versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.5 Rio de Janeiro maio 2020 Epub 08-Maio-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020255.33082019
A população de pessoas transexuais enfrenta barreiras para o acesso às instituições formais da sociedade como saúde e trabalho1-6. No nível estrutural existe carência de políticas públicas voltadas para a sua inclusão no conjunto das instituições sociais, como a educação, o sistema de saúde e o mercado de trabalho. Altos níveis de desemprego e a dificuldade para inserção no mercado de trabalho são também associadas ao estigma e à discriminação vivenciados por esta população7,8.
Além de ser reconhecido como um direito humano fundamental9, o trabalho constitui-se em uma estratégia para o indivíduo produzir os meios para o seu sustento e possui repercussões diretas sobre as condições de vida e de saúde de qualquer população10-12, sendo considerado um importante determinante social de saúde13.
No Brasil, os contextos econômico, social e político, acompanhados de mudanças na estrutura produtiva, não asseguram a todos os trabalhadores a proteção que a legislação faculta14-16, fazendo com que coexistam duas modalidades de inserção no trabalho: uma formal e outra informal. O mercado de trabalho formal é prerrogativa dos indivíduos assalariados, que se encontram amparados por um conjunto de leis trabalhistas e medidas de proteção. O mercado de trabalho informal compreende um conjunto de atividades que as pessoas desenvolvem sem amparo da legislação trabalhista11,14-17.
Existem poucos estudos que investigam a inserção no mercado de trabalho de pessoas transexuais no Brasil e no Mundo, em geral são exploratórios e restritos ao contexto da investigação das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), em especial pelo HIV5,18-21.
Dispor de dados sobre a inserção da população de travestis e transexuais no mercado formal de trabalho no estado de São Paulo pode identificar a magnitude do problema e fornecer contribuições na formulação de políticas públicas. O objetivo deste estudo foi analisar os fatores associados à inserção no mercado formal de trabalho em pessoas transexuais no estado de São Paulo.
Foram analisados dados de um estudo transversal, denominado “Vulnerabilidades, demandas de saúde e acesso a serviços da população de travestis e transexuais do Estado de São Paulo” – “Projeto Muriel”22.
O projeto estudou uma amostra de 673 transexuais que acessaram serviços de saúde e assistência social situados em sete municípios do estado de São Paulo (São Paulo, Campinas, São Bernardo do Campo, Santo André, Santos, São José do Rio Preto e Piracicaba). O tamanho da amostra foicalculado por meio da realização de um mapeamento sobre o número de pessoas travestis e transexuais matriculadas ou que frequentaram ou participaram de alguma atividade desenvolvida pelo serviço de saúde e assistência social, no ano de 2012, nos municípios previamente selecionados para o estudo.
A estratégia de amostragem combinou uma abordagem consecutiva de travestis e transexuais, clientes desses serviços, com a técnica conhecida como bola de neve, que tem por base as redes de relações sociais. Os critérios de inclusão adotados foram: ter 16 anos ou mais na ocasião da entrevista; identificar-se como travesti, transexual ou transgênero e residir no estado de São Paulo há menos de seis meses.
O instrumento de coleta de dados foi composto por sete blocos de questões contendo informações: sociodemográficas, percurso profissional, condições de saúde, saúde sexual e reprodutiva, violação de direitos humanos e discriminação, contexto social e percurso de transição. O questionário foi aplicado em entrevista face a face, por meio de um tablet e entrevistador treinado. A coleta de dados teve início no segundo semestre de 2014 e término em janeiro de 2015. Para esta análise foram utilizados dados com respostas válidas para as questões relacionadas à situação de trabalho.
A ocupação das pessoas participantes foi investigada por meio das seguintes perguntas: “Você trabalha atualmente?”; e se trabalha, “Qual é o tipo de vínculo empregatício”; se não trabalha, “Como você vive?” “Pra você tem sido difícil encontrar emprego?” Foram considerados ocupados todos que informaram estar trabalhando atualmente. Os ocupados foram classificados em formal ou informal, de acordo com o tipo de vinculo informado (Figura 1). Foi considerado trabalhador formal aqueles que declararam serem empregados com carteira assinada, funcionários públicos municipais, estaduais ou militares, estagiários remunerados e empregadores com CNPJ. Foram classificados como trabalhadores informais indivíduos ocupados sem carteira de trabalho assinada, que relataram trabalhar por conta própria e empregadores sem CNPJ. Essas categorias foram adaptadas a partir da classificação utilizada pelo IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio Continua-PNAD23.
