versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.10 Rio de Janeiro out. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320141910.09342014
The paradigm of the "safe use" of pesticides is based on measures to control risks in the handling of these products. However, studies carried out in various regions of Brazil reveal a situation of widespread exposure and health damages among rural workers, revealing the ineffectiveness of this paradigm. This work presents a critical review of the "safe use" approach for pesticides in scientific papers published in Brazil in the past 15 years. Results indicate that these studies do not address, simultaneously, all the work activities that involve exposure and risk of intoxication (acquisition, transportation, storage, preparation and application, final disposal of empty containers and sanitization of contaminated clothes/ PPEs), nor do they comprehensively address the "safe use" measures recommended in safety manuals, which are mandatory for each activity. A total of 25 studies were selected and analyzed, revealing a high number of results and analyses regarding activities of preparation and application and final disposal of empty containers. The range of the approaches was seen to be timely in the six work activities. For future studies, a broader approach of the "safe use" of pesticides is recommended, seeking to reveal the complete infeasibility of this safety paradigm.
Key words: Pesticides; Occupational risks; Environmental health; Public health surveillance
Em 2013, a Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) divulgou um aumento de 10,3% nas vendas de agrotóxicos no Brasil, atingindo movimentação de US$ 9,4 bilhões em 2012, ante US$ 8,5 bilhões em 20111. Nos últimos 12 anos, o mercado brasileiro de agrotóxicos cresceu 190%, tornando o País, desde 2008, o maior consumidor dessas substâncias no mundo2-4. O recorde de consumo de agrotóxicos e o contexto atual químico-dependente de produção de alimentos são reflexos da "modernização do campo" adotada pelo governo brasileiro, a partir da década de 1960, que modificou as práticas agrícolas no País5.
Essa modernização, através de transferência de tecnologia, foi financiada por instituições responsáveis pela expansão internacional de empresas estadunidenses - como a USAID, Rockfeller e Ford Foundation e o Banco Mundial - e foi denominada "revolução verde" pelo diretor da USAID, em 19686. Dentro do pacote da "revolução verde" duas práticas se complementavam: a monocultura, que favorece a proliferação de "pragas agrícolas"7, e o uso intensivo de agrotóxicos, solução tecnológica para o controle dessas "pragas"8.
Para que o modelo agroquímico de produção se estabelecesse, foram adotadas no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, medidas governamentais que, articuladas, impulsionaram o acesso de trabalhadores rurais aos agrotóxicos. Entre as principais estavam o Sistema Nacional de Crédito Rural, que atrelava o crédito rural à obrigatoriedade de compra de insumos químicos, e o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas, que financiava a criação de empresas nacionais e a instalação de empresas transnacionais do setor no País. Mesmo estabelecido, este modelo recebe, até os dias de hoje, permanente apoio dos governos municipais, estaduais e federal, principalmente, através de isenções fiscais concedidas às indústrias químicas produtoras de agrotóxicos9.
Além desses subsídios, os custos sociais, sanitários e ambientais de curto, médio e longo prazos, gerados pela utilização intensiva de agrotóxicos, foram assumidos por toda a população, através de gastos públicos com a recuperação de áreas contaminadas, com o tratamento de intoxicações agudas e crônicas, afastamentos e aposentadorias por invalidez de trabalhadores rurais, além dos irreparáveis danos familiares causados pelas mortes decorrentes da utilização dessas substâncias. Soares e Porto10-12 utilizam o conceito de externalidade negativa para definir a socialização desses custos de responsabilidade direta das indústrias químicas, apontando que a não contabilização dos impactos negativos à saúde humana e ao meio ambiente, no preço final dos produtos agrotóxicos, associada ao apoio fiscal fornecido pelo Estado às indústrias químicas e ao discurso da indissociabilidade do aumento da produtividade e do uso de agroquímicos (sustentado pela bancada ruralista no Congresso Nacional), acaba por maquiar o custo real decorrente da utilização dessa tecnologia de controle de "pragas", e por subsidiar econômica e ideologicamente a decisão do agricultor em aderir ao modelo hegemônico-convencional de produção.
