos que se referiam a projeto de pesquisa não iniciado; os que não tratavam do processo prático de TD como os ensaios teóricos; e aqueles que abordavam pesquisas que envolvessem adultos com doenças crônicas junto com crianças. Restaram 33 artigos que constituíram o corpus analítico. O Quadro 2 classifica os dados dos 33 artigos.

Quadro 2 Descrição dos dados encontrados nos artigos. 

Participantes da pesquisa Doença Método Ano País Área Objetivo
Pais e prof saúde DII e AIJ Quali 2015 EUA Med 26 Entender processo TD dos pais para tratamento de doenças crônicas
DII e AIJ Quali 2014 EUA Med 27 Entender como são tomadas as decisões sobre tratamento de doenças crônicas
CRIANES Quali 2013 EUA Med 29 Descrever fatores que influenciam parcerias pais/medico em troca de informações e TDC quando CRIANES são referidas a subespecialistas
Prof Saúde DII e AIJ Survey 2016 EUA Med 28 Examinar o uso de TDC por pediatras e sua percepção de facilitadores e barreiras para TDC com pais e pacientes sobre início de tratamento
CCCS Survey 2014 EUA Med 48 Identificar desafios existentes e potenciais estratégias para prestar formação em cuidados complexos para futuros pediatras
Doença crônica Quali 2013 Austrália Enf 50 Explorar percepção de enfermeira do empoderamento dos pais na doença crônica
Doença crônica Rev lit 2009 EUA Psic 52 Analisar e sintetizar pesquisas sobre comportamento dos pediatras na gestão da doença crônica e sua relação com adesão ao tratamento
As que levaram à morte Quanti 2003 Arg Med 30 Descrever modos de morte e fatores envolvidos na TD de procedimento que limitam a manutenção da vida.
As que levaram à morte Quanti 2001 Brasil Med 44 Determinar prevalência dos diferentes modos de morrer e identificar limites terapêuticos em pacientes de uma UTI pediátrica
Diabetes, asma, eczema, epilepsia, dependência de O2, de ventilação, de apoio nutricional, cardíaco e metabólico Quanti 2000 UK Enf 31 Explorar papel e uso das competências da enf em relação as necessidades físicas e psico-sociais de crianças e examinar como essas habilidades são utilizadas na TD em relação ao cuidado de crianças e suas famílias com doença crônica na comunidade
Prof saúde crianças e seus pais LLA, asma, DM, FC, obesidade Quanti 2015 EUA Med e Enf 47 Compreender natureza da participação da criança na gestão dos cuidados de sua doença.
CCCS Quali 2013 EUA Med 49 Identificar temas predominantes discutidos na consulta de cuidado paliativo pediátrico de pacientes com CCCS cuidados por generalistas pediátricos
AIJ Quali 2007 UK Antrop 42 Explorar a experiência da vida cotidiana e do lidar com a doença de crianças que vivem com AIJ.
DM1 Quali 2006 UK Sociol 57 Investigar opiniões das crianças sobre seu diabetes, sua participação na gestão de seus cuidados, seus gostos e desgostos diários, realizações e problemas
Prof saúde, adolescentes e seus pais DII Quali 2009 Israel Med, ci soc 32 Estudar formas como decisões de tratamento são alcançadas na prática, durante encontros em que gastro pediatras comunicam más notícias e seus reflexos para pacientes, familiares e relação médico paciente
Pais e Crianças FC, DM e asma. Quanti 2012 EUA Psic 33 Desenvolver instrumento para medir envolvimento na TD sobre o manuseio da sua condição de saúde em crianças e adolescentes com FC, DM e asma.
