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Trajetória histórica da organização sanitária da Cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015. Cem anos de inovações e conquistas

Trajetória histórica da organização sanitária da Cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015. Cem anos de inovações e conquistas

Autores:

Carlos Eduardo Aguilera Campos,
Amélia Cohn,
Ana Laura Brandão

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.5 Rio de Janeiro maio 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015215.00242016

Introdução

Múltiplos aspectos relacionados à formulação de políticas, à construção do conhecimento e à implementação das práticas no setor Saúde se interagem mutuamente. O produto é a maneira como se prestam os serviços de saúde em contextos históricos. Como será visto, o surgimento e a consolidação da rede permanente de Postos e Centros de Saúde (CS) no Brasil foi anterior à conformação do campo da Atenção Primária à Saúde (APS). Essa organização, bem como sua função no sistema de saúde, passou por várias mudanças. A construção da rede de estabelecimentos da organização sanitária do município do RJ pode ser descrita segundo vários períodos históricos, considerando contextos políticos, técnicos ou administrativos. Ao traçar sua trajetória singular, enquanto objeto de investigação, permite-se, ao mesmo tempo, avaliar as mudanças que se reproduziram na história da Saúde Pública no Brasil. As suas funções, a partir dos paradigmas que embasaram os conteúdos técnicos nos quais se deu a ação sanitária, são aqui também investigadas. Técnicas e métodos são entendidos, aqui, como o saber sanitário e clínico, que trouxeram no seu bojo a forma mais adequada de se organizar a assistência sanitária em cada momento histórico. Em outra dimensão foi necessário investigar as intermediações entre os propósitos políticos e o desenvolvimento desta rede. Em determinados contextos históricos, esta foi lançada no epicentro de pressões por mudanças. Em outros momentos, constatou-se justamente que a dimensão política não vinha acompanhada de ações propositivas, quando então a rede em questão parecia estar em segundo plano em relação às prioridades de Governo.

A delimitação destes períodos ou etapas históricas teve por objetivo, aqui, delinear a predominância de determinados padrões, tanto do poder técnico quanto do poder político. Estas intermediações se deram entre as distintas instâncias e legitimaram as funções da organização no sistema de saúde. A periodização foi, portanto, o recurso metodológico utilizado para investigar como os diversos fatores relacionados aos propósitos de governo e o poder técnico se consubstanciaram em ações concretas, dentro de um determinado ideário da política de saúde.

Como fonte de informações, para a análise do conjunto de concepções, valores, atitudes, resoluções e práticas implementadas pelos agentes envolvidos na consolidação e/ou nas mudanças da organização, foram levantados e analisados, retrospectivamente, dados primários, como livros, artigos, documentos, relatórios de gestão, estatísticas, decretos, normas internas, organogramas, rotinas etc.

O Quadro 1 poderá orientar o leitor a respeito da periodização utilizada. As escolhas dos tempos políticos e técnicos tiveram como critério os sinais de mudança identificados no ideário da saúde de cada período histórico, com suas repercussões para as dimensões técnicas e políticas que impactaram a organização. E ainda, buscou-se marcar, para cada época, os desdobramentos em termos de configurações técnicas que foram estruturando esta rede. Sua natureza exclusivamente pública ao longo de toda a história nos permite vislumbrar a trajetória da política de saúde no Brasil do ponto de vista de seus atores inseridos nos órgãos de Estado, tanto no período pré-SUS como nos dias atuais.

Quadro 1 Trajetória histórica da organização sanitária da Cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015. 

Fonte: autores.

1916-1927 As origens: os Postos de Higiene e Profilaxia Rural

Até a década de 1910 não existiam estabelecimentos de Saúde Pública (SP) voltados ao atendimento do público. As ações eram realizadas no território por meio de intervenções sobre o ambiente, os agentes infecciosos e, eventualmente, voltadas para o coletivo dos indivíduos (quarentena, vacinação etc.). A forma de atuar dos profissionais de SP naquela época era ao ar livre, com expedições volantes, atendendo as pessoas em barracas improvisadas ou até em redes estendidas no campo. Cabe salientar que existiam Delegacias de Saúde (DS), que tinham a função de coordenação dos trabalhos dos profissionais em diversos setores, entre os quais os chamados guardas sanitários, tais como a inspeção sanitária de estabelecimentos e habitações, o controle de alimentos e bebidas, as campanhas de vacinação, o suporte laboratorial etc. Elas eram distribuídas estrategicamente em bairros centrais das principais cidades, com os estabelecimentos funcionando mais como apoio logístico e administrativo às equipes. Além disso, de caráter filantrópico, surgiram os dispensários. A Liga Brasileira Contra a Tuberculose, tendo como o seu presidente o Visconde de Ibituruna, criou os primeiros dispensários a partir de 1902. A Liga também criou o serviço de assistência domiciliar, em 1913, que tinha por finalidade dar assistência médico-social aos portadores de tuberculose que não podiam se locomover até o dispensário1.

Os primeiros estabelecimentos públicos que visavam atuar em base territorial no controle de doenças surgiram em 1916, chamados de Postos de Higiene e Profilaxia Rural (PHPR), dedicados a prestar assistência, de forma permanente, a populações definidas. Muitas foram às razões que levaram à sua criação, entre elas pode-se destacar a ampliação de responsabilidades e das atribuições da SP2.