Paralelamente às externalidades negativas, a resposta do governo brasileiro aos questionamentos internacionais e internos, sobre os impactos do uso intensivo de agrotóxicos, também atendeu aos interesses das indústrias químicas e, consequentemente, incentivou o modelo de produção baseado no uso de biocidas. A Lei n˚ 7.802/198913, conhecida como Lei dos Agrotóxicos, o Decreto 4.074/200214 que a regulamenta, assim como a Norma Regulamentadora nº 31 (NR 31)15 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), assumiram as diretrizes do Código Internacional de Conduta para a Distribuição e Uso de Agrotóxicos16 - elaborado pela Food and Agriculture Organization (FAO), órgão das Nações Unidas (ONU) para elaboração de políticas e diretrizes regulatórias em relação à produção de alimentos, em parceria com o International Group of National Associations of Agrochemical Manufacturers (GIFAP), associação das indústrias químicas responsável por garantir os interesses deste setor em âmbito internacional (renomeada para Global Crop Protection Federation, na década de 1980, e para Croplife International, na década de 1990)17,18 - como base conceitual19. Definiu-se, assim, as responsabilidades de empregadores rurais e entes federados para o cumprimento e fiscalização de medidas de proteção ao invés de definir a priorização do Estado brasileiro, através de políticas públicas e incentivos econômicos, no desenvolvimento de tecnologias não químicas de controle de "pragas", como forma preventiva de mitigação dos danos provocados pela utilização de agrotóxicos. Desta forma, a efetividade do paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos, desenvolvido pelas indústrias químicas, recai sobre a (in)capacidade do Estado brasileiro em fiscalizar e controlar as práticas de trabalho em todos os estabelecimentos rurais, assim como em garantir o treinamento de cada trabalhador rural que manipule essas substâncias19,20.
As indústrias químicas por sua vez, amparadas pela legislação brasileira referente aos agrotóxicos, incentivam a expansão do uso de seus produtos através de práticas de marketing e comercialização agressivas21,22 e, ao mesmo tempo, se desresponsabilizam pelos impactos à saúde dos agricultores promovendo as medidas de "uso seguro". Os manuais de segurança elaborados pela Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef)23-28 vinculam, inicialmente, bons resultados, alimentos saudáveis e economia no campo à utilização de agrotóxicos. Em seguida, descrevem diversas medidas a serem adotadas em cada uma das atividades de trabalho com risco potencial de intoxicação (aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final de embalagens vazias e lavagem de roupas/EPI contaminados), creditando os perigos e acidentes envolvidos na manipulação dos agrotóxicos ao "uso incorreto" por parte do trabalhador e não à toxicidade das formulações e à imposição do modelo agroquímico de produção no País, sem que as diversas e distintas realidades sociais, econômicas, culturais e geográficas da agricultura fossem consideradas29. O Quadro 1 apresenta um resumo das medidas que devem ser seguidas nas atividades de trabalho citadas para que o uso de agrotóxicos não seja considerado "inadequado" e traga proteção à saúde dos trabalhadores rurais.
Quadro 1 Resumo das medidas de “uso seguro” referentes às atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final das embalagens vazias e lavagem das roupas/EPI contaminados por agrotóxicos descritas nos manuais da ANDEF
Aquisição | Transporte | Armazenamento |
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Consultar Engenheiro Agrônomo | Verificar com o comerciante se é necessário cuidado especial para transportar os agrotóxicos adquiridos | Depósito deve ser separado de outras construções e estar livre de inundações |
Usar Receituário Agronômico/ e guardar a segunda via | Verificar se a nota fiscal está preenchida com as disposições exigidas no Regulamento de Transporte de Produtos Perigosos (RTTP) | Depósito deve estar a uma distância mínima de 30 metros de fontes de água, residências e instalações para animais |
Exigir Nota Fiscal e guardá-la para consultar o endereço da unidade de recebimento de embalagens vazias | Verificar se a Ficha de Emergência e o Envelope de Transporte acompanham a nota fiscal | Construção de alvenaria, com piso cimentado e telhado resistente, sem goteiras |
Aproveitar para comprar EPI | Verificar se os agrotóxicos estão dentro do limite de isenção para transporte (dependente da classificação toxicológica) | Construção com boa ventilação e iluminação natural. Não permitir entrada de animais |
Conferir prazo de validade dos agrotóxicos | Se a quantidade estiver dentro do limite de isenção, usar veículo com caçamba externa (caminhonete, caminhão, etc.) | As instalações elétricas devem estar em boas condições para evitar curto-circuito e incêndios |
Verificar se existem danos e/ou vazamentos na embalagem | Se quantidade acima do limite de isenção, solicitar entrega por motorista e veículo preparados segundo RTTP | Portas devem permanecer trancadas para evitar entrada de crianças e pessoas não autorizadas |