A variável dependente foi inserção no mercado formal (sim, não). As variáveis independentes foram: identidade de gênero (mulher transexual/travesti, homem transexual), anos de estudo (menor ou igual a 8 anos, 9 a 11 e 12 anos e mais), faixa etária em anos (16 a 24, 25 a 39, 40 e mais ), raça/cor da pele (branca, preta, parda, amarela, indígena, ignorado), mudou alguma vez da cidade de nascimento (sim, não), mudança de nome em algum documento (sim, não, ignorado), possui formação ou curso técnico/profissionalizante (sim, não), já se sentiu discriminado (sim, não), já foi preso alguma vez na vida (sim, não), tipo de acompanhamento médico (não faz nenhum acompanhamento, seguimento de aids ou Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), seguimento para processo transexualizador e outros), realiza algum acompanhamento médico (sim, não); Realiza acompanhamento para processo transexualizador (sim, não), possui convênio/ seguro de saúde particular (sim, não).
Foi realizada uma análise descritiva das variáveis. A caracterização do grupo de pessoas ocupadas foi conduzida por meio de análise bivariada e multivariada. Foram calculados os odds ratios (OR) brutos e ajustadas (ORaj) para cada variável independente, com os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%), utilizando-se o modelo de regressão logística. As variáveis foram testadas para compor o modelo múltiplo quando apresentaram valor de p <= 0,20 na análise bivariada, em ordem crescente (forward stepwise selection). Para a permanência no modelo foi considerado um intervalo de confiança de 95% que não incluísse a nulidade (OR = 1,00), obtido por meio do teste da razão da máxima verossimilhança. A adequação do modelo foi verificada com o teste de Hosmer e Lemeshow (goodness-of-fit). Todas as análises estatísticas foram realizadas com o auxílio do software STATA ®, versão 13.0.
O projeto foi desenhado e conduzido em consonância com as normas de ética em pesquisas com seres humanos no Brasil. Tendo sido submetido e aprovado pelos CEP do CRT/DST AIDS, da SMS-SP e da SMS Santo André. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Pessoas diagnosticadas com algum problema de saúde foram encaminhadas para serviços de saúde ou assistência social no âmbito dos serviços públicos para tratamento e acompanhamento.
Da amostra total de 673, foram analisadas as entrevistas de 672 participantes com informações válidas. Dos 672 incluídos, 82,3% se encontravam ocupados, 13,1% não ocupados e 4,6% fora do mercado de trabalho (Tabela 1). Com relação à posição na ocupação, observou-se que 53,9% exerciam atividades por conta própria e 27,2% como empregados, mas apenas 14% deles tinham contratos protegidos pela legislação trabalhista. Atuavam como trabalhadores do sexo 40,6% dos entrevistados (Tabela 1).
Tabela 1 Inserção no mercado de trabalho de uma amostra de pessoas transexuais de sete municípios do estado de São Paulo, 2014 a 2015.
Variáveis | Total | |
---|---|---|
Condição na Ocupação | ||
Ocupado | 553 | 82,3 |
Não ocupados | 88 | 13,1 |
Fora do mercado de trabalho | 31 | 4,6 |
Posição na ocupação | ||
Conta própria | 362 | 53,9 |
Empregado | 183 | 27,2 |
Empregador | 4 | 0,6 |
Estagiário | 2 | 0,3 |
Não ocupado | 119 | 17,7 |
Ignorado | 2 | 0,3 |
Ocupação segundo CBO | ||
Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados* | 410 | 61,0 |
Trabalhadores de serviços administrativos | 39 | 5,8 |
Profissionais das ciências e das artes | 19 | 2,8 |
Técnicos de nível médio | 17 | 2,5 |
Trabalhadores da produção de bens e serviços industriais | 15 | 2,2 |
Trabalhadores da produção de bens e serviços químicos | 6 | 0,9 |
Membros superiores do poder público, dirigentes de organizações de interesse público | 3 | 0,4 |
Trabalhadores de manutenção e reparação | 3 | 0,4 |
Setor agropecuário | 1 | 0,1 |
Não ocupado | 119 | 17,7 |
Ignorado | 40 | 6,0 |
Tempo de trabalho na atividade em anos | ||
Menos de dois anos | 67 | 10,0 |
De dois a três anos | 94 | 14,0 |
Mais de três anos | 340 | 50,6 |
Não ocupado | 119 | 17,7 |
Ignorado | 52 | 7,7 |
Mercado Formal | ||
Não | 459 | 68,3 |
Sim | 94 | 14,0 |
Não ocupado | 119 | 17,7 |
Trabalhadores do Sexo | ||
Não | 280 | 41,7 |
Sim | 273 | 40,6 |
Não ocupado | 119 | 17,7 |
Total | 672 | 100,0 |
Fonte: Projeto Muriel
As identidades de gênero relatadas foram: homem transexual (7%), mulher transexual ou travesti (90,4%), e em 2,5% da amostra (n = 17) essa informação estava ignorada.