Novos recursos de diagnóstico, profilaxia e imunização permitiram a atuação mais direta no combate às doenças. A mudança tinha como premissa a necessidade de dotar o governo de uma administração moderna e de buscar um enfrentamento efetivo das doenças endêmicas e epidêmicas. A necessidade de constituir-se um corpo técnico, a desempenhar as novas funções, não foi negligenciada. Médicos sanitaristas e enfermeiras visitadoras eram considerados recursos estratégicos para essa nova política. A partir de 1916, com a chegada da Missão Médica da Fundação Rockefeller, inauguraram-se os primeiros PHPR na cidade do RJ. O projeto, que priorizava o combate a doenças como a malária, ancilostomose e doença de Chagas, se expandiu e atingiu diversos pontos do interior do país3,4.

A Reforma Carlos Chagas, em 1923, criou o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) e alargou as competências do governo federal sobre o setor. Dentre suas atribuições destacaram-se o saneamento rural e urbano; a higiene infantil, industrial e profissional; a supervisão e a fiscalização da saúde dos portos; e o combate às endemias rurais. Essas ações deram origem às Campanhas de SP, caracterizadas por ações centralizadas e verticalizadas com o objetivo de combate às doenças endêmicas no país, como por exemplo, a malária, a febre amarela e a tuberculose4.

1927-1939: O nascimento e a consolidação dos Centros de Saúde

O trabalho desenvolvido nos PHPR e de formação de recursos humanos (RH), notadamente os cursos de enfermeiras visitadoras e médicos sanitaristas, viabilizou a implantação de uma nova proposta: os Centros de Saúde (CS). Estes foram concebidos como estabelecimentos mais complexos e tornaram-se as unidades voltadas à atuação da SP5.

Clementino Fraga, sucessor de Carlos Chagas, defendia que as condições de saúde das populações mais pobres nas grandes cidades, exigiam outras estratégias que as adotadas pela lógica campanhista. O grupo a ele vinculado foi chamado de “jovens turcos”, em alusão à ocidentalização da Turquia, que acabou com tradições milenares daquele país. Estes jovens médicos desejavam modernizar a SP. É importante frisar que, àquela época, o problema da tuberculose era um grande flagelo nacional, assim como eram graves as condições de saúde materno-infantis. A criação de CS voltados para a educação sanitária e a profilaxia passou a ser defendida por vários setores da sociedade médica e do governo, a partir da experiência bem-sucedida da Cruz Vermelha norte-americana no início dos anos 1900. A estratégia constituía-se em formar médicos sanitaristas e enfermeiras visitadoras de SP para atuar junto às famílias pobres. A divulgação de documentos confidenciais do Rockefeller Archive Center, de 1925, informava: os CS têm funcionado muito bem de modo integrado, sem as antigas divisões (uma para doença venérea, outra para puericultura etc.). Agora os especialistas dedicam-se em horários diversos a suas especialidades, mas sem prejudicar o caráter geral dos trabalhos. O II Congresso Brasileiro de Higiene, em 1924 debateu a tese que não havia vantagens em conservar os PHPR, criados para controle de doenças endêmicas específicas6.

A intenção era que CS se tornassem unidade de referência, instaladas em núcleos urbanos e realizando reformas de cunho modernizante. Em 1925, Paula Souza instalou os CS do Brás, do Bom Retiro e do Instituto de Hygiene. A posse de Clementino Fraga no DNSP, em 1926, viabilizou a implantação do primeiro CS no Distrito Federal. Juntamente com Barros Barreto e José Paranhos Fontenelle, inauguraram, com a presença do Presidente Washington Luís, no dia 1º de janeiro de 1927, o CS de Pilares. As vantagens enaltecidas por Clementino Fraga, quando da sua inauguração, eram principalmente de natureza gerencial: ao invés da divisão por funções, em que cada uma das repartições era especializada em uma doença, fazia-se imprescindível, especialmente em uma grande cidade como o RJ, um sistema de divisão por tarefas, centralizadas todas em um mesmo distrito sanitário. Esse trabalho foi organizado em CS, distribuídos em regiões estratégicas da cidade7.

O Instituto Oswaldo Cruz e a Escola de Enfermagem Anna Nery, no RJ, iniciaram a formação de profissionais. Até 1930, 12 CS foram inaugurados6,8.

