versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.84 no.3 São Paulo maio/jun. 2018
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.03.014
A cabeça e o pescoço contêm uma extensa rede linfática e mais de 300 linfonodos (um terço dos linfonodos do corpo).1 O tratamento para o câncer de cabeça e pescoço envolve terapias multimodais que proporcionam aumento nas taxas de sobrevida, porém com riscos de complicações secundárias, como o linfedema secundário. O tumor, a cirurgia e a radioterapia podem romper as estruturas linfáticas e bloquear o fluxo da linfa e resultar em edema dos tecidos moles. A contração muscular e a compressão dos tecidos moles por meio do movimento facilitam o fluxo linfático. Entretanto, o dano causado pela cirurgia e a radioterapia modifica esse mecanismo, leva à redução do movimento e do fluxo da linfa.1-4
A disfunção linfática ocorre quando qualquer estrutura linfática ou que cerca os tecidos moles é danificada pelo câncer e seu tratamento, limita a capacidade do sistema linfático de transportar o volume da linfa que é levado até os tecidos. O linfedema é um inchaço que se desenvolve em pelo menos três meses após o tratamento do câncer de cabeça e pescoço, além do período em que ocorre o edema agudo.5-7
Quando o linfedema desenvolve-se, o sistema linfático pode estar apto a reparar ou compensar o dano causado, resulta em redução visível do inchaço. Se o prejuízo for grave ou não houver intervenção, o fluido linfático rico em proteínas acumulado pode disparar uma resposta inflamatória crônica, resultar em um processo fibroesclerótico no qual podem se desenvolver tecidos gordurosos ou fibrosos.1,7
O linfedema em câncer de cabeça e pescoço pode envolver estruturas externas (face, submentonianas e pescoço) e internas (trato aerodigestivo superior, língua, epiglote) ou ambos (composto). O linfedema interno pode comprometer a mastigação, a deglutição, a fala e a voz.8 Ambos podem progredir com o decorrer do tempo e, quando identificados e tratados precocemente, podem resultar em regressão do inchaço e prevenção dos efeitos tardios, como a fibrose.9 Portanto, é importante verificar o linfedema como parte da rotina clínica de avaliação do paciente com câncer de cabeça e pescoço.1,3,6,8,10,11
Poucas medidas para avaliar o edema e o linfedema foram desenvolvidas ao longo dos últimos anos. A preocupação com esses aspectos tem crescido na última década no intuito de identificar e acompanhar a evolução da alteração e os resultados do tratamento ministrado.11-14
A Escala de Classificação do Edema da Radioterapia, desenvolvida por Patterson et al.,15 é a ferramenta mais abrangente que avalia e gradua de forma simples e objetiva 11 estruturas e dois espaços da faringe e da laringe por meio de endoscopia. A escala teve boa confiabilidade intra-avaliadores (Kappa = 0,84) e moderada interavaliadores (Kappa = 0,54).
O objetivo deste estudo é fazer a tradução para o português brasileiro e a adaptação transcultural da Escala de Classificação do Edema da Radioterapia.
Esta pesquisa representa a fase inicial do projeto de estudo clínico, aprovado pelo Comitê de Ética da instituição na qual foi feita, sob o número 528/14. Para desenvolver o trabalho com a escala, foi concedida a permissão da autora, que autorizou a tradução.
Por tratar-se de escala de avaliação de estruturas estritamente relacionados à anatomia, a tradução foi feita por dois cirurgiões de cabeça e pescoço com experiência em edema e linfedema de cabeça e pescoço e proficiência na língua inglesa, com base na Nomina Anatomica.16 O processo teve como base as diretrizes internacionais.
Houve, então, um consenso entre os tradutores de uma versão para o português brasileiro e posterior retrotradução feita por dois nativos da língua inglesa, de forma independente. Depois disso, foi feita a comparação da retrotradução com o original, foram analisados aspectos relacionados à equivalência conceitual, semântica e de conteúdo e posterior elaboração de uma tradução pelo comitê formado pelos tradutores e retrotradutores.