Em relação às características demográficas: a média de idade foi 32 anos, 50,4% estava na faixa etária de 25 a 39 anos, 62% se autoidentificaram como pertencentes à raça/cor da pele branca, 16,2% tinham 12 anos ou mais de estudo, 60,5% moravam em residência própria ou alugada. O local de residência atual da maioria das pessoas entrevistadas (49,5%) era o município de São Paulo. Quanto às características relacionadas à formação profissional, seguridade social, experiência de encarceramento e uso de serviços de saúde, observou-se que: 56,8% realizaram algum curso técnico/profissionalizante, 37,9% contribuem para o Instituto Nacional de Seguridade social (INSS), 25,4% tinham antecedente de prisão alguma vez na vida, 13% estavam realizando acompanhamento médico para o chamado processo transexualizador e 16,3% possuíam convênio médico. A distribuição das características da amostra está apresentada na Tabela 2.
Tabela 2 Características sociodemográficas de uma amostra de pessoas transexuais de sete municípios do estado de São Paulo, 2014 a 2015.
Variáveis | Total | |
---|---|---|
N | % | |
Cidade de residência atual | ||
São Paulo | 336 | 50,0 |
Campinas | 104 | 15,5 |
Grande SP | 56 | 8,3 |
Interior | 115 | 17,1 |
Litoral | 58 | 8,6 |
Ignorado | 3 | 0,4 |
Identidade de gênero | ||
Homen trans | 47 | 7,0 |
Mulher trans/travesti | 608 | 90,5 |
Ignorado | 17 | 2,5 |
Faixa etária em anos | ||
16 a 24 | 178 | 26,5 |
25 a 39 | 339 | 50,4 |
40 e mais | 155 | 23,1 |
Raça/Cor da Pele | ||
Branca | 253 | 37,6 |
Parda | 289 | 43,0 |
Preta | 101 | 15,0 |
Amarela | 13 | 1,9 |
Indígena | 13 | 1,9 |
Sem resposta | 3 | 0,4 |
Anos de estudos | ||
Menor ou igual a 8 | 234 | 34,8 |
9 a 11 | 329 | 49,0 |
12 anos e mais | 109 | 16,2 |
Tipo de moradia | ||
Residência provisória | 254 | 37,8 |
Casa apartamento próprio / alugado | 407 | 60,6 |
Ignorado | 11 | 1,6 |
Mudança de nome em algum documento | ||
Não | 613 | 91,2 |
Sim | 58 | 8,6 |
Ignorado | 1 | 0,1 |
Possui formação ou curso técnico/profissionalizante | ||
Sim | 382 | 56,8 |
Não | 290 | 43,2 |
Renda mensal em salário mínimos (SM) | ||
Menor de um | 186 | 27,7 |
1 a 2 | 187 | 27,8 |
2 a 3 | 124 | 18,5 |
Acima de 3 | 128 | 19,0 |
Ignorado | 47 | 7,0 |
Contribui para o INSS | ||
Não | 412 | 61,3 |
Sim | 256 | 38,1 |
Ignorado | 4 | 0,6 |
Já foi preso alguma vez na vida | ||
Não | 501 | 74,6 |
Sim | 171 | 25,4 |
Tipo de acompanhamento médico | ||
Não faz nenhum acompanhamento | 274 | 40,8 |
Seguimento de aids ou infecções sexualmente transmissíveis (IST) | 217 | 32,3 |
Seguimento para processo transexualizador | 88 | 13,1 |
Outros | 93 | 13,8 |
Possui convênio médico / seguro particular de saúde | ||
Não | 560 | 83,3 |
Sim | 110 | 16,4 |
Ignorado | 2 | 0,3 |
Total | 672 | 100,0 |
Fonte: Projeto Muriel
Para verificar os fatores associados à inserção no mercado formal na análise bivariada foi considerada apenas a população ocupada, excluindo-se as 119 pessoas não ocupadas e outras 25 para as quais as variáveis de interesse estavam em branco ou tinham resposta ignorada (Tabela 3). Das 528 pessoas ocupadas, a proporção de vínculo formal foi: 16,7%. Quando considerada a identidade de gênero, observou-se que entre os homens transexuais a ocupação formal foi de 59,4%, enquanto que entre as mulheres transexuais/travestis foi apenas de 13,9, o que representa uma chance nove vezes mais alta dos homens transexuais estarem inseridos no mercado formal quando comparados com as mulheres transexuais/travestis (Tabela 3).