Verificar se informações de rótulo e bula estão legíveis | Não transportar dentro da cabine e nunca transportar embalagens danificadas e/ou com vazamentos | Embalagens devem ser colocadas em prateleiras de metal ou sobre estrados, sem contato com o piso, paredes e teto |
Perguntar sobre como usar os EPI | Não transportar na carroceria junto com pessoas, animais, alimentos, rações ou medicamentos | Não armazenar junto com alimentos, rações, sementes, medicamentos e produtos inflamáveis |
Certificar se o comerciante forneceu informação sobre local de devolução de embalagens vazias | Usar cofre de carga para acondicionar os agrotóxicos em caso de transporte com outro tipo de produto | Não fazer estoques além das quantidades para uso em curto prazo |
Cobrir as embalagens com lona impermeável, presa à carroceria | Os agrotóxicos devem ser mantidos nas embalagens originais e fechadas | |
Em caso de acidente providenciar recolhimento das porções vazadas. EPI devem estar disponíveis no veículo | O rótulo deve sempre permanecer visível e legível e as embalagens separadas por tipo (herbicidas, inseticidas, etc.) | |
Preparo e aplicação | Destino final embalagens vazias | Lavagem roupas/EPIs contaminados |
O manuseio deve ser feito por pessoas adultas (entre 18 e 60 anos) e bem informadas sobre os riscos (com treinamento de no mínimo 20 horas) | Devolver todas as embalagens vazias dos agrotóxicos na unidade de recebimento indicada pelo comerciante na nota fiscal | Usar luvas de Nitrila ou Neoprene e avental impermeável |
Ler nos rótulos e bulas as informações sobre manuseio, precauções, primeiros socorros, destinação de embalagens vazias, equipamentos de proteção, etc. | Realizar tríplice lavagem, lavagem sob pressão ou acondicionamento de embalagens não laváveis, seguindo os procedimentos específicos de cada atividade | Lavar as roupas/EPI usados no preparo e aplicação separados das demais roupas da família e em tanque exclusivo para a atividade |
Utilizar EPI para proteger a saúde, reduzindo os riscos de intoxicação | Inutilizar as embalagens (perfurar o fundo) para armazenamento pré-devolução e para devolução | Enxaguar com bastante água corrente para diluir e remover os resíduos de agrotóxico |
Os EPI necessários são: calça, jaleco, botas, avental, respirador (máscara), viseira, luvas, boné árabe. Cada um deve seguir disposições específicas | Devolver as embalagens em até um ano e meio após a compra | Usar sabão neutro e não deixar de molho |
Lavar as luvas ainda vestidas e seguir uma sequência lógica para retirar os EPI (boné, viseira, avental, jaleco, botas, calça, luvas, respirador) | Apresentar nota fiscal de compra de cada produto no momento da devolução | Não usar alvejante nem esfregar as roupas hidrorrepelentes |
Preparar ao ar livre e longe de crianças, animais e pessoas desprotegidas. | Passar as roupas hidrorrepelentes para prolongar a vida útil | |
Usar água limpa para evitar entupimento dos bicos do pulverizador | Não colocar os EPI para secar ao sol | |
Utilizar balanças, copos graduados, baldes e funis específicos para preparar a calda. Lavar os utensílios ao término do preparo e secar ao sol | Após lavadas e secas, guardar as roupas/EPI utilizados no preparo e aplicação separados das demais roupas da família | |
Ler manual de instruções do equipamento de aplicação e calibrar corretamente | O esgotamento da água de lavagem deve ser feito direto para fossa séptica para tratamento de resíduos químicos | |
Não utilizar equipamentos de aplicação com defeitos ou vazamentos | ||
Verificar velocidade do vento e temperatura antes de aplicar (dar preferência para horários menos quentes do dia) | ||
Não desentupir bicos com a boca, não beber, comer ou fumar durante aplicação. Lavar mãos e rosto antes de comer, beber ou fumar | ||
Manter barba e unhas feitas. Tomar banho assim que terminar aplicação e colocar roupas limpas | ||
Respeitar período de reentrada (tempo em que ninguém deve entrar sem EPI nas áreas tratadas) e o intervalo de segurança (tempo que deve ser respeitado entre aplicação e colheita) |
No entanto, estudos realizados no Brasil têm mostrado que o contexto atual de utilização intensiva e indiscriminada de agrotóxicos, associado ao paradigma de proteção de trabalhadores rurais através do "uso seguro", não traz perspectivas de redução dos casos intoxicações agudas30-46 e dos agravos à saúde decorrentes da exposição de longo prazo47-51.
Este artigo apresenta uma revisão crítica sobre o "uso seguro" de agrotóxicos em artigos científicos brasileiros. O objetivo é identificar nesses trabalhos a abordagem de cada uma das seis atividades de trabalho que apresentam risco potencial de intoxicação de trabalhadores rurais e a abrangência com que as diversas medidas de segurança, descritas como determinantes para a manipulação "correta" e com "controle dos riscos" dos agrotóxicos, são abordadas em cada uma dessas atividades.