Asma, DM tipo1 ou FC Quali 2009 EUA Psic 34 Explorar conceito de TD colaborativa na perspectiva das crianças e seus pais e gerar itens para nova medida de relatório pai- criança da TDC
Pais e adolescentes AIJ/Crohn Quali 2016 EUA Med 36 Comparar fatores considerados pelos pais com os considerados pelos adolescentes na TD sobre tratamentos de doenças crônicas.
FC, AIJ, DII, anemia falciforme Survey 2008 EUA Med 35 Descrever as preferências sobre tomada de decisões de tratamento dos adolescentes com doenças crônicas e seus pais, e em que medidas eles concordam.
Crianças Disturbio hemorrágico Quali 2012 Can Enf 51 Analisar como crianças entendem cuidado centrado na família e seu papel inerente a esta abordagem
Adolescentes Crohn e AIJ Quali 2013 EUA Med 37 Entender papéis e preferências de adolescentes nas TD de doenças crônicas
Câncer Rev lit 2011 EUA Multiprof 38 Resumir literatura disponível sobre aspectos decisórios da preservação da fertilidade entre pacientes adolescentes oncológicos e recomendar estratégias para sua participação.
Saudáveis e com anemia falciforme, HIV, câncer, asma Survey 2004 EUA Psic 43 Explorar se existem diferenças entre adolescentes com doenças crônicas e saudáveis no que diz respeito à suas atitudes sobre questões de fim de vida
Doenças crônicas Rev lit 2014 Brasil Saúde coletiva 12 Analisar produção do conhecimento sobre doenças crônicas em crianças/ adolescentes, visando contribuir para sistematização de princípios de cuidados voltados para esses sujeitos.
Saudáveis e com asma, DM, epilepsia ou eczema Quanti 2010 UK Enf 56 Determinar se o ponto de vista das crianças com uma doença crónica em relação aos ensaios clínicos era diferente do das crianças saudáveis
DM e doença onco hematológica Quali 2003 EUA Enf 54 Descrever compreensão de crianças dos adolescentes sobre pesquisas e fatores socioculturais que as influenciam a envolverem-se e a continuarem a participar de pesquisas clínicas
Pais CRIANES Quali 2015 Italia Med 45 Explorar experiências e percepções dos pais em informação, gestão e continuidade relacional de cuidados para CRIANES após sua alta hospitalar
Pais Talassemia Quali 2015 Tail Enf 55 Projetar, implementar e avaliar um Programa de Empoderamento Familiar orientado pelo Modelo de crenças de doenças.
CRIANES Survey 2015 EUA Enf, Med, Psi 39 Analisar se a forma como pais relatam TDC varia com tipo de necessidade (física, mental ou ambas) e se cuidado médico em casa atenua essas diferenças
Crônicas Survey 2014 EUA Med 46 Explorar experiência dos pais e cuidadores seu conhecimento e preferências em relação as diretivas antecipadas para crianças com doenças crónicas
Risco de vida Quali 2013 EUA Med 40 Identificar e ilustrar heurísticas comuns usadas por pais de crianças com doenças com risco de vida quando confrontando e tomando decisões médicas
Câncer Quali 2011 EUA Enf 41 Analisar como pais que não vivem mais juntos tomam decisões de tratamento para seus filhos com Câncer
DM, asma, epilepsia, IRC, Cancer e doenças que limitam a vida Quanti quali 2005 EUA Ch Esc Enf 53 Examinar, atravessado culturalmente, a experiência de pais que cuidam de crianças com doenças crónicas, tanto em termos do impacto sobre a vida familiar assim como da natureza do apoio recebido dos serviços de saúde em Hong Kong e Escócia