Tabela 3 Análise bivariada de fatores associados a inserção no mercado formal de trabalho de uma amostra de pessoas transexuais de sete municípios do estado de São Paulo, 2014 a 2015*.
Variáveis | Mercado Formal | Total | Odds Ratio (OR) | Intervalo de confiança (IC) 95% | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sim | |||||||
N | % | N | % | ||||
Identidade de gênero | |||||||
Mulher trans/travesti | 69 | 13,9 | 496 | 100,0 | 1,00 | - | |
Homem transexual | 19 | 59,4 | 32 | 100,0 | 9,04 | 4,27 - 19, 14 | < 0,000 |
Anos de estudos | |||||||
Menor ou igual a 8 | 6 | 3,2 | 187 | 100,0 | 1,00 | - | |
9 a 11 | 50 | 19,4 | 258 | 100,0 | 7,25 | 3,03 - 17,30 | < 0,000 |
12 anos e mais | 32 | 38,6 | 83 | 100,0 | 18,92 | 7,50 - 47,76 | |
Faixa etária em anos | |||||||
16 a 24 | 16 | 11,9 | 134 | 100,0 | 1,00 | - | |
25 a 39 | 53 | 19,0 | 279 | 100,0 | 1,72 | 0,94 - 3,15 | 0,074 |
40 e mais | 19 | 16,5 | 115 | 100,0 | 1,45 | 0,71 - 2,99 | 0,302 |
Mudou alguma vez da cidade de nascimento | |||||||
Sim | 61 | 14,6 | 419 | 100,0 | 1,00 | - | |
Não | 27 | 24,8 | 109 | 100,0 | 1,93 | 1,15 - 3,22 | 0,012 |
Mudança de nome em algum documento | |||||||
Não | 76 | 15,8 | 482 | 100,0 | 1,00 | - | |
Sim | 12 | 26,1 | 46 | 100,0 | 1,88 | 0,93 - 3,80 | 0,077 |
Possui formação ou curso técnico/profissionalizante | |||||||
Não | 26 | 11,5 | 226 | 100,0 | 1,00 | - | |
Sim | 62 | 20,5 | 302 | 100,0 | 1,98 | 1,21 - 3,25 | 0,007 |
Já se sentiu discriminado | |||||||
Sim | 71 | 15,6 | 455 | 100,0 | 1,00 | - | |
Não | 17 | 23,3 | 73 | 100,0 | 1,64 | 0,90 - 2,98 | 0,105 |
Já foi preso alguma vez na vida | |||||||
Sim | 5 | 4,0 | 126 | 100,0 | 1,00 | - | |
Não | 83 | 20,6 | 402 | 100,0 | 6,29 | 2,49 - 15,90 | 0 |
Realiza algum acompanhamento médico | |||||||
Não | 25 | 10,8 | 232 | 100,0 | 1,00 | - | |
Sim | 63 | 21,3 | 296 | 100,0 | 2,23 | 1,358 - 3,689 | 0.002 |
Realiza acompanhamento para processo transexualizador | |||||||
Não | 59 | 12,7 | 465 | 100,0 | 1,00 | - | |
Sim | 29 | 46,0 | 63 | 100,0 | 5,86 | 3,333 - 10,333 | < 0,000 |
Possui convênio / seguro de saúde particular | |||||||
Não | 52 | 11,8 | 440 | 100,0 | 1,00 | - | |
Sim | 36 | 40,9 | 88 | 100,0 | 5,16 | 3,089 - 8,638 | < 0,00 |
Total | 88 | 16,7 | 528 | 100,0 | - | - |
Fonte: Projeto Muriel
*Incluídas 528 pessoas transexuais que estavam ocupadas nessa análise.