Artigos científicos publicados entre os anos 2000 e 2014, com investigação baseada em dados empíricos coletados no Brasil, foram procurados. Esta abrangência temporal foi definida devido à concentração de pesquisas relacionadas ao uso e às intoxicações por agrotóxicos no País a partir do ano 2000. Acredita-se que após dez anos de vigência da Lei dos Agrotóxicos13 e do exponencial crescimento do consumo desses produtos no Brasil, ficou evidente a necessidade de investigar as consequências do uso intensivo de agroquímicos e a eficácia da legislação no que diz respeito à proteção da saúde dos trabalhadores rurais.
As buscas, realizadas em dezembro de 2012, novembro de 2013 e maio de 2014, incluíram o banco de dados SCIELO, utilizando-se os descritores: agrotóxicos AND saúde; praguicidas AND saúde; pesticidas AND saúde. Optou-se por esta busca ampla após perceber-se a diversidade de palavras utilizadas nos manuais de "uso seguro" de agrotóxicos para se referir às atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final de embalagens vazias e lavagem de roupas/ EPI contaminados e aos aspectos referentes a cada uma destas atividades. Além disso, entendeu-se que todo trabalho que aborde as medidas de "uso seguro" nestas seis atividades, e as relacione com aspectos de saúde de trabalhadores rurais, estaria dentro da abrangência desta busca.
Todos os artigos encontrados tiveram seus títulos e resumos lidos para identificação e seleção de trabalhos que pudessem apresentar algum tipo de abordagem sobre o "uso seguro" de agrotóxicos.
Nos trabalhos selecionados, utilizou-se a ferramenta de localização de palavras do software de leitura de arquivos em formato PDF para identificar, em toda a extensão textual dos artigos, palavras relacionadas às especificidades das seis atividades de trabalho. Para a atividade de aquisição, foram utilizadas as palavras "aquisição", "compra", "venda", "receituário agronômico", "receita" e "nota fiscal"; para a atividade de transporte, utilizou-se as palavras "transporte", "caminhonete", "caçamba", "carroceria", "carro", "cabine", "trânsito" e "multa"; para identificar artigos com abordagem sobre a atividade de armazenamento, buscou-se as palavras "armazenamento", "acondicionamento", "armazenar", "acondicionar", "guardar", "estocar", "estoque", "construção", "estrutura", "prateleira", "estrado" e "embalagem"; para a atividade de preparo e aplicação, foram utilizadas as palavras "preparo", "preparar", "mistura", "calda", "aplicação", "pulverização", "aplicador", "bomba", "manuseio", "manipulação", "rótulo", "bula", "EPI", "equipamento", "proteção", "período de carência", "período de reentrada", "intervalo de segurança" e "higiene pessoal"; a atividade de destino final de embalagens vazias foi identificada através das palavras "devolução", "descarte", "destino", "lixo", "coleta", "entrega", "embalagem", "embalagens", "vasilhame", "vazia", "tríplice lavagem", "queima", "reaproveitar", "inutilizar" e "perfurar"; e para a atividade de lavagem de roupas/ EPI contaminados foram utilizadas as palavras "lavar", "lavagem", "roupas", "EPI", "equipamentos" e "tanque".
Após a leitura completa dos trabalhos selecionados na etapa anterior, foram excluídos os debates, artigos de revisão, ensaios, artigos originais com análise de dados secundários e também artigos originais que citavam, em sua fundamentação teórica, atividades de trabalho e medidas de segurança de interesse para esta revisão, porém, não traziam resultados e/ou análises de dados coletados sobre as mesmas. Permaneceram, portanto, apenas estudos empíricos de campo que buscavam investigar as implicações da manipulação de agrotóxicos à saúde de trabalhadores rurais.
É importante ressaltar que não foram consideradas como critérios para a seleção dos artigos a metodologia utilizada (se quantitativa ou qualitativa) nem a qualidade científica dos resultados e discussões apresentados nos trabalhos, mas sim, se apresentavam conteúdo sobre o "uso seguro" de agrotóxicos. Por fim, não necessariamente o "uso seguro" deveria ser o tópico primário destes trabalhos, mas sim, deveriam apresentar algum tipo de abordagem de atividade(s) de trabalho que envolva(m) risco e/ou medida(s) de segurança que faça(m) parte do escopo do paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos.
Foi encontrado um total de 114 artigos contendo as palavras "agrotóxicos", ou "praguicidas", ou "pesticidas" e "Saúde". A leitura dos títulos e resumos dos 114 artigos permitiu a seleção de 60 que sugeriam algum tipo de abordagem sobre o "uso seguro" de agrotóxicos. Destes, 41 artigos contendo palavras relacionadas às especificidades das seis atividades de trabalho em estudo foram identificados e selecionados. Após a leitura completa dos mesmos, chegou-se à seleção final de 25 artigos que abordam práticas de trabalho e medidas de segurança relacionadas aos agrotóxicos nas atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final de embalagens vazias e lavagem de roupas/EPI contaminados, apresentando e analisando dados coletados em diversas e distintas regiões e comunidades rurais brasileiras.