Foram avaliados 18 pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico e/ou radioquimioterápico, por meio de exame de nasoendoscopia, e gravados em DVD, para posterior avaliação pelo comitê.
A versão final foi aplicada por quatro profissionais da saúde (dois cirurgiões de cabeça e pescoço e duas fonoaudiólogas com grande experiência em câncer de cabeça e pescoço e interpretação de imagens videoendoscópicas de faringe e laringe). Por se tratar de interpretações similares, os avaliadores entraram em consenso.
A tradução da Escala do Edema da Radioterapia (tabela 1) foi feita de forma independente por dois cirurgiões de cabeça e pescoço com proficiência em língua inglesa.15
Rating of edema | ||||
Structures | Normal | Mild | Moderate | Severe |
Base of tongue | ||||
Posterior pharyngeal wall | ||||
Epiglottis | ||||
Pharyngoepiglottic folds | ||||
Aryepiglottic folds | ||||
Interarytenoid space | ||||
Cricopharyngeal prominence | ||||
Arytenoids | ||||
False vocal folds | ||||
True vocal folds | ||||
Anterior commissure | ||||
Spaces | Normal | Mildly reduced | Moderately reduced | Severely reduced |
Vallecullae | ||||
Pyriform sinus |
As duas traduções (tabelas 2 e 3) foram analisadas em conjunto pelos dois tradutores, que chegaram a um consenso para a versão final no português brasileiro (tabela 4). Houve uma dúvida em relação ao termo cricopharyngeal prominence, que, no português, refere-se à barra cricofaríngea, alteração relacionada à anatomia de pacientes submetidos à laringectomia total. Para esclarecer essa dúvida, entramos em contato com a autora e perguntamos se o termo, na verdade corresponderia, à área retrocricóidea. A autora confirmou nossa hipótese.
Classificação do edema | ||||
Estruturas | Normal | Discreto | Moderado | Intenso |
Base da língua | ||||
Parede posterior de faringe | ||||
Epiglote | ||||
Pregas faringo-epiglóticas | ||||
Pregas ariepiglóticas | ||||
Membrana interaritenóidea | ||||
Área pós-cricoide | ||||
Aritenoides | ||||
Bandas ventriculares | ||||
Pregas vocais | ||||
Comissura anterior | ||||
Espaços | Normal | Redução discreta | Redução moderada | Redução intensa |
Valécula | ||||
Seios piriformes |
Classificação do edema | ||||
Estruturas | Normal | Discreto | Moderado | Severo |
Base da língua | ||||
Parede posterior da faringe | ||||
Epiglote | ||||
Pregas faringo-epiglóticas | ||||
Pregas ariepiglóticas | ||||
Espaço interaritenóideo | ||||
Área retrocricóidea | ||||
Aritenoides | ||||
Pregas vestibulares | ||||
Pregas vocais | ||||
Comissura anterior | ||||
Espaços | Normal | Discretamente reduzida | Moderadamente reduzida | Severamente reduzida |
Valécula | ||||
Seios piriformes |
Classificação do edema | ||||
Estruturas | Normal | Discreto | Moderado | Severo |
Base da língua | ||||
Parede posterior da faringe | ||||
Epiglote | ||||
Pregas faringo-epiglóticas | ||||
Pregas ariepiglóticas | ||||
Espaço interaritenóideo | ||||
Área retrocricóidea | ||||
Aritenoides | ||||
Pregas vestibulares | ||||
Pregas vocais | ||||
Comissura anterior | ||||
Espaços | Normal | Discretamente reduzida | Moderadamente reduzida | Severamente reduzida |
Valécula | ||||
Seios piriformes |
Com base nessa última versão, foi então feita a retrotradução por dois tradutores bilíngues de forma independente. No caso do termo que causou dúvida pelos tradutores, foi compreendido na retrotradução como postcricoid area. Assim, as versões foram semelhantes entre si sem prejuízo à versão original. O comitê optou por manter a versão original com o termo cricopharyngeal prominence (tabela 5).