Os jovens turcos defendiam que somente uma nova consciência sanitária dos cidadãos poderia dar solução às mazelas sanitárias do país. A ignorância, mais do que a pobreza ou as péssimas condições de vida, era tida como um fator levava a alta incidência de doenças infecto-contagiosas. A Educação consistia na principal ferramenta para combater a disseminação das doenças. Uma descentralização que permitisse alcançar cada bairro, cada domicílio, cada família, notificando e orientando as pessoas sobre os mais diversos problemas, em uma só ação sanitária integrada, era a base deste novo modo de atuar em saúde. As cidades então deveriam ser divididas em distritos e, em cada um deles, um CS deveria ser instalado, funcionando com vários dispensários em horários alternados, sob a chefia de um médico sanitarista9. A formação das enfermeiras visitadoras (EV) era um requisito fundamental para o sucesso dessa nova abordagem. A DNSP convidou a enfermeira Ethel Parsons, dos EUA, para formar as primeiras turmas. Estava instituído o novo modelo de quarentena, não mais aquartelando os doentes, mas circunscrevendo a atuação dos profissionais e o controle das doenças no âmbito das famílias e domicílios. Em 1939, o município do RJ contava com 120 EV, atuando principalmente na tuberculose e na saúde materno-infantil. O sucesso desta iniciativa pode ser medido pela evolução dos CS até 1939. Seguindo o que já tinha feito Paula Souza no estado de São Paulo, todos as DS e os PHPR se transformaram em CS. Clementino Fraga completou a rede em 1934. Fundiram-se todas as Inspetorias em uma só: a que seria responsável pelos CS. O município foi dividido em 12 Distritos Sanitários, entre 110 mil e 150 mil habitantes cada: 1º) Gávea, Copacabana e Lagoa; 2º) Glória e Santa Teresa; 3º) Santo Antonio, Sant’Anna e Espírito Santo; 4º) Gamboa, Santa Rita, Candelária, Sacramento e São José; 5º) São Christóvão e Engenho Velho; 6º) Andaray e Tijuca; 7º) Engenho Novo e Meyer; 8º) Inhaúma oeste; 9º) Jacarepaguá e Irajá sul; 10º) Inhaúma leste, Irajá, Ilha do Governador; 11º) Madureira, Realengo e Anchieta; 12º) Realengo Oeste, Bangu, Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz10,11.

1940-1961 O Sistema Distrital de Administração Sanitária

A Capital passou a ser um objetivo secundário diante da necessidade de consolidação do Estado nacional. Importava integrar o país, aumentando o poder de intervenção nos estados. Os sanitaristas do DNSP, que foram arregimentados nas turmas que se formaram nos cursos de SP, passaram a chefiar as Delegacias Federais de Saúde nos estados ou a trabalhar nos serviços nacionais recém-criados. Os quadros técnicos escassearam na capital. Em 1939, ocorreu a municipalização da organização, agora chamados Centros Municipais de Saúde (CMS)11.

Houve ainda uma tendência ao fortalecimento de cunho campanhista e vertical. A partir de 1940 foram criados os Serviços Nacionais de Febre Amarela, Lepra, Tuberculose, Malária, Peste, Câncer, Doenças Mentais, Educação Sanitária, Fiscalização da Medicina, Portos, Águas e Esgotos e Bioestatística12.

A rede de CMS da capital foi o modelo norteador para a criação de estabelecimentos semelhantes nos estados da federação. Esta foi a intenção de Barros Barreto quando reconduzido à DNSP, em 1941. Os agora denominados CMS permaneceram assim como proposta organizacional para o país7.

O nível federal passou a executar a função normalizadora de forma mais incisiva a partir de 1941. Existia a preocupação em mapear a rede sanitária e também em estabelecer o princípio da divisão distrital e monitorar o seu desenvolvimento em todo o território brasileiro. A Divisão de Organização Sanitária encarregava-se ainda de classificar as unidades segundo o seu porte e complexidade, determinando que as capitais e as grandes cidades brasileiras deveriam ter, no mínimo, um CS13.

1962-1978 Centros Médico Sanitários: revitalização da prevenção e a Aliança para o Progresso

Pode-se considerar que o então novo estado da Guanabara, criado com a mudança da Capital Federal, recebeu a SP municipal em situação precária. Restavam apenas vinte EV. Os prédios, velhos casarões adaptados, estavam com problemas de instalações físicas, de RH e de equipamentos. O quadro sanitário do município era alarmante. Publicações de Fontenelle, naquele momento crítico da organização, demonstravam que os indicadores de prevalência de doenças como a tuberculose eram muito superiores aos encontrados em São Paulo, em cujos dados o autor se baseou. As mudanças que se fizeram no primeiro governo da Guanabara, procuraram solucionar esta situação. O marco desta reformulação foi a criação, em 1962, da Superintendência de Serviços Médicos e das Regiões Administrativas municipais, sendo o Departamento de Saúde Pública transformado em Superintendência de Saúde Pública14. Neste mesmo ano realizou-se o XV Congresso Brasileiro de Higiene sob o tema Problemas médico-sanitários em áreas subdesenvolvidas e a municipalização de saúde. Este Congresso teve grande influência na concepção de modelo que seria adotado na organização. A Aliança para o Progresso, programa de ajuda financeira para os países latino americanos, financiado pelos EUA em resposta à guerra fria, aportou recursos para a Guanabara, tendo inclusive financiado a construção de novos agora denominados Centros Médico Sanitários (CMS). A organização sofreu mudanças pontuais até 1965. Foram construídas seis novas unidades, mas seus serviços eram os mesmos: higiene, tuberculose, criança e adolescente, enfermagem sanitária e atividades complementares. Em 1965 havia 39 CMS e oferecia medidas preventivas contra a Varíola, a Febre Tifoide, a Poliomielite e a Tuberculose. Na gestão seguinte, entre 1966 e 1971, deu-se início a uma reformulação dos CMS numa concepção mais ampla, ainda que acabasse limitada a algumas unidades sem uma expansão significativa. Foram construídas unidades em substituição aos antigos, ao longo dos anos 196014.