Através da revisão dos artigos da seleção final, foram encontrados 10 estudos apresentado dados referentes às medidas de "uso seguro" na atividade de aquisição de agrotóxicos; apenas um abordando práticas relacionadas ao transporte; seis apresentavam abordagem sobre práticas de armazenamento; 25 trazendo resultados e/ou análises sobre práticas relacionadas às medidas de segurança no preparo e aplicação de agrotóxicos; 17 abordando práticas de segurança relacionadas ao destino final de embalagens vazias; e nove com dados referentes às práticas de lavagem de roupas/ EPI contaminados. As atividades abordadas em cada artigo, o local de realização da coleta de dados, assim como os autores e o ano de publicação, estão descritos no Quadro 2.
Quadro 2 Estudos segundo abordagem das atividades de trabalho com agrotóxicos. Brasil, 2000-2014
Estudo | Local do estudo | AQ | TR | AR | PeA | DFE | LRCa |
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Araújo ACP, Nogueira DP, Augusto LGS, 200052 | Camocim de São Félix e perímetro irrigado do Vale do São Francisco (PE) | X | X | X | X | ||
Faria NMX et al., 200030 | Antônio Prado e Ipê (RS) | X | X | X | |||
Oliveira-Silva et al., 200131 | Magé (RJ) | X | |||||
Moreira JC et al., 200253 | Nova Friburgo (RJ) | X | |||||
Soares W, Almeida RM, Moro S, 200332 | Teófilo Otoni, Gudoval, Guiricema, Montes Claros, Paracatu, Piraúba, Tocantins, Ubá, Uberlândia (MG) | X | X | ||||
Delgado IF, Paumgartten FJR, 200454 | Paty do Alferes (RJ) | X | X | X | X | X | |
Faria NMX et al., 200433 | Antônio Prado e Ipê (RS) | X | X | ||||
Gomide M, 200555 | São João da Costa e São João do Piauí (PI) | X | X | X | |||
Castro JSM, Confalonieri U, 200534 | Cachoeiras de Macacu (RJ) | X | X | X | X | X | |
Soares WL, Freitas EAV, Coutinho JAG, 200535 | Teresópolis (RJ) | X | X | X | |||
Shmidt MLG, Godinho PH, 200636 | Interior do Estado de SP (SP) | X | X | X | |||
Fonseca MGU et al., 200756 | Barbacena (MG) | X | X | ||||
Araújo AJ et al., 200757 | Nova Friburgo (RJ) | X | |||||
Recena MCP, Caldas ED, 200858 | Culturama (MS) | X | X | X | |||
Brito PF, Gomide M, Câmara VM, 200939 | Serrinha do Mendanha, município do Rio de Janeiro (RJ) | X | X | X | X | ||
Alves SMF, Fernandes PM, Reis EF, 200942 | Bonfinópolis, Corumbá de Goiás, Goianópolis, Leopoldo de Bulhões, Pirenópolis e Silvânia (GO) | X | |||||
Jacobson LSV et al., 20095 | Santa Maria de Jetibá (ES) | X | X | X | |||
Bedor CNG et al., 200941 | Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) | X | X | X | |||
Faria NMX, Rosa JAR, Facchini LA, 200940 | Bento Gonçalves (RS) | X | X | X | |||
Marques CRG, Neves PMOJ, Ventura MU, 201043 | Londrina (PR) | X | X | X | |||
Gregolis TBL, Pinto WJ, Peres F, 201259 | Rio Branco (AC) | X | X | ||||
Júnior EEF et al., 201260 | Ponta Porã (MS) | X | X | ||||
Gonçalves GMS et al., 201246 | Pesqueira (PE) | X | X | X | |||
Preza DLC, Augusto LGS, 201244 | Conceição do Jacuípe (BA) | X | X | X | |||
Silva JPL, Araújo MZ, Melo LCQ, 201361 | São José de Princesa (PB) | X | X | X |
a Legenda: AQ - Aquisição; TR - Transporte; AR - Armazenamento; PeA - Preparo e Aplicação; DFE - Destino final de embalagens vazias; LRC - Lavagem de roupas/EPIs contaminados.
A leitura detalhada dos 10 artigos, que descrevem práticas de agricultores na atividade de compra dos agrotóxicos, revela que a abordagem desses trabalhos se resume a três medidas: conhecimento e uso da receita agronômica32,34,35,40,41,46,52, orientação técnica no momento da compra32,40,52,58,61 e responsável pela indicação do agrotóxico a ser comprado34,41,54.