Em relação às características sociodemográficas, entre os indivíduos com 12 anos e mais de estudo, a chance de conseguir estar no mercado formal foi de quase 19 vezes quando comparados com aqueles cuja escolaridade era igual ou menor a 8 anos de estudo. Na análise bivariada, observou-se também que estar inserido no processo transexualizador apresentou associação com o mercado formal quando comparados com aqueles que não estavam em acompanhamento nenhum (Tabela 3)
No modelo final apresentaram associação independente com a inserção no mercado formal as seguintes características: identidade de gênero homem transexual (ORaj = 2,7; ICaj 95% 1,7-6,5), ter 12 anos ou mais de estudo (ORaj = 7,5; ICaj 95% 2,7-20,1), estar realizando algum tipo de acompanhamento médico (ORaj = 1,8; ICaj 95% 1,0-4,4); estar em acompanhamento para o processo transexualizador (ORaj = 2,1; ICaj 95% 1,0-3,4); ter seguro de saúde privado (ORaj = 2,8; ICaj 95% 1,5-5,1); e nunca ter sido preso na vida (ORaj = 3,3; ICaj 95% 1,2-8,9) (Tabela 4).
Tabela 4 Modelo múltiplo final para os fatores associados a inserção no mercado formal de trabalho de uma amostra de pessoas transexuais de sete municípios do estado de São Paulo, 2014 a 2015*.
Variáveis | Odds Ratio (OR) bruto | Odds Ratio (OR) ajustado | IC 95% ajustado | p* |
---|---|---|---|---|
Identidade de gênero | ||||
Mulher trans/travesti | 1,00 | 1,00 | 0,020 | |
Homem transexual | 9,04 | 2,77 | 1,172 6,546 | |
Anos Estudos | ||||
Menor ou igual a 8 | 1,00 | 1,00 | ||
9 a 11 | 7,25 | 4,91 | 1,997 12,0845 | 0,001 |
12 e mais | 18,92 | 7,50 | 2,794 20,158 | < 0,000 |
Realizando algum acompanhamento médico | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 2,23 | 1,87 | 1,015 3,447 | 0,044 |
Esta realizando acompanhamento para processo transexualizador | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | ||
Sim | 5,86 | 2,14 | 1,058 4,364 | 0,034 |
Possui convênio / seguro de saúde partiular | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | < 0,000 | |
Sim | 5,16 | 2,86 | 1,588 5,179 | |
Já foi preso alguma vez na vida | ||||
Sim | 1,00 | 1,00 | 0,015 | |
Não | 6,29 | 3,36 | 1,268 8,950 |
Fonte: Projeto Muriel
* P ajustado
O percentual da população transexual inserida no mercado formal de trabalho foi extremamente baixo: apenas 16,7% estavam com vínculo formal. Os fatores associados a possuir um vínculo formal identificados foram: identidade de gênero homem transexual, possuir 12 anos ou mais de escolaridade, estar em algum acompanhamento médico, estar em acompanhamento para processo transexualizador, ter convênio médico particular e nunca ter sido preso na vida.
Ao comparar o percentual de inserção da população transexual no mercado formal de trabalho com os dados da população geral, Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) na região metropolitana de São Paulo, observou-se que o percentual de indivíduos com vínculo formal de trabalho em 2014 e 2015 foi, respectivamente, 55,3% e 54,9%, números muito superiores ao encontrado na população de transexual24.
A população de transexual ocupada, mas não incluída no mercado de trabalho formal apresentou uma frequência muito mais elevada que aquela encontrada nas estatísticas relativas à população geral, como a PME, que encontrou 25,9% da população no mercado informal no ano de 201525. Essa diferença parece não ser um fenômeno exclusivamente brasileiro. Em um estudo com a população de pessoas transexuais nos Estados Unidos em 2011, de 6.450 transexuais entrevistadas a frequência de não empregadas, foi o dobro do encontrado na população em geral8. Adicionalmente, é possível que os nossos dados também reflitam a conjuntura socioeconômica do Brasil nos anos mais recentes: aumento do percentual de pessoas na informalidade, o que agravaria a desigualdade no que diz respeito às pessoas transexuais, já vítimas de estigma e discriminação e com maior dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho18,19.