Apesar deste esforço reformista, realizado no período compreendido entre a década de 1960 e início da de 1970, a legislação sanitária não se modificou muito. Em 1974, O RJ passou a ser a Capital do estado do RJ. Recriou-se então a Secretaria Municipal de Saúde. A nova legislação sanitária municipal, com relação às atribuições da organização, manteve basicamente o mesmo rol de princípios e funções. O decreto que de 30 de julho de 76, manteve a mesma orientação com relação à área de SP. Não houve nova definição de competências, nem integração com a assistência clínica e hospitalar. A SMS possuía dois grandes Departamentos Gerais: o de Assistência Hospitalar e o de SP. Eram à época 23 CMS, 11 Unidades Satélites e 1 Instituto15,16.

Às tradicionais tarefas reservadas aos CMS, foram acrescentadas algumas outras. Manteve-se certa fragmentação e especialização das suas atividades, a partir das normas do Ministério da Saúde (MS). Estas se restringiram àquelas não assumidas pela medicina previdenciária, tais como a tuberculose, a hanseníase, a vacinação e os atestados de saúde e de saúde escolar. Acrescentaram-se ainda alguns procedimentos médicos e diagnósticos implantados de forma tímida. Apesar disto, as reformulações ocorridas naquele período lançaram as bases para novas mudanças. Este conjunto de ações revitalizou e rejuvenesceu a organização, situando-a no sistema de saúde com atribuições próprias. O ganho desta fase foi a melhoria de sua estrutura física, com um padrão arquitetônico que passou a identificá-la junto a população. A grande transformação conceitual das funções da rede básica se deu no período que se segue17,18.

1979-1987: Alma Ata e os Cuidados Primários à Saúde

As administrações nos períodos de 1979 a 1985 imprimiram mudanças na estrutura da rede básica municipal. A SMS começou a implantar uma política de extensão de serviços de saúde inspirada nos princípios consagrados na Conferência de Alma Ata, em 1978. Esta preconizou os Cuidados Primários à Saúde como estratégia para se alcançar saúde para todos os povos no ano 200019.

Em 1980, a SMS lançou o Plano de Ação Integrada, com as seguintes diretrizes setoriais: aperfeiçoar os serviços de saúde de interesse da população local, especialmente os de pronto socorro, consolidar a atenção médica e os cuidados primários, especialmente ao grupo materno infantil e à população de baixa renda20-22.

As Ações Integradas de Saúde, em 1984, incentivaram os governos municipais a recuperarem o seu papel de prestadores de serviços de saúde. Havia a preocupação em financiar ações num foco ampliado, da promoção à assistência. A Previdencia passou a financiar a APS por meio de convênios com os municipios. A medida visava reverter a política de privilegiamento do setor privado e estender a cobertura aos não previdenciários23.

A política de extensão de cobertura por rede básica foi a solução para as crescentes pressões populares por serviços de saúde, ao incorporarem o conceito de APS. Ainda que os CMS pudessem prestar este atendimento, acabaram se burocratizando. Ao todo, existiam um CMS em cada Região Administrativa, que se destinavam ao fornecimento de certificados de sanidade e medicina escolar em atividades de cadastramento (35,4% e 24,8% dos atendimentos, respectivamente). Uma estrutura difícil de ser mudada, em função do processo político-clientelista existente.

Foram criados novos serviços onde havia iniciativas comunitárias, com unidades sob nova denominação: Unidades Auxiliares de Cuidados Primários à Saúde (UACPS) e Unidades Municipais de Atendimento Médico Primário (UMAMPS), sempre referidas a um CMS de sua região. As UACPS criadas foram: Rocinha; Vidigal; Alto da Boa Vista; Carlos Gentile de Mello, Vila S. Jorge, Fazenda da Bica, Padre Miguel, Cosmos, Mendanha, Fazenda Modelo, Barra de Guaratiba, Rio da Prata, Pedra de Guaratiba, Jardim Santa Margarida, Jardim Maravilha, Raul Barroso, Cesário de Melo, Jardim 7 de Abril. As UMAMPS criadas foram: Cidade Alta; Fazenda Coqueiro Hamilton Land; Sylvio Brauner22.

Como inovação deste período estava a tentativa de colocar em prática o princípio da integralidade, articulando-se às medidas de SP a assistência médica curativa. Incorporou-se, por meio de novos programas, segmentos da população que não eram contemplados anteriormente. Atenuaram-se assim as atividades voltadas para o acompanhamento estrito da população sadia23.

A partir de 1986 foram realizados dois concursos públicos para provimento de vagas. A entrada da nova geração não só de jovens sanitaristas, mas de médicos, enfermeiras, assistentes sociais, farmacêuticos, fonoaudiólogos e nutricionistas na rede municipal permitiu uma ampla e profunda reformulação na organização7.

Uma nova expansão foi realizada com a construção de uma rede de 27 Postos de Saúde (PS) e concentrou-se, novamente, na zona oeste da cidade. Santa Cruz recebeu mais unidades: Palmares, Santa Cruz, Santíssimo, Vila Kennedy, Cesarinho (Paciência), Cesário de Mello (Campo Grande), Senador Camará, São Fernando (Santa Cruz), Santa Inês (Campo Grande), Sulacap, Caju, Vila Aliança (Taquarau), Conjunto Liberdade, Sepetiba, Mangaratiba, Mendanha, Urucânia, Parque Anchieta, Pilares, Jardim América, Pavuna, Formiga, Jacaré, Pedra de Guaratiba. Reconstruíram-se dois CMS: Santo Cristo e Cidade Nova, depois transferido para o Pavilhão Carlos Chagas7.