Com relação ao uso da receita agronômica, Araújo et al.52 apontam que apenas 36,0% dos agricultores entrevistados afirmaram precisar deste instrumento para adquirir os agrotóxicos, sendo que 30,0% dos trabalhadores sequer o conheciam. Bedor et al.41, Gonçalves et al.46 , Soares et al.32 , Castro e Confalonieri34 e Soares et al.35 descrevem o não uso da receita agronômica por, respectivamente, 64,7%, 67,2%, 83,3%, 85,0% e 88,9% dos entrevistados. Apenas Faria et al.40 apontam que a maioria dos entrevistados (84,6%) recebem a cópia da receita no momento da compra. No entanto, o mesmo trabalho indica que 73,0% dos entrevistados recebem orientação técnica de vendedores ou técnicos da cooperativa.
Essa orientação com conflito de interesse, que inviabiliza o aspecto de segurança da receita agronômica, é também recebida por 74,1% dos agricultores entrevistados no trabalho de Recena e Caldas58. Estes, assim como Silva et al.61, trazem falas transcritas de agricultores evidenciando que tais orientações se restringem à dosagem do agrotóxico a ser preparado e aplicado. Os comércios responsáveis pela venda dos agrotóxicos são incipientes quanto à orientação [...]. Falta orientação quanto ao descarte e aos riscos que essas pessoas estão sujeitas...61, ressaltam os autores. Soares et al.32 ainda apontam, através de inferência estatística, que os trabalhadores que recebem orientação do vendedor na compra e no uso de agrotóxicos têm 73% a mais de chance de se intoxicar em relação àqueles que não têm o vendedor como orientador32.
Por fim, Faria et al.40, Delgado e Paumgartten54 e Castro e Confalonieri34 revelam que familiares, vizinhos e amigos agricultores, sócios e donos das terras onde trabalham os agricultores entrevistados exercem papel mais importante na indicação do agrotóxico a ser adquirido, do que técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), ou Engenheiros Agrônomos que não são funcionários de estabelecimentos comerciais.
A atividade de transporte de agrotóxicos por agricultores, apesar de oferecer riscos a estes trabalhadores, a outros motoristas e passageiros é a atividade que apresenta maior carência em relação a estudos que abordam medidas de "uso seguro" na utilização destes produtos.
No único trabalho encontrado que faz alusão ao transporte de agrotóxicos, Shmidt e Godinho36 afirmam que a maioria dos entrevistados toma os cuidados necessários durante o transporte de tais produtos36, porém, não especificam quais das diversas medidas obrigatórias para que a atividade possa ser considerada segura são realizadas. Em seguida, ao apresentarem falas de agricultores, que evidenciam o transporte de agrotóxicos juntamente com outros produtos, e também a preocupação dos trabalhadores rurais com a fiscalização de trânsito e não com a proteção da própria saúde, os autores afirmam que alguns discursos denunciam o descaso dos entrevistados36.
Entende-se que o emprego da palavra "descaso", desvinculada de qualquer análise sobre a viabilidade econômica e prática de se realizar mais de uma viagem aos centros urbanos, para transportar separadamente agrotóxicos e demais produtos, e sobre a inexistência de políticas públicas que responsabilizem indústrias químicas e estabelecimentos comerciais pelos riscos e acidentes de trânsito envolvendo agrotóxicos, acaba por corroborar a culpabilização do agricultor e, consequentemente, as intenções das indústrias químicas com a implantação do paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos.
O local de armazenamento dos agrotóxicos (construção independente da residência, ar livre ou dentro de casa)34,39,43,44,55 e se este local permanece trancado43,54 são as únicas medidas abordadas pelos seis artigos que trazem resultados sobre essa atividade.
Sem apresentar a frequência de agricultores que armazenavam agrotóxicos em local considerado inseguro, Gomide55 verificou que estes podiam estar 'escondidos' entre os ramos dos vegetais, em galhos de árvores ou em varandas, interior ou anexos de suas residências"55. Os demais artigos que abordam o local de armazenamento trazem frequências que variam de 1,7% a 24,0% de agricultores que afirmaram deixar os agrotóxicos ao ar livre ou guardar dentro da própria residência, práticas que envolvem risco de contaminação, por substâncias tóxicas concentradas, dos ambientes habitados e frequentados cotidianamente pela família.