Embora se reconheça que a informalidade no trabalho possa ser uma escolha, deve-se levar em consideração que a falta de contribuição previdenciária torna esse trabalhador ainda mais vulnerável11,25. A contribuição previdenciária, cuja finalidade é garantir alguma segurança e tranquilidade em caso de afastamento do trabalho, seja por aposentadoria, doença, invalidez ou desemprego, no Brasil é prerrogativa para os trabalhadores com carteira assinada, sendo menos frequente entre os não ocupados e com ocupação não formal11,17. No presente estudo, dentre os que atuam na informalidade, próximo de 80% não contribuíram com a previdência, bem superior à encontrada para a população geral, uma média anual de 22,0%, em 2014 e 201524. Valores semelhantes aos nossos foram encontrados por Bonassi em Santa Catarina: 74% de transexuais ou travestis relataram não contribuir para a previdência19,24.
Observou-se que a população transexual não ocupada apresentou dificuldades financeiras: 37,8% moravam em residências provisórias e mais da metade relatou viver com renda mensal inferior a dois salários mínimos. O rendimento médio na população geral no ano de 2014 e 2015 na região metropolitana de São Paulo foi um pouco mais que três salários mínimos à época24.
A ocupação relatada por 40% dos entrevistados neste estudo foi o trabalho sexual, o que corrobora com achados de outros estudos18,26. Embora o trabalho sexual conste na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO27, sua atuação não é regulamentada no Brasil, ou seja, essa atividade é exercida totalmente na informalidade. A inserção no mercado como trabalhador (a) sexual é provavelmente um dos resultados do estigma de que são vítimas as pessoas transexuais, o que motiva o abandono precoce da escola e a dificuldade de profissionalização por baixa escolaridade. Além disso, a população de mulheres transexuais trabalhadoras do sexo é extremamente vulnerável, em especial, às infecções sexualmente transmissíveis, constituindo-se uma das populações mais afetada globalmente pela infecção do HIV28-30.
Homens transexuais apresentaram maior probabilidade de estarem inseridos no mercado de trabalho formal do que mulheres transexuais. Pode-se inferir sobre uma eventual influência da geralmente alta passabilidade - aparência em concordância com a identidade de gênero com a qual se identifica - dos homens transexuais após o uso de hormônios, que os protegeria de serem identificados como pessoas transexuais, e, consequentemente, poderiam sofrem menor discriminação.
Estudos apontam também que a desigualdade de gênero que persiste no ambiente de trabalho das pessoas cis gênero é reproduzida na esfera da população transexual24. Corroborando esta hipótese, investigação realizada nos EUA mostrou que mesmo após a transição de gênero, a probabilidade de mulheres transexuais encontrarem emprego é menor8. Segundo relatos de mulheres transexuais ou travestis entrevistadas em Salvador, as dificuldades para a inserção no mercado de trabalho formal eram muito maiores após a transição de gênero31. Em contrapartida, homens transexuais, após a transição de gênero, apresentaram maior possibilidade de entrada no mercado, assim como obtiveram melhora na renda32-34. Especificamente o estudo de Davidson33, demonstrou que mulheres transexuais são mais discriminadas no momento da contratação, recebendo mais recusa em serem contratadas do que homens transexuais. Essa diferenciação também se estendeu para outras categorias da análise, como piores emprego e ganhos salariais, sempre com resultados negativos para as mulheres transexuais33.
O percentual de transexuais entrevistados com nível superior em nosso estudo foi de apenas 16,2%, enquanto na população em geral da região metropolitana de São Paulo este percentual no mesmo ano de realização do estudo foi de 66%24. Em outras regiões do Brasil também foi encontrada baixa escolaridade da população de pessoas transexuais. Bonassi et al.19, em estudo realizado em Santa Catarina, observou que 33,9% (N = 100) de transexuais e travestis abandonaram os estudos entre os 16 e 19 anos de idade. Na região metropolitana de Recife, de 100 travestis incluídas, entre 2008 e 2009, 17,4% tinham menos de quatro anos de estudos e 44,9% não chegaram a concluir o ensino fundamental35.