Os princípios que fundamentaram esta política eram muito semelhantes aos das UACPS: atendimento médico para as populações não previdenciárias, com foco na APS. Desta vez, não houve resistências e esta expansão de deu com a inserção imediata e integral das novas unidades à organização. Cada PS era subordinado ao CMS da sua área. Pensava-se agora numa capilarização da oferta de serviços via Vigilância Epidemiológica, programas de SP e oferta de consultas médicas (clínica médica, pediatria e gineco-obstetrícia)7.

Esta foi a terceira expansão da rede básica e serviu para consolidar a importância do atendimento ambulatorial prestado por ela, especialmente nas especialidades básicas. Sua produção de consultas, pela primeira vez, começou a rivalizar, em ordem de grandeza, com a produção da rede previdenciária.

1988-1999 O SUS e a municipalização da rede pública federal

Este período é influenciado pela criação do SUS. Como antiga capital, o RJ possuía inúmeras unidades federais. A descentralização da gestão do SUS, via municipalização e integralidade, dava uma ênfase ainda maior às ações de promoção e prevenção da saúde, via APS24.

A criação do Programa Saúde da Família (PSF), em 1993, se configurou como uma proposta chave, uma vez que experiências bem sucedidas tinham sido realizadas por vários municípios. No inicio, o PSF foi proposto para populações de maior vulnerabilidade, aproveitando-se de iniciativas da Pastoral da Criança e das ações dos Agentes Comunitários de Saúde. Sobressaiu também o Programa Médico de Família (PMF) de Niterói. O êxito do PSF, inicialmente em pequenos municípios brasileiros, manteve a tese de que se tratava de um programa restrito, com uma oferta limitada de ações de saúde. Experiências bem sucedidas e sua adequação às responsabilidades e competências dos municípios no âmbito do SUS aumentaram a adesão dos municípios e o apoio popular. A possibilidade de se aumentar o acesso à saúde de expressiva parcela da população, antes excluída ou mal atendida, fez com que muitos passassem a defendê-lo como um modelo substitutivo. O PSF passou a receber recursos diferenciados, favorecendo sua expansão em ambientes de baixa cobertura e poucos recursos municipais24.

Nas cidades maiores havia muitas resistências e oposições de ordem corporativa e ideológica e devido a redes assistenciais já existentes25. Os obstáculos no RJ estavam relacionados com a pré-existência de inúmeros serviços de vários tipos26.

Já com relação aos antigos Postos de Atendimento Médico da Previdência Social (PAM), ocorria um processo inverso. Em processo de estagnação e esvaziamento de seus quadros, viveram um quadro de abandono e decadência. Seus membros e dirigentes não tinham mais o prestígio que desfrutavam no passado e, como organização a ser reformada, aguardaram o lento processo de transferência ao poder municipal. A lentidão com que se deu a municipalização dos PAM foi resultado não só de conflitos políticos entre os níveis federal e municipal, mas também porque eram unidades grandes demais para serem absorvidas pela SMS. O orçamento da saúde previdenciária no RJ era muitas ordens de grandeza superior ao da SMS. Além disso, a indefinição do papel desta rede no SUS era outro complicador. O processo de transferência foi o mais lento do país. Havia ainda uma grave crise fiscal na Prefeitura Municipal. A nova gestão, em 1991, preocupou-se em reorganizar a estrutura do nível central e estabeleceu alguns princípios básicos. Os antigos Departamentos Geral de Organização e Administração de Serviços de Saúde e de SP deram lugar a três Superintendências. Toda a administração dos serviços de saúde da rede básica e hospitalar ficou sob a responsabilidade da Superintendência de Serviços de Saúde. A organização sanitária passou a ser administrada pela mesma instância gerencial da rede hospitalar. Esta atuação foi descentraliza para as dez Coordenações de Saúde das Áreas Programáticas (CAP). As outras Superintendências eram: Controle de Zoonoses, Vigilância, Fiscalização Sanitária e Saúde Coletiva.

Iniciou-se a criação de equipes técnicas e os estudos de viabilidade da transferência das unidades federais. Elaborou-se um novo modelo de atenção, com uma melhor organização da APS. Houve um esforço de integrar e unificar toda a rede básica de forma a criar uniformidade na oferta de ações assistenciais e programáticas26.

A prefeitura recebeu, em 1995, 15 PAM: Botafogo, Treze de Maio, Henrique Valadares, Praça da Bandeira, Meier, Del Castilho, Ramos, Penha, Ilha do Governados, Irajá, Madureira, Bangu, Deodoro, Jacarepaguá e Campo Grande27.

Este processo reforçou o poder da SMS com o crescimento da rede básica, visto que essas unidades com grande demanda por assistência possibilitaram um novo gerenciamento da porta de entrada, com o aumento da cobertura de ações programáticas.

Criou-se a primeira Equipe de Saúde da Família (ESF), em Paquetá, como uma unidade modelo, com um médico e um agente comunitário de saúde, semelhante ao modelo de Niterói. Nesse período o PSF e o PACS foram lentamente implantados, voltados para as populações em situação de risco. A resistência ao modelo se mantinha28.