Legenda: DII: doença inflamatória intestinal; AIJ: artrite idiopática juvenil; CRIANES: crianças com necessidades especiais; CCCS: condições crônicas complexas de saúde; LLA: leucemia linfocítica aguda; DM: diabetes mellitus; FC: fibrose cística; HIV: infecção pelo vírus da imunodeficiência humana; IRC: insuficiência renal crônica; Quali: qualitativo; Quanti: quantitativo; Rev lit: revisão da literatura; EUA: Estados Unidos da América; Arg: Argentina; UK: Reino Unido; Can: Canadá; Tai: Tailândia; Ch: China; Esc: Escócia; Med: medicina; Enf: enfermagem; psic: psicologia; Antrop: antropologia; Sociol: sociologia; ci soc: ciências sociais; Multiprof: multiprofissional; TDC: TD compartilhada

Nos textos analisados, a inclusão de crianças/adolescentes como participantes de seus cuidados ressalta as tendências atuais quanto à sua consideração como sujeitos de fato e de direito19. As pesquisas estão deixando de ser pesquisas “em crianças” para tornarem-se pesquisas “com crianças”, com reconhecimento das mesmas como promotoras de transformação social nas relações de mutua influência com adultos e outras crianças20.

Foi observado, nos artigos, que os diagnósticos ou estavam agrupados em conjuntos mais amplos (como crianças com CCCS, terminais, com necessidades especiais de saúde) ou eram mais específicos (como criança com doença inflamatória intestinal, diabetes, fibrose cística, asma). Ainda, em algumas pesquisas, eles não foram especificados. Usando o descritor “doença crônica” identificamos todos artigos que agrupam semelhanças quanto às necessidades, evolução, prevalência, e são reconhecidas como de curso crônico. Metodologicamente, mesmo usando o descritor “doença crônica”, é importante ressaltar que esse conceito não esclarece sobre a diversidade das necessidades de saúde dessas crianças6,7,12,21.

A maioria dos estudos fez uso de desenhos qualitativos. Isso nos faz considerar que existem muitas questões relativas à TD que não podem ser respondidas pelos métodos quantitativos, pela necessidade de aprofundar relações e vivências, singularidades do adoecer, produção dos cuidados e busca da saúde22. O fato dos autores estarem muito próximos da clínica do cuidado, pode ser um estímulo para a reflexividade e proposições sobre esse campo, no enfoque da TD. Isso deve se dar em função da necessidade de incorporar modelos assistenciais focados no usuário, considerando o ambiente das relações humanas e os encontros como possibilidade de produção de saúde e autonomia23,24.

Dezessete artigos tiveram publicação nos últimos 5 anos. Tal interesse pode refletir a preocupação com inovações nas relações de cuidado e uso de tecnologias de suporte à vida. Os diferentes modos de construção da doença e do corpo doente articulando materiais, técnicas, conhecimentos e práticas, torna atual a reflexão sobre biopoder5. O conhecimento sobre tecnologias disponíveis, a possibilidade de garantir às famílias a participação na escolha sobre quais usar e as exigências de autorização esclarecida sobre o risco nas intervenções também matiza esse cenário. O que antes era inquestionável, agora começa a ser visto dentro de um contexto de escolhas que envolve as exigências sobre decisões compartilhadas entre envolvidos no cuidado, inclusive crianças e adolescentes doentes.

O país que mais publicou foi EUA, predominando os estudos com foco na medicina. O fato da maioria das publicações se originar em países do norte, pode ser um reflexo da interface entre desenvolvimento tecnológico e transição epidemiológica desses países que se deu anteriormente ao que está ocorrendo, por exemplo, no Brasil. Os EUA, a exemplo disso, acionam como inovação o Cuidado Centrado na Família (CCF), filosofia que baseia uma TD compartilhada como um dos seus princípios-chave25. Surgido nesse país, na segunda metade do século XX, o conceito de CCF coincide com a consciência sobre a importância de unir necessidades psicossociais e de desenvolvimento de crianças e papel das famílias na promoção do seu bem estar e de sua saúde. Em 1992 é fundado o Instituto do CCF, que tem por objetivo estimular parcerias entre pessoas com doenças crônicas, suas famílias e profissionais de saúde e de promover liderança no avanço da prática do CCF em todos cenários. A partir daí o CCF alia diversos níveis de prestígio e passa a fundamentar pesquisas, em aliança com organizações renomadas a fim de gerar evidências científicas. A Academia Americana de Pediatria (AAP) tem vários princípios do CCF incorporados em suas declarações de políticas e manuais25.

Quase metade dos estudos tinha como um dos objetivos a análise das decisões sobre o cuidado prestado a crianças com doenças crônicas26-41. Os que não se referiam às decisões nos objetivos, traziam esse assunto nos resultados e discussões, o que pode apontar para um achado ligado ao objeto de estudo, ou seja, uma descoberta digna de discussão.

A partir da análise de conteúdo temática, identificamos quatro principais temas ligados à TD: TD como um processo12,26-28,30,32-38,40-44; TD como um aspecto dentro do plano de cuidado29,30,43-46; TD como componente do CCF12,27,28,31-39,47-56;TD como resultante de outros compartilhamentos27,28,40-42,56,57.

Apesar de termos encontrado apenas um artigo problematizando a TD como um processo26, avaliamos relevante a consideração deste como um tema, pois muitos trabalhos partem do pressuposto que a TD é um processo, porém, sem a problematização desta afirmação12,27,28,30,32-38,40-44.