Rating of edema | ||||
Structures | Normal | Mild | Moderate | Severe |
Base of the tongue | ||||
Posterior pharyngeal wall | ||||
Epiglottis | ||||
Pharyngoepiglottic folds | ||||
Aryepiglottic folds | ||||
Interarytenoid space | ||||
Cricopharyngeal prominence | ||||
Arytenoids | ||||
False vocal folds | ||||
Vocal folds | ||||
Anterior commissure | ||||
Spaces | Normal | Slightly reduced | Moderately reduced |
Severely reduced |
Valleculla | ||||
Piriform sinus |
Os autores optaram por traduzir a estrutura piriform sinus como seio piriforme, porque, embora o Nomina indique o termo "recesso piriforme", o nome seios piriformes é amplamente empregado.
Os exames foram então feitos por um médico cirurgião de cabeça e pescoço nos 18 pacientes recrutados para o estudo.
O instrumento foi aplicado pelo grupo formado por dois cirurgiões de cabeça e pescoço e duas fonoaudiólogas (com experiência em interpretação de exames de nasoendoscopia) em consenso, nos 18 pacientes da instituição em que foi feito o estudo (tabelas 6 e 7). Por se tratar de uma escala que avalia estruturas anatômicas, não observamos dificuldades na compreensão e na aplicação da ferramenta.
Variável | Categoria | N |
---|---|---|
Idade | Mín.-máx. | 36-82 |
Mediana | 60 | |
Média ± desvio-padrão | 61,22 ± 11,39 | |
Gênero | Feminino | 6 |
Masculino | 12 | |
Local do tumor | Boca | 7 |
Orofaringe | 5 | |
Laringe | 1 | |
Infraglote | 1 | |
Tireoide | 1 | |
Face | 2 | |
Primário oculto | 1 | |
Estadiamento | Tx | 1 |
T1b | 1 | |
T2 | 10 | |
T3 | 2 | |
T4 | 2 | |
N0 | 10 | |
N1 | 2 | |
N2 | 1 | |
N2a | 2 | |
N2b | 1 | |
Tratamento | Cirurgia | 8 |
Cirurgia + radioterapia | 4 | |
Cirurgia + radioquimioterapia | 5 | |
Radioquimioterapia | 1 | |
Esvaziamento cervical | Não | 3 |
Sim | 15 | |
Tipo de esvaziamento cervical | Supraomoióideo | 9 |
Radical | 3 | |
Radical modificado | 1 | |
Jugular | 1 | |
Seletivo | 1 | |
Radioterapia | Mín.-máx. | 3.150-7.000 |
Mediana | 1.575 | |
Média ± desvio-padrão | 3.186 ± 3.292,57 | |
Tempo de término do tratamento (meses) | Mín.-máx. | 3-40 |
Mediana | 6,5 | |
Média ± desvio-padrão | 11,94 ± 12,12 | |
Etilismo | Não | 18 |
Sim | - | |
Tabagismo | Não | 16 |
Sim | 2 | |
Traqueostomia | Não | 17 |
Sim | 1 | |
Sonda nasogástrica | Não | 17 |
Sim | 1 |
Pacientes | Estruturas | Espaços | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
BL | PPF | E | PFE | PAE | EI | ARC | A | PVE | PV | CA | V | SP | ||
1 | 1 | 0 | 2 | 0 | 1 | 2 | 2 | 3 | 2 | 0 | 0 | 2 | 1 | |
2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | |
3 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 2 | 0 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
4 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | |
5 | 0 | 1 | 1 | 0 | 2 | 2 | 2 | 3 | 1 | 0 | 0 | 0 | 2 | |
6 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
7 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
8 | 1 | 0 | 1 | 1 | 0 | 2 | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | |
9 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
10 | 0 | 0 | 1 | 0 | 2 | 2 | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
11 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 2 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
12 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
13 | 1 | 2 | 1 | 0 | 2 | 2 | 1 | 2 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | |
14 | 1 | 0 | 1 | 0 | 2 | 2 | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | |
15 | 0 | 2 | 1 | 2 | 1 | 2 | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | |
16 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
17 | 0 | 0 | 1 | 2 | 2 | 2 | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 | |
18 | 2 | 2 | 2 | 2 | 3 | 3 | 3 | 3 | 0 | 0 | 0 | 0 | 3 |
A, Aritenoides; ARC, Área retrocricóidea; BL, Base da língua; CA, Comissura anterior; E, Epiglote; EI, Espaço interaritenóideo; Grau de redução dos espaços: 0- normal; 1-discretamente reduzido; 2- moderadamente reduzido; 3-severamente reduzido; Grau do edema das estruturas: 0- normal; 1- edema discreto; 2- edema moderado; 3- edema severo; PAE, Pregas ariepiglóticas; PFE, Pregas faringoepiglóticas; PPF, Parede posterior de faringe; PV, Pregas vocais; PVE, Pregas vestibulares; SP, Seios piriformes; V, Valécula;
As técnicas de avaliação do edema e do linfedema por meio de imagens são ferramentas que oferecem uma opção mais acurada das estruturas envolvidas tanto pela doença como pelo tratamento. A avaliação do edema interno secundário ao tratamento para o câncer de cabeça e pescoço é um instrumento que pode contribuir não só para seu diagnóstico mas também para sua evolução.
Outras modalidades como a linfocintigrafia, a ressonância magnética, a tomografia computadorizada, a ultrassonografia e a imagem de fluorescência, pouco referida na literatura para a região da cabeça e do pescoço, também são usadas além da avaliação laringológica por meio da Escala de Classificação do Edema da Radioterapia. A Escala de Patterson pode ser aplicada com facilidade na prática clínica, uma vez que o exame laringológico faz parte da rotina de avaliação e acompanhamento do paciente com câncer de cabeça e pescoço.1,14,17-22
Outra possibilidade é a verificação entre a relação entre as alterações de deglutição e voz com a presença do edema de faringe e laringe que podem ser mais bem quantificadas com a Escala do Edema da Radioterapia. A relação entre o edema interno e as alterações de deglutição e respiração e seu impacto na qualidade de vida com essa escala identificou forte correlação entre a severidade do edema, principalmente em região de pregas ariepiglóticas, pregas faringoepiglóticas, epiglote, aritenoides e seios piriformes com os sintomas de deglutição, principalmente da consistência sólida. Quando comparados com pacientes sem edema interno, o impacto na função e na qualidade de vida foi mais evidente.10,22
O prejuízo aos tecidos linfáticos pode levar ao linfedema e a fibrose e manifestar-se como efeitos precoces ou tardios ao tratamento do câncer de cabeça e pescoço. O linfedema e a fibrose não são processos estáticos. O linfedema está associado com a inflamação em curso e resulta em uma fibrose progressiva e deposição de tecido adiposo. Com o desenvolvimento de tecido fibrogorduroso, o tratamento de drenagem linfática manual e a terapia compressiva pode ser menos efetivo. Portanto, a avaliação dos efeitos do tratamento pode facilitar uma abordagem mais precoce na tentativa de evitar ou minimizar essas alterações.23
A Escala de Classificação do Edema da Radioterapia é indicada por vários autores como instrumento válido para a caracterização do edema após o tratamento do câncer de cabeça e pescoço.1,2,12,18,22
A tradução da Escala do Edema da Radioterapia para o português foi compatível com a original. A ferramenta é acessível e de fácil interpretação para profissionais da saúde com experiência na avaliação e tratamento do câncer de cabeça e pescoço.