1999-2008. A Saúde da Família torna-se a estratégia de reformulação do modelo de atenção, mas o RJ resiste às mudanças

A promulgação da Norma Operacional Básica 96 proporcionou, a partir de 1998, em nível nacional, recursos novos fundo a fundo para os municípios atuarem na APS. O chamado Piso da Atenção Básica variável resultou numa forte expansão do PSF. O modelo que passou a ser conhecido como Estratégia Saúde da Família (ESF), significou mudança na prática de saúde e configurou-se numa proposta de reorganização para todo o sistema. A partir de então o número de equipes de ACS e de SF se elevou em todo país28.

Em 1999, a SMS criou o Núcleo de Saúde da Comunidade (NSC), ligado à Superintendência de Saúde Coletiva, para aumentar a cobertura assistencial da ESF. O Programa de Expansão da ESF para os grandes centros urbanos (PROESF) estimulava seu crescimento em outras capitais brasileiras. No RJ, uma curta gestão a frente da SMS representou um ponto de inflexão, com uma proposta de expansão de 600 equipes de SF em áreas de grande aglomeração de população. Este plano, porém, não saiu do papel. Há, a partir daí, uma expansão focalizada. Até 2003, tinham sido implantados PACS em quinze bairros, com destaque para Maré, São Carlos, Turano, Mangueira e Fazenda Botafogo, totalizando 426 agentes comunitários e 23 equipes de SF em 10 bairros28.

A SMS tinha, em 2001, 108 unidades básicas. Estas ainda funcionavam sob a lógica de programas de saúde, limitando a assistência médica para os usuários do serviço que se enquadrava em alguns dos programas, como hipertensão, tuberculose, saúde da mulher, etc.29.

Entre 2005 e 2008 houve um esforço em ampliar o número de equipes de SF, mas estas não representam muito como percentual de população coberta pela ESF no município. Ao final de 2008 existia o dobro de equipes de saúde da família de 2005, sendo que o número passou de 57 para 124 com uma baixa cobertura populacional, de apenas 6,94%. A SF continuava restrita a bolsões de pobreza extrema, em áreas com alto índice de violência, em vazios assistenciais28.

O orçamento municipal era onerado com grandes hospitais, com os esquemas de desvio de recursos no setor saúde e ainda com a problemática que envolvia os RH, pois a maioria dos servidores federais que foram transferidos para o município estava se aposentando. Isto era uma grande contradição. Ao não investir na ESF o município era impedido de receber recursos federais extras destinados a este fim, perpetuando um ciclo vicioso difícil de ser quebrado30,31.

2009-2015 - A Clínica da Família: uma APS empoderada para um contexto de grande complexidade

Em 2009, a agora denominada Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC), apresentava uma cobertura da ESF de 7%. Mais uma vez constatava-se uma piora do quadro sanitário: altos índices de tuberculose, sífilis congênita, mortalidade infantil e materna, etc.

O novo modelo de atenção à saúde para a cidade foi apresentado pela nova gestão. Devido à condição de futura cidade olímpica foram realizadas visitas técnicas a outras cidades-sedes: Londres, Montreal, Barcelona e Sidney. O que se observou de comum nessas cidades foi o sistema de saúde baseado na APS e no médico de família e comunidade (MFC). O caminho trilhado a partir daí foi implantar um modelo com base em reformas implementada em Portugal e Inglaterra32,33.

O ano de 2009 foi de estruturação e de concepção das Clínicas da Família (CF), incluindo seu desenho arquitetônico, composição da equipe de gestão e alterações legais. Estas, tendo como uma das principais medidas a certificação das Organizações Sociais (OS) que funcionaram como braço administrativo para dar maior agilidade burocrática e financeira, e outra a reestruturação e o fortalecimento das CAP, que ficariam responsáveis pela gestão da atenção no território. Nestas duas instancias (CAP e OS) estavam ancoradas metas de cobertura e desempenho acordadas com o gestor municipal33.

A expansão da ESF no RJ iniciou-se com a ampliação de cobertura nas AP 5.3 (Paciência, Santa Cruz e Sepetiba) e AP 3.2 (Abolição, Água Santa, Cachambi, Del Castilho, Encantado, Engenho da Rainha, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Higienópolis, Inhaúma, Jacaré, Jacarezinho, Lins de Vasconcelos, Maria da Graça, Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, Sampaio, São Francisco Xavier, Todos os Santos e Tomás Coelho) para implantação de 100% de cobertura, meta alcançada apenas na primera32.

As unidades passaram a exibir o mapa da área coberta pela unidade, o placar de saúde, com indicadores demográficos, sala dos ACS e Técnicos em Vigilância em Saúde, valorizando a territorialização. As unidades contaram com outras facilidades, como sala da criança, da mulher, do idoso, acolhimento mãe bebê32.

A partir de 2010, observou-se uma expressiva mudança na gestão da SP alcançando, em 2014, uma cobertura de 45% da ESF. De 68 equipes passou-se a um total de 800. Foram construídas 74 CF com uma meta de alcançar no número de 140, em 2016 (70% de cobertura)30.

A reforma da APS representou não só a ampliação de acesso, mas também no aumento da capacidade resolutiva. Um fator crucial foi a implantação da Carteira Básica de Serviços onde estavam contempladas as situações de saúde mais frequentes, inclusive as pequenas urgências e os exames complementares32.