Discussão

À luz das contribuições de Mol8,16, problematizamos os processos de TD referidos nos artigos. As lógicas que regem os cuidados de saúde podem, pelo lado da escolha, gerar um processo decisório linear, cabendo ao profissional de saúde transmitir informações ao doente, que, por sua vez, pautado nos seus valores, fará sua escolha, e a seguir, o profissional irá executá-la. Nesta linearidade as decisões são difíceis, porém confinadas a momentos cruciais e a escolha resulta da solução de uma sentença matemática entre variáveis fixas que são nomeadas como prós e contras à decisão.

Do outro lado, Mol descreve a lógica do cuidado, que vai muito além desta sequência ordenada de informações, valores, decisões e aplicações, no qual o processo de decisões não segue uma linearidade e fatos e valores se entrelaçam. Neste caso, as variáveis a serem consideradas não são fixas e, por isso, é impossível fazer um balanço entre prós e contras, e mesmo depois de decidido, o decidido pode não funcionar. Aos envolvidos nas decisões cabe um movimento de tentar, observar, adaptar, tentar de novo. As CCCS demandam este processo de TD contínuo, que irá se estender por todos os dias da vida de uma criança. Os problemas vão emergindo, e conforme são tratados, novos problemas e soluções aparecem; para além de implementar tecnologia e cuidado, cabe experimentá-los8,16. Este ciclo nos faz refletir que não há um cálculo racional, orientando fins, meios e resultados em um pretenso fluxo de causalidades. Mas algo que evoca um artesanato técnico, baseado no diálogo necessário entre atores posicionados diferentemente na cena clínica, com interesses diversos, afetos e referências, que têm em comum a tarefa de oferecer conforto e cuidado qualificado. O corpo de profissionais – diverso em sua multidisciplinaridade de conhecimentos e funções – e os familiares, encontram-se envolvidos e mobilizados em torno desta tarefa, mas com funções, interesses e investimentos diferentes. Dialogando com Latour58, destacamos também a importância das conexões entre atores humanos e não humanos. Na atenção à saúde de crianças com doenças crônicas complexas estas conexões incluem manejo e acesso ao aparato tecnológico, mediações e mudanças que ele produz nos corpos e na subjetividade dos processos de TD. Importante observar que estes processos do lado da família e da criança exigem inúmeras adaptações, e até uma relação de atribuição à tecnologia de salvação ou resgate da vida. Além disto, o limite entre o corpo das crianças com CCCS e as necessidades de viver com um corpo todo alterado, mediam investimentos e geram sobrecarga e iniquidades de gênero no componente materno5.

A síntese de uma definição de TD a partir do acervo selecionado nos colocou desafios. Isso porque a preocupação com a definição dessa categoria não comparece de forma direta nos artigos. O termo é usado por vezes de maneira óbvia, como se não precisasse ser definido, contraposto em seus elementos. Mesmo que a categoria não seja definida, pudemos reunir no curso dos artigos elementos que nos oferecessem ideias sobre qual lógica prevalece no uso do termo. À luz de Mol, prevalece a lógica da escolha, na qual o médico, detentor do conhecimento técnico científico, irá informar à pessoa doente aquilo que melhor servirá para “treiná-la” para o cuidado, preparando-a para usar as informações e operar na realidade. Tal lógica utilitária gera uma perigosa desresponsabilização do profissional nesse processo. Todavia, no cuidado complexo, prevalece como comum na linha do tempo a necessidade de uma proximidade entre equipe de saúde e família. Essa proximidade pode gerar um círculo virtuoso de trocas de bens de cuidado17,18, da confrontação com as incertezas, com a realização de que o que foi “ensinado” dentro do hospital – e estava submetido a um enquadre técnico de segurança e controle – se perde ou é ressignificado na chegada em casa, por exemplo com uma criança “traqueostomizada”, “gastrostomizada”, ou “ventilada”, que precisa de alguém para interpretar seus sinais de desconforto e mal estar. Não encontramos nenhum artigo abordando a necessidade de repactuações de decisões, que está presente na lógica do cuidado de Mol8,16.