Por outro lado, apesar dos mesmos estudos indicarem elevadas frequências (70,0% a 98,3%) de armazenamento em construções independentes da residência, como determina o paradigma do "uso seguro", nenhum destes artigos traz informações sobre as condições estruturais destes depósitos. Para afirmar que o armazenamento nestes locais é seguro, seria necessário avaliar materiais utilizados na construção, conservação de pisos, paredes, telhados e fiações elétricas, distância do local até residências e fontes de água, forma de acondicionamento dentro destes locais e aspectos como existência de placas de advertência e de controle de acesso aos agrotóxicos. Apenas quanto a esta última medida, Delgado e Paumgartten54 e Marques et al.43 indicam que 52,0% e 98,3% dos agricultores, respectivamente, guardam os agrotóxicos em local trancado.
A atividade de preparo e aplicação de agrotóxicos apresenta a maior abrangência no que diz respeito à abordagem das medidas de "uso seguro" nos artigos analisados. Todos os 25 trabalhos apresentam resultados relacionados com esta atividade. As medidas de segurança abordadas são leitura de rótulo e bula31,32,36,41,43,46,57,58, modo de uso e falta de assistência técnica31,34,35,44,53,54,57, período de carência32,35,39,44,52, higiene pessoal34,39,54,56,57, aspectos relacionados aos equipamentos de aplicação34,35,40,41,46, intervalo de segurança30, verificação das condições climáticas antes da aplicação52 e proximidade entre área de aplicação e a residência da família58.
No entanto, é importante ressaltar que apenas aspectos relacionados aos Equipamentos de Proteção Individual, como a utilização, quais os componentes utilizados, ineficácia dos mesmos, razões para o não uso, contato dos agrotóxicos com o corpo, etc., apresentam resultados e/ou análises em todos os estudos. Entre abordagens quantitativas e qualitativas, a grande maioria dos artigos indica a baixa adesão dos agricultores aos EPI5,34-36,39,42,44,46,52-54,56-61, sendo os principais motivos analisados o desconforto causado pelos mesmos5,34,35,39,42,43,54,56,58-61, a falta de recursos financeiros para adquiri-los5,36,39,46,54,55, e questões culturais39,42,54,61.
Quanto a ineficácia dos EPI, trabalho de Brito et al.39 afirma que é esperado que o uso de EPI possa minimizar a ocorrência de episódios de intoxicação, mas os extensos danos crônicos que o agrotóxico traz ao ambiente, à biodiversidade e ao próprio homem devem ser trabalhados através de uma mudança de paradigma na agricultura, que reduza e até mesmo um dia venha a excluir o uso destes químicos39. Já o trabalho de Faria et al.40 aponta que, apesar da grande adesão e da maior proporção de casos de intoxicação entre os que não usam EPI, ocorreram vários casos de intoxicação entre trabalhadores que sempre usavam essas medidas de proteção40(mais de 92,0% dos casos prováveis de intoxicação informaram usar sempre todos EPI), o que, segundo a análise dos autores, indica que fontes de exposição ambiental e alimentar, ou seja, não ocupacionais, e a não utilização dos EPI em atividades laborais que exigem a reentrada nas áreas recém pulverizadas, podem ter influenciado os resultados de intoxicação encontrados. No entanto, considerando-se o objeto de estudo desta revisão, acredita-se que estes casos de intoxicação podem também ter ocorrido nas demais práticas laborais que não as relacionadas diretamente com a atividade de preparo e aplicação de agrotóxicos.
Dentre os 17 artigos que abordam o destino dado às embalagens vazias de agrotóxicos, dois estudos trazem resultados sobre a forma/ local de descarte e sobre a realização da tríplice lavagem nas embalagens antes do descarte46,55. Gonçalves et al.46 revelam que apenas 5,4% dos agricultores entrevistados realizam esta técnica de lavagem e Gomide55 descreve que a tríplice lavagem não é realizada (nas localidades onde o estudo foi conduzido) tanto por desconhecimento como por falta de água para este fim55.
Os outros 15 trabalhos apontam apenas a forma/ local de descarte das embalagens, sendo que Fonseca et al.56 apenas citam que este é o único comportamento adequado em relação às normas de proteção. Soares et al.35 indicam que o recolhimento das embalagens pelo sistema de coleta de lixo é um fator de proteção identificado por sua pesquisa e Gomide55 lista variações da forma incorreta de descarte, porém, sem apresentar a frequência da realização destas pelos agricultores.
Brito et al.39, Araújo et al.52 , Silva et al.61, Recena e Caldas58, Faria et al.30, Castro e Confalonieri34, Delgado e Paumgartten54 e Gonçalves et al.46indicam que a quantidade de agricultores entrevistados que joga as embalagens vazias no mato, deixa na área de cultivo, queima, enterra, reaproveita para uso doméstico e/ou joga em lixo comum é maior que a quantidade de agricultores que entrega as embalagens no estabelecimento onde foi realizada a compra ou em postos de coleta destes vasilhames. Gonçalves et al.46 analisam que os entrevistados são orientados pelos vendedores a realizar a devolução em um posto de recolhimento distante da comunidade, o que, segundo os autores, é oneroso e corrobora para o descarte de embalagens no ambiente46.