As CF foram concebidas para atender uma população relativamente grande. Assim, concentraram várias equipes de SF, com uma estrutura física compatível, e que levava em consideração aspectos como ambiência, conforto e sustentabilidade. A resolutividade foi garantida pela e incorporação de tecnologia apropriada e abrangente, com oferta de coleta de exames laboratoriais, raio X, ecografia, entre outros exames e procedimentos33.

A partir da reforma da APS do período de 2009-2015, a rede básica foi classificada em três tipos:

  1. unidades tipo A: unidades de saúde onde todo o território é coberto por equipes da Estratégia Saúde da Família;

  2. unidades tipo B: unidades de saúde tradicionais, com incorporação de uma ou mais equipes da ESF, que cobrem parcialmente o território;

  3. unidades tipo C: unidades básicas de saúde tradicionais, sem a presença de equipes de SF.

Uma questão importante no que tange à reforma, assim como no restante do Brasil, era a fixação de profissionais médicos às unidades, com cumprimento da carga horária na unidade de saúde. Diante de tão expressiva expansão prevista nesta reforma, foi exigida uma estratégia particular para prover a demanda de profissionais médicos em grande escala. Algumas das medidas para atender a esse desafio foi o aumento da remuneração, atingindo um dos maiores tetos para MFC no país, com plano de carreira estruturado, contratação por CLT pelas OSs previamente qualificadas, para cada área do município, incluindo metas de desempenho e pagamento por produtividade. Outra estratégia foi a criação de um programa de residência médica com previsão de 80 vagas, com uma bolsa de valor diferenciado.

O MFC deveria ser o especialista médico a ser valorizado e contratado para compor estas novas equipes de saúde, já que esta era a realidade dos sistemas nacionais de saúde europeus, que foram colocados como padrão para a reforma no Rio de Janeiro. Estes médicos referiram satisfação com com sua condição salarial e com a qualidade do vínculo CLT, sem se queixar da falta da “estabilidade” que só seria produzida por um vínculo contratual de estatutário/servidor. Ao contrário, eles referiram que a natureza dos contratos CLT permitia que os profissionais que não trabalhassem com qualidade fossem dispensados, demonstrando seu interesse em servir à população, e não em proteger a corporação33.

Outro ponto importante foram as ações constantes para o fortalecimento de atividades de desenvolvimento profissional contínuo e da educação permanente através do Telessaúde, participação em eventos de conselhos de categorias, construção dos Observatórios de Tecnologia de Informação e Comunicação em Sistemas e Serviços de Saúde (OTICS-RIO), criação de blogs entre outras atividades. No OTICS, metodologias e tecnologias de informação úteis à gestão e tomada de decisão foram reunidas para promover a construção compartilhada de conhecimento entre profissionais de saúde, pesquisadores, gestores e sociedade civil.

Outra transformação importante ocorreu nas CAP, que passaram a ser as Coordenações de Atenção Programática para Coordenação da APS (CAPS). Baseou-se no fato de que a APS e a alta complexidade têm processos de compras, insumos e gerenciamentos diferentes. Sendo assim atribuiu-se o papel de gestão administrativa às OS e a função gerencial às CAPS, como nos TRUSTS nos moldes do NHS inglês34.

Uma importante medida, inclusive na conduta dos profissionais de saúde atuantes na rede de APS do RJ foi a instituição de Comissão de Regulação Local; onde um ou dois médicos, preferencialmente MFC e/ou Preceptores da Residência de MFC, atuam como reguladores da Unidade junto ao SISREG. Estes desempenham atividades de revisar os encaminhamentos localmente atuando como Responsáveis Técnicos (RT). Tal atividade qualificou a lista de espera por consultas e procedimentos, tornando-as mais equânimes. Além disso, as decisões do regulador RT passaram a ser discutidas com outros profissionais, agregando um viés pedagógico. Houve também preocupação com a padronização da regulação que culminou na criação do ‘Protocolo para o Regulador’ que aborda protocolos de encaminhamento para especialidades médicas e procedimentos diagnósticos33. Esta medida teve um grande impacto, sendo um grande ponto de inflexão para uma rede serviços de APS no país, que passaram não só a serem orientadoras do sistema de saúde, mas também, e sobretudo, coordenadoras dos cuidados de saúde.

A principal influência teórica para essa mudança na regulação foi o “Consulta a tempo e hora”, implantado em Portugal. O Regulamento do Sistema Integrado de Referência e de Gestão do Acesso à Primeira Consulta de Especialidade Hospitalar nas Instituições do Serviço Nacional de Saúde daquele país, teve por objetivo harmonizar os procedimentos inerentes à implementação e gestão do acesso à primeira consulta de especialidade hospitalar, estabelecendo um conjunto de regras que vinculam as instituições do SNS e os profissionais de saúde intervenientes no processo, articulando-os de forma criteriosa e transparente35,36. Utilizou-se ainda o relatório da OCDE, 2013, que abordava os tempos de espera para consultas e procedimentos na Europa37. Esta regulação a partir da base do sistema é uma medida importante para a coordenação do cuidado, pois todo paciente deve estar sendo acompanhado por uma unidade de APS antes de acessar os demais níveis de cuidado, sendo encaminhado pelo seu MFC.

A reforma da APS tornou-se possível graças ao compromisso da Gestão Municipal através de um aumento do aporte financeiro municipal, representado através da ampliação dos gastos da prefeitura em saúde de 15% para 20%. Além disso, houve a ampliação da captação dos incentivos financeiros do governo federal.