Com relação ao segundo tema, a TD foi encarada como um aspecto dentro do plano de cuidado29,30,43-46. O planejamento do cuidado às crianças com condições crônicas pode ir em direção ao modelo assistencial centrado no mercado ou ao modelo “produtor de cuidado”. Em um extremo, a assistência centrada no mercado e na produção de procedimentos, prioriza uso de equipamentos e lógica da livre escolha informada, nos termos de Mol16. No outro extremo, os modelos “produtores do cuidado”, centram-se na pessoa doente e em suas necessidades, sendo a base para a elaboração dos projetos terapêuticos (PT)23. Para o artesanato deste modelo acreditamos ser válido o diálogo promovido a parir da Teoria da Dádiva de Mauss17,18. Na dádiva17,18,59, a reciprocidade implica na preocupação pelo outro, no estabelecimento de valores afetivos e éticos em troca da doação, que são a confiança, a compreensão mútua, e um “vínculo de almas”59.

Nos modelos assistenciais “produtores de cuidado” as doenças são abordadas como fato social e simbólico total, dotadas de signos e significações17, circulando bens de cura e cuidado, resgate da reciprocidade, acolhimento e vínculo de confiança, tão caros ao processo de construção do cuidado de si e da autonomia. Já nos modelos assistenciais “produtores de procedimento”23, há inversão da relação de reciprocidade, e a preocupação primeira é a satisfação do próprio interesse.

Os artigos que consideraram TD como um aspecto do plano de cuidado, referiram-se as decisões tanto com relação à transição de cuidados45 quanto às relacionadas ao fim de vida30,43,44,46. Embora entendamos que o planejamento do cuidado deva englobar todos aspectos da TD, dos “mais fáceis” aos “mais difíceis”, pudemos observar maior preocupação com relação às decisões “difíceis” – as tomadas nas situações de fim de vida. TD difíceis com relação às pessoas com doenças crônicas acontecem mais frequentemente de maneira não eletiva, num cenário de tratamento intensivo ou hospitalar, com muita tecnologia e pouco tempo para serem tomadas, ao passo que situações menos urgentes podem facilitar o compartilhamento da TD, uma vez que os pacientes têm mais tempo para acolher e processar informações60. Isso explica o fato de muitas vezes as decisões de fim de vida serem tomadas de modo solitário pelos médicos responsáveis pelo cuidado61. Desta maneira, decisões de fim de vida, mais difíceis, inquietam mais profissionais de saúde, que por isso buscam maneiras de compartilhá-las.

Ainda em relação ao plano de cuidado, um artigo29 aborda a quantidade de subespecialistas envolvidos no PT e encara que o grande número de envolvidos na TD dificulta o processo e é um problema a ser gerenciado. Idealmente, o projeto terapêutico integraria os diversos profissionais responsáveis pelo cuidado, com ações multicentradas nos problemas de saúde das pessoas, com a produção de uma capacidade resolutiva, pois o “campo cuidador” é comum a todos e o “núcleo de conhecimento especializado” pertence a cada profissional participante do cuidado23. Porém, a presença multiprofissional no cuidado não garante por si só uma TD compartilhada e não instrumental, pois há o risco da fragmentação da intervenção, que caracteriza um planejamento do cuidado dividido, não centrado no usuário23.

Com relação ao grande número de trabalhos que consideram a TD um componente da filosofia do Cuidado Centrado na Família (CCF)12,27,28,31-39,47-56, problematizamos qual limite entre construir alianças para o cuidado que promovam apoios, saúde, trocas de bens de cuidado virtuosos17 entre familiares e profissionais, valorizando a lógica do cuidado16 e a perigosa tendência de responsabilizar a família – ainda que de forma não intencional – pelos cuidados, incrementando por exemplo iniquidades de gênero e “peregrinações” terapêuticas19.