Bedor et al.41, Jacobson et al.5, Faria et al.40, Shmidt e Godinho36, Preza e Augusto44 e Marques et al.43 apontam uma quantidade maior de agricultores que descartam as embalagens vazias seguindo os procedimentos recomendados nos manuais de segurança. Apesar dos resultados aparentemente positivos, Bedor et al.41 aponta mque a associação do comércio agropecuário, onde 78,0% dos entrevistados disseram entregar as embalagens, há cerca de um ano não realiza a coleta, o que justifica a observação de várias embalagens de agrotóxicos jogadas no meio do mato41 e Marques et al.43 revelam que muitos entrevistados relataram a longa distância da propriedade até o ponto de devolução, o que gera despesas, motivo que não incentiva a devolução da embalagem43. Já Shmidt e Godinho36 não analisam os aspectos que dificultam o cumprimento desta medida por parte dos agricultores e afirmam que, apesar da cooperativa disponibilizar postos próprios e conveniados apropriados para o recebimento das embalagens tríplice-lavadas [...] há alguns discursos que denunciam o descaso em relação ao procedimento, o que denota falta de conscientização de alguns sobre o problema da contaminação ambiental em decorrência do descarte inapropriado36, transferindo a responsabilidade das indústrias químicas, comércios e governos para os agricultores.
Na última atividade, onde medidas de segurança são determinantes para a proteção da saúde dos trabalhadores rurais, segundo o paradigma do "uso seguro" de agrotóxicos, a análise dos nove artigos, que trazem resultados sobre a lavagem de roupas/ EPI contaminados, revelou que, a prevalência de mulheres na realização desta atividade30,33,59,60, o local de realização da atividade34,35,52 e a separação das peças contaminadas das demais roupas da família no momento da lavagem54,60, foram os únicos aspectos abordados por estes trabalhos. Fonseca et al.56 apenas citam que, quanto à lavagem da roupa (contaminada), seria esperado que fosse adotado um comportamento que seguisse as normas de proteção. Entretanto, observa-se que nem sempre esses cuidados são efetivamente tomados56, sem apresentar resultados sobre quais medidas não eram seguidas e sobre quais eram os comportamentos esperados.
Com relação ao local de realização da atividade, Araújo et al.52 e Castro e Confalonieri34 apontam a predominância da utilização do ambiente (tanque) doméstico, enquanto Soares et al.35 revelam, por meio de inferência estatística, que lavar os equipamentos em tanque de uso doméstico aumenta as chances de intoxicação em 350%35. Júnior et al.60 e Delgado e Paumgartten54 apontam que a lavagem separada das roupas/ EPI contaminados das demais roupas da família não é realizada com a intenção de evitar contaminação destas, mas por considerarem essas "roupas de trabalho" mais sujas e mau cheirosas (odor dos agrotóxicos).
Por fim, Faria et al.30, Faria et al.33, Gregolis et al.59 e Júnior et al.60apontam que mulheres são majoritariamente responsáveis pela realização desta atividade, sendo que os dois últimos trabalhos apontam, respectivamente, uma possível invisibilidade dos riscos enfrentados pelas mulheres na realização desta atividade59 e a exposição somatória vivenciada pelas mulheres(através de exposição indireta mais a lavagem e higiene das roupas) [...] que gera possibilidade de transferência de resíduos de agrotóxicos dessas mulheres para fetos e para crianças por meio do leite materno60.
Através da revisão dos artigos que abordam medidas de segurança nas atividades de aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destino final de embalagens vazias e lavagem de roupas/ EPI contaminados, onde, segundo o paradigma do "uso seguro", tais medidas são determinantes para a proteção da saúde dos agricultores e para o controle dos riscos envolvidos na utilização de agrotóxicos, observou-se que a abrangência da abordagem do "uso seguro" nestas atividades, e a própria abordagem das seis atividades de trabalho que envolvem manipulação direta das substâncias biocidas, não vêm sendo realizadas de forma ampla. Esta abordagem fragmentada e restrita pode não ser suficiente para demonstrar a completa inviabilidade da existência de "uso seguro" de agrotóxicos no contexto social, econômico, geográfico e cultural geral da agricultura brasileira e para desconstruir como um todo este pilar de sustentação para a liberação, registro, promoção e uso indiscriminado de agrotóxicos no Brasil.