É razoável supor que ter 12 anos ou mais de estudo seja um fator positivamente associado à inserção no mercado de trabalho formal. No entanto, este achado não é consistente na literatura: Bauer e Scheim, estudando discriminação e preconceito contra transexuais no Canadá, encontraram uma frequência elevada de transexuais com escolaridade alta, que não estavam inseridos no mercado de trabalho ou não estavam colocados em atividade de acordo com o respectivo grau de qualificação36. No Brasil, Rondas e Machado também identificaram que, ainda que seja uma estratégia a ser perseguida, a elevada escolaridade nem sempre garante a inserção dessa população no mercado de trabalho18. A baixa escolaridade pode ser explicada, entre outros fatores, por ser a escola um ambiente hostil às pessoas transexuais. Nos EUA, em 2011, transexuais relataram ter sofrido na escola: assédio (78%), agressão física (35%) e violência sexual (12%)8, em função de sua identidade de gênero.
Interessante destacar que se encontrou associação entre as variáveis relacionadas ao acesso a cuidados de saúde e a inserção no mercado de trabalho formal: estar realizando acompanhamento para o processo transexualizador e relatar possuir convênio médico privado. É possível que as razões que permitiram estar inserido no limitado número de vagas nos serviços em que são realizados os procedimentos de transição sejam as mesmas pelas quais foram rompidas outras barreiras: como a educação e o acesso ao mercado formal de trabalho. No Brasil, entre 2008 e 2015, dados do Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) indicam que foram realizadas apenas 320 cirurgias de processo de transexualizador37, havendo longas de filas de espera. Outros estudos também mencionam relações entre o acesso ao mercado de trabalho e os procedimentos de transição de pessoas transexuais. O estudo PRIDE, da OIT26, observou que entre as dificuldades apontadas por pessoas transexuais para inserção no mercado de trabalho encontravam-se: ter uma expressão de gênero que não se adequa ao nome apresentado em documento oficial de identificação e apresentar transição incompleta por dificuldades em acessar os procedimentos necessários para efetiva-la26. No Brasil, estudo de 2012 observou que entre os diversos motivos para a não realização do processo transexualizador encontravam-se: desvantagens de empregabilidade no mercado formal em decorrência da discriminação da identidade de gênero transexual e insuficiência de recursos financeiros para custear o processo2. Há outros possíveis fatores que podem fazer com que os procedimentos de transição de gênero interfiram na inserção profissional: a realização de uma cirurgia de redesignação sexual pode levar a um longo período de afastamento e cuidados38. Para aqueles inseridos na formalidade, neste período há garantia dos benefícios da previdência social, isto é, ainda que estejam afastados do trabalho, sua renda se mantém, o que dificilmente ocorre com os ocupados na informalidade.
Nossos achados corroboram as considerações de Almeida et al.39, que reforçam a necessidade de levar em conta todos os fatores envolvidos no complexo objeto da saúde e seus determinantes na população transexual, não sendo possível propor intervenções focadas apenas nas manipulações do corpo.
Este estudo apresenta limitações, dentre as quais a seleção dos participantes ter sido realizada em serviços de saúde especializados – entre eles, um ambulatório de saúde integral de travestis e transexuais – e de assistência social, o que poderia resultar em viés de seleção. Outro ponto que deve ser levantado é que o desenho do estudo não foi realizado para investigação da inserção no mercado de trabalho. No entanto, trata-se de um estudo de base populacional com uma amostra grande, e que incluiu pessoas em diferentes regiões do estado de São Paulo, possibilitando levantar um conjunto de informações até então não exploradas para caracterizar acesso ao mercado de trabalho.
Neste estudo foi possível conhecer como se dá a inserção da população de transexuais no mercado de trabalho e os fatores que o favorecem ou dificultam. Destacou-se o baixo percentual de inserção no mercado formal dessa população elevando a sua vulnerabilidade. Dos fatores associados à inserção no mercado de trabalho, torna-se relevante enfatizar as políticas públicas de inclusão escolar, tolerância e respeito à diversidade de identidade de gênero nas instituições de ensino, para reverter o cenário de abandono escolar e consequentemente baixa escolaridade. Outro importante aspecto foi a necessidade de efetivação do acesso ao processo transexualizador no Sistema Único de Saúde, como ação necessária para a redução das desigualdades vivenciadas por transexuais no mercado de trabalho.
Os nossos resultados indicam a necessidade de políticas públicas que tenham como objetivo reduzir o estigma e a discriminação, melhorar o acesso à educação e à qualificação profissional das pessoas transexuais, tornando mais equânime a disputa por uma vaga no mercado de trabalho formal.