Ao se pretender inovador no planejamento, distribuição e avaliação do cuidado de saúde, o CCF, que perpassa o tema da TD, está fundamentado numa parceria mútua entre pessoas com doenças crônicas, seus familiares e profissionais de saúde. O CCF reconhece a importância da família na vida da pessoa25, porém fazemos uma reflexão crítica sobre a possibilidade dele gerar ou incrementar iniquidades. Encontramos artigos dedicando-se a avaliar a participação, assim como as perspectivas de crianças, adolescentes e seus familiares ao tomarem decisões, e diversos fatores que eles levam em conta na TD12,33-39,47,51. Todavia, estes não se preocuparam em criticar os limites do CCF – onde predomina a temática da TD compartilhada. A TD compartilhada situa-se entre os opostos paternalista, com atitudes prescritivas, e informada, na qual a pessoa doente decide com base nas informações passadas pelo médico9,10. No modelo compartilhado de TD, presente no CCF, o médico passa as informações técnicas ao paciente que por sua vez irá expressar suas crenças, medos, experiências, com vistas a um consenso sobre qual melhor tratamento, cabendo ao médico apoiar o paciente na sua escolha9,10. Porém, cabe ressaltar que o tipo de modelo predominante na prática clínica depende de concepções mais amplas a respeito da relação médico paciente, coerente com a cultura vigente sobre a crença do que é autonomia do paciente e de quais são as tarefas e responsabilidades dos médicos9,10. Modelos aplicados à TD no interior da prática clínica têm seus limites. Como modelos teóricos, são enquadramentos que, muitas vezes, podem não corresponder à realidade. Na relação de cuidado existem muitos intervenientes – simbólicos, humanos e não humanos – que num mesmo processo decisório podem dar contorno a vários modelos. Questões desde escasso leque de opções a serem escolhidas até deliberação dessa escolha através de maior clareza do que seja “negociação” profissional/pessoa doente merecem maior atenção10. Wirtz et al.10, problematizando TDC, apontam que o compartilhamento de decisões não significa compartilhamento de opções, ficando a escolha das opções a cargo do médico.

Com base nessa discussão sobre modelos de TD, a grande questão que vale ser levantada com base em Mol é a categoria “escolha”. Esta evoca ideias sobre liberdade, independência, consentimento com base na informação, que merecem uma reflexão crítica. Até que ponto essa escolha encontra-se livre de influências? No interior da lógica do conhecimento científico, a escolha pode ser considerada como uma ação que se coloca frente a uma coleção de fatos que se ligam pela pretensão de gerar evidências e certezas. Os profissionais anseiam por esses fatos e por agregar a eles certeza. E no caso da relação com os leigos a tarefa é oferecer informações, exteriorizando fatos relevantes, a fim de determinar o valor de vários cursos de ação possíveis. Nesse contexto predomina uma lógica livre de valores, na qual a escolha se dá em um território onde médicos, enfermeiros e pacientes se situam como atores neutros. Os únicos valores que são relevantes se referem às medidas, segundo Mol. Já a lógica do cuidado se define a partir da constatação de que as decisões que associam humanos e não humanos, ou seja pessoas e tecnologias, não são lineares, e não uma simples implementação de conhecimentos e tecnologias. Mas, de experiências com eles. Essa categoria de experiência evoca sentidos, valores, interpretações e acima de tudo uso. Outro ponto importante, é que a ideia do cuidado não se restringe somente ao médico, mas a toda equipe de saúde.

Se para Wirtz há uma diferença entre “decisões” e “escolha de opções”, sobre as opções incide também assimetria entre médico e paciente na cena clínica. Oferecem-se decisões compartilhadas, mas o gerenciamento das mesmas fica a cargo do poder de reafirmar a “melhor opção”. E qual seria a melhor? Tal discussão sintoniza com as reflexões de Mol, que ressalta que na lógica da escolha uma boa decisão depende de equilibrar adequadamente as vantagens e desvantagens de vários cursos de ação. Tal modelo de “equilíbrio” combina com contabilidade, em que as intervenções médicas são mais difíceis de quantificar do que somas de dinheiro. É como se o significado de tomar uma decisão corresponda ao ato de fazer um cálculo entre prós e contras. Na lógica do cuidado, segundo Mol, isto é diferente. ‘Equilíbrio’ é importante, mais uma vez, mas não como uma questão de adicionar, subtraindo vantagens e desvantagens. Afinal, adição e subtração exigem um número fixo de variáveis, mas na lógica do cuidado nenhuma variável é sempre fixa. O “equilíbrio” procurado é, então, algo que precisa ser estabelecido, de forma ativa. Ao invés da imagem da balança do contador, a melhor imagem que sintetiza é a do corpo em equilíbrio de um artista que anda no fio.