Houve grande aceitação da reforma da APS na direção do modelo, junto ao Gabinete do Prefeito, na Câmara de Vereadores, inclusive com emendas parlamentares para criação de Clínicas da Família, assim como junto ao Conselho Municipal de Saúde33.

A reforma da APS mudou a cultura avaliativa no âmbito da APS, tendo assim os processos de trabalho acompanhados e monitorados (mensal ou trimestralmente), dependendo para qual nível de gestão (local ou central). Esse monitoramento foi baseado em indicadores de estrutura e processo, incluindo o “Carteirômetro”, que compõem os contratos de gestão com as OS e o pagamento por desempenho das unidades e equipes de SF.

Uma inovação importante nesse aspecto da avaliação foram os Seminários de Accountability, nos quais as equipes de saúde das unidades mostraram todas as suas realizações do ano, as dificuldades encontradas e os planos para o ano seguinte. A gestão da informação foi reformulada por meio de prontuários eletrônicos favorecendo assim a gestão da clínica e a vinculação das equipes, obtendo melhor acompanhamento dos usuários cadastrados nas CF32.

Outros dispositivos importantes foram: a Carteira dos Usuários que definiram regras claras do sistema, para facilitar o entendimento por parte dos usuários e a criação do site “Onde ser Atendido”, orientando o usuário onde procurar atendimento, favorecendo a vinculação entre as unidades da APS e as comunidades/usuários na APS. Todas estas novas experiências causaram forte ressonância no âmbito nacional e internacional, já que despertou interesse e visitas técnicas por parte de secretarias de saúde de todas as capitais do país, diversos municípios e ainda representante de outros países como Peru, Chile, Espanha, Portugal, Angola.

Em 2013, a SMSDC aderiu ao Programa Mais Médicos e recebeu 150 MFC de outros países. Esta medida visou o intercâmbio de experiências com MFC do RJ e a fixação de médicos em áreas de vulnerabilidade social, cujas equipes de SF encontravam-se sem médicos há mais de um ano. Estes esforços, aliados ao aumento das vagas de residência médica em MFC (100 por ano), permitiram uma situação de cobertura de equipes de SF com seu quadro de médicos completo.

Conclusão e Considerações Finais

Há muitos elementos, informações e análises que não puderam ser aqui detalhadas pelo espaço limitado deste artigo. É importante ressaltar, porém, alguns aspectos da trajetória desta organização. A capacidade desta organização de manter-se e adaptar-se a todas as mudanças aqui descritas é uma característica marcante. Especialmente sem ter mudado algumas de suas características principais, que foram o trabalho territorializado, voltado para a comunidade, e a saúde pública. Outro ponto a destacar é ter incorporado, em maior ou menor velocidade, as principais inovações técnicas na sua área de atuação. Este seria o motivo de sua sobrevivência como aparelho público de prestação de serviços de saúde à comunidade. Quanto aos desenhos experimentados em sua vinculação político-institucional passou por inúmeras experiências, retornando, por fim, ao modelo municipalizado. Este consagra-se mais e mais como o melhor modelo para a atuação do sistema público. Um último aspecto a destacar é a possível superação da dualidade que historicamente marcou a atuação das organizações da SP e da assistência médica.

É interessante notar que a produção sobre a trajetória da rede básica tenha sido tão ignorada pelos muitos autores e pesquisadores da Saúde Coletiva de outrora e atuais. No presente caso, o Rio de Janeiro é um importante laboratório de experiências, tanto de implantação da rede básica quanto dos estabelecimentos médicos hospitalares da Previdência no Brasil. É talvez o caso mais marcante no país, seja pelo passado como antiga capital do país, seja pela importância do seu papel atual para o SUS, devido às inovações aqui ocorridas. O Rio de Janeiro foi um laboratório de experiências na era pré-SUS e mantém este papel na era SUS. A rede básica sempre foi financiada com os impostos gerais, e sempre teve como principal objetivo atender à cobertura de serviços a uma população pobre e desassistida, a maioria desta imensa nação. É mister constatar a desatenção da literatura com os serviços públicos não previdenciários do país e seu impacto na saúde da população. Atualmente, esta rede é uma das principais protagonistas de uma mudança radical no modo de ver o papel do Estado na saúde de seus cidadãos. Este deve ser o de prover um atendimento universal e integral, com a coordenação de todos os cuidados realizados pela APS. Este modelo alcança, como alcançou o de 1927, mais da metade dos moradores da cidade do Rio de Janeiro. Esta conquista atual é coerente com a história do SUS que tem a tendência à universalização do Direito à Saúde e a valorização do atendimento territorializado, integral com o foco no usuário. O modo de atuar, com suas diversas soluções técnicas, também é muito promissor.

Por fim, vale lembrar que nada mais justo do que resgatar a história de persistência de tantos idealistas e abnegados que lutaram pelo direito à saúde de milhões de cidadãos desta cidade e do país. A atual tarefa de integrar a assistência clínica à saúde coletiva coube às Equipes de SF, a maioria tão jovens quanto aqueles que representavam a geração dos anos 1930, dos jovens turcos, e também aqueles que integraram a geração dos jovens sanitaristas dos anos 1970 e 1980, que denunciaram a divisão entre uma medicina previdenciária para poucos e uma Saúde Pública precária para muitos.

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