Outros aspectos que emergem são: empoderamento dos pais31,50,55; TD sobre crianças e adolescentes participarem ou não de ensaios clínicos54,56; avaliação da TD como indicador sobre qualidade dos serviços de saúde na ótica dos pais53. No CCF os processos de comunicação – que como um tipo ideal deveria possibilitar uma ação constituída tanto pela transmissão de informação do profissional de saúde, quanto pela escuta por parte desses profissionais da pessoa com doença crônica, valorizando sua cultura, experiência e realidade social – são um dos princípios-chave25. Nesse processo se considera a participação de crianças/adolescentes e seus familiares em grupos de suporte ao cuidado de saúde. Outro princípio-chave é a colaboração entre profissionais de saúde, crianças/adolescentes e familiares que ocorre em todos níveis do cuidado: no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação de programas, na educação profissional, no desenvolvimento de políticas, na participação nos cuidados de saúde e em todos os níveis do delineamento de pesquisas. O empoderamento presente no CCF valoriza o apoio, num processo em que crianças/adolescentes e seus familiares adquirem confiança para tomarem decisões sobre seu cuidado de saúde.

A prática da TD dentro do contexto do CCF comparece como uma habilidade que precisa ser ensinada aos médicos, ou porque é desconhecida (para jovens médicos)48 ou contraditória (para pediatras que sabem da sua importância mas têm dificuldade na sua execução)27,28,32,49,52, ou ainda porque constata-se que sujeitos provenientes de culturas diferentes têm diferentes perspectivas a respeito de sua participação na TD53. Numa análise bourdieusiana da organização social dos hospitais pediátricos, recursos de pais e profissionais de saúde não estão distribuídos equitativamente, e seus habitus diferem hierarquicamente62. Assim, surgem limites na capacidade de pais e profissionais de saúde trabalharem colaborativamente como parceiros num time no campo da medicina pediátrica. O aumento do capital simbólico/cultural dos pais pode ser visto como solução para melhorar as práticas de médicos e enfermeiras na comunicação e tomada de decisão, melhorando a prática do CCF62.

Por fim, há o entendimento da TD como resultado do compartilhamento não só entre os atores envolvidos, mas de outros compartilhamentos27,28,40-42,56,57, nos quais ambiente, sentidos e experiências também influenciam decisões. A doença, corporificada num sujeito, vem carregada de uma série de sentidos, que integram as significações pelo lado do doente, que não resume a doença apenas em sofrimento físico, incapacidade, deficiência, mas a possibilidade de não ser mais digno de amor e respeito. Segundo Canesqui63, essa interpretação das dimensões culturais dos fenômenos orgânicos irá se apoiar em conceitos, símbolos e estruturas interiorizadas pelos sujeitos, levando em consideração o grupo social a que pertencem. Carapinheiro64 extrai da (in) definição de saúde a variabilidade do significado de doença. É no compartilhamento de significados com seu grupo que os indivíduos irão tomar decisões sobre sua saúde. Ao abordar as experiências do adoecimento crônico, Mol8 aponta que o viver com diabetes não se resume a aplicar insulina, mas engloba toda uma produção do real a partir de ações. A experiência de viver com determinada doença ocorre na significação dos processos de adoecer e das decisões tomadas em torno dele.

Os valores essenciais mantidos pela família interferem nos processos decisórios, perpassando, por exemplo, as avaliações sobre seu conforto e as consequências da decisão tomada ao longo do tempo. Decisões estas que englobam processos complexos que abarcam tanto aspectos objetivos, como técnicas de gestão, interpretação e síntese, quanto subjetivos, como sentidos e experiências do adoecer65. É importante oferecer informação, respeito e suporte aos pais para permiti-los viverem com suas decisões por toda vida60.

Cabe apontar, como limites deste estudo, que devido ao fato de terem sido usadas bases de dados com poucos periódicos das áreas da antropologia e sociologia indexados, a presente revisão se destinou a olhar artigos relacionados à TD mais próximos do campo da atenção à saúde do que nos estudos relacionados a uma analise socioantropológica da mesma. Desta maneira sugerimos a necessidade de pesquisas levantando a bibliografia de TD no campo socioantropológico, acessando outras bases de indexação como proposta futura. Outro limitante diz respeito à inexistência de um descritor único que facilite a comparação entre os artigos e a sua busca. Consideramos urgente a necessidade da criação de um descritor no Decs que identifique as crianças com doenças crônicas segundo suas necessidades de cuidados de saúde, no caso cuidados complexos. Por esse motivo a síntese provisória para Tomada de Decisão que apresentamos deve ser compreendida no âmbito do diálogo entre a categoria genérica e mais englobante que define estudos para o cuidado de crianças com doenças crônicas, e a especificidade que toca a esse novo grupo de pequenos atores nascidos sob o signo da complexidade e cronicidade: crianças com condições crônicas complexas que aqui reconhecemos na sua existência.

Conclusão

Com base na revisão empreendida, concluímos que os principais atores participantes da TD nas doenças crônicas pediátricas foram crianças/adolescentes doentes e seus pais, e profissionais de saúde (principalmente médicos e enfermeiros). Essa TD se caracteriza por um processo que, quanto mais complexa a situação de saúde, com mais dependências de tecnologia, maior o investimento em planos terapêuticos, nos quais o gerenciamento da instabilidade na presença da condição crônica faz parte do conjunto das ações. Assim, seria mais adequado conceber a expressão “Processos de Tomada Decisão”, considerando que os mesmos se desenrolam principalmente no interstício das relações, sendo influenciados pelo ato de compartilhar acontecimentos entre todos atores envolvidos. Esse Processo de TD Compartilhada, presente no modelo predominante de CCF, compõe o planejamento terapêutico para as crianças com doenças crônicas e prioriza decisões extremas, de fim de vida. Além disto, toda escolha por cuidado é, ao mesmo tempo, fonte e foz de sentidos e experiências e também é influenciada por e influencia o ambiente em que os envolvidos neste cuidado estão inseridos.

Assumimos como proposição a diferença entre “decisões” e “escolha de opções” e entre “cuidado” e “escolha”. Falar de opção é gerar expectativa de liberdade entre iguais, decidindo o que mascara a assimetria e a hierarquia entre médicos, familiares e crianças. A ilusão de que podem compartilhar decisões apaga o fato de que o gerenciamento das mesmas fica a cargo do poder de reafirmar a “melhor opção”. Buscando o modelo de Mol da lógica do cuidado em oposição à lógica da escolha, para discutir a TD, apontamos que a lógica da escolha é contábil, baseada na assimetria e na hierarquia. Enquanto na lógica do cuidado, o “equilíbrio”, representado pela decisão tomada, é algo que precisa ser estabelecido de forma ativa. E para isso a TD é uma dinâmica onde decidir é poder reavaliar decisões tomadas com base em lógicas de solidariedade, empatia e dádiva entre atores diferentemente situados.

Como funções e desafios dos atores, destacamos o risco de responsabilizar/atribuir à família sua entrada somente nos momentos de decisões difíceis. Assim como em acreditar que ela pode livremente “escolher” a partir de um conjunto de informações oferecidas. Na atenção pediátrica, que já tem por base a multiprofissionalidade, o desafio reside em integrar conhecimentos técnico e leigo, colocando necessidades da criança e da família no centro das decisões. No caso de uma linha de cuidados para atenção à saúde da criança com CCCS cabe reconhecer que a mesma mereceria ser dialogada com itinerários que são vividos como “peregrinações” terapêuticas para acesso ao direito de saúde. Nesse cenário de complexidade, o aparato tecnológico torna-se um ator que provoca novos investimentos e interesses, situando a tecnologia em relação, como símbolos que mediam e influenciam as decisões, tendo por isso agência. Nesse contexto, a tecnologia pode ser considerada mais um partícipe dos processos de TD.

Existem barreiras inerentes à cultura centrada na biomedicina e no mercado e essas precisam ser revistas. Acreditamos que o aumento do capital simbólico do paciente, o uso da lógica do cuidado na TD e a humanização do atendimento, sejam um caminho para esta reflexão. Porém, a mudança nos processos de TD depende de estarmos atentos para não cairmos na inteligência do sistema hegemônico, onde modelos mascarados de novos se colocam. A TD compartilhada, por exemplo, pode vir travestida de técnicas para fazer com que o paciente tome decisões de acordo com a vontade do sistema. Daí a questão é bem de acordo com a lógica da escolha: oferecer opções como se fossem livres de dilemas, mudanças, negociações e valores.

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