versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.5 São Paulo maio 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140065
A epidemiologia cardiovascular avançou enormemente no estudo de fatores de risco para aterosclerose1, como demonstram as publicações nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC) nos últimos anos2 - 4.
A partir desse conhecimento, é possível explorar novas hipóteses e, portanto, novas fronteiras para a prevenção. Entre as diferentes perspectivas para o estudo desses fatores de risco está a epidemiologia do curso da vida. Essa perspectiva considera que o início da doença pode ocorrer muito antes do estabelecimento dos fatores de risco tradicionais na vida adulta. Assim, a saúde e as doenças podem ser consideradas como resultados de efeitos, em longo prazo, de exposição a diferentes fatores presentes durante as diversas fases da vida, incluindo a vida intrauterina, a infância, a adolescência e a idade adulta5.
Isso eleva significativamente a complexidade da análise6, mas também acrescenta dimensões antes pouco exploradas à epidemiologia e à prevenção cardiovascular. Um conceito básico dentro dessa linha de interpretação epidemiológica é a dos períodos críticos ou sensíveis, ou seja, a ideia de que um estímulo, agindo durante determinado período crítico do desenvolvimento, possa trazer consequências duradouras na estrutura ou função dos órgãos. Por exemplo, o período intrauterino, no qual tecidos e órgãos estão em formação, é crítico para o estabelecimento de um perfil de risco para o resto do curso da vida. Adaptações metabólicas do feto ocorridas nesse período poderiam persistir para o resto da vida, aumentando o risco de doenças crônicas, como a doença arterial coronariana, o diabetes e a obesidade durante a vida adulta. Esse processo tem sido denominado programação intrauterina das doenças crônicas7.
Os ABC vêm publicando artigos interessantes sobre esse tópico, alimentando a discussão que já vem ocorrendo no cenário internacional8 - 10.
Em um estudo realizado em Goiânia11, os autores compararam as pressões, medidas através da MAPA, de um grupo de crianças com baixo peso ao nascer com aquelas com peso adequado ao nascimento, observando que as de baixo peso apresentavam pressão arterial mais elevada e alteração do ritmo circadiano da pressão arterial, com atenuação do descenso noturno.
Por outro lado, Souza e cols.12 estudaram a associação entre peso de nascimento e fatores de risco cardiovascular em adolescentes de Salvador, e observaram prevalência duas vezes e meia maior de obesidade e três vezes maior de elevação da pressão arterial no grupo com alto peso ao nascimento em relação ao grupo com peso normal.
Esses achados, aparentemente conflitantes, podem na verdade representar uma curva em U, na qual tanto o baixo peso quanto o alto peso representariam risco em relação ao peso adequado ao nascimento. Em estudos observacionais, recém-nascidos com peso de nascimento inferior a 2.500 g apresentaram maior incidência de doença cardiovascular -hipertensão arterial sistêmica e aterosclerose - e intolerância à glicose - diabetes tipo II ou síndrome metabólica na vida adulta. Bebês com peso ao nascer superior a 4 kg, independentemente de idade gestacional ou sexo, apresentam alterações no metabolismo dos carboidratos e lipídeos associadas ao desenvolvimento tardio de obesidade, diabetes e dislipidemia13 - 15.
Além da associação não linear, há muitos caminhos pelos quais os fatores intrauterinos podem influenciar no padrão de doença em fases posteriores. Esses efeitos podem interagir com outros estímulos que ocorrem em outros períodos, sofrendo modificações ao longo da vida. Assim, por exemplo, o peso de nascimento considerado de forma isolada não seria suficiente para explicar a DAC, sendo necessário considerar a relação entre esse marcador e os acontecimentos que se sucedem ao momento do nascimento, como a recuperação rápida do crescimento na primeira infância, que pode potencializar o aumento de risco16 , 17.
Portanto, o modelo de curso de vida permite que sejam estudadas não somente as exposições iniciais, mas sua possível interação com outros fatores intermediários. O conhecimento dessa sequência de acontecimentos e da ideia de períodos críticos tem repercussões importantes para a adoção de estratégias preventivas, pois ajuda a identificar períodos de maior necessidade de intervenção e também a considerar as desigualdades sociais na saúde como fatores que atuam ao longo de todo o ciclo da vida e atravessam gerações em seus efeitos5.
O estudo do Rio de Janeiro18 avaliou a pressão arterial de adolescentes e, novamente, dos mesmos indivíduos 18 anos depois. Os adolescentes com pressão arterial anormal na primeira medida apresentaram maiores médias de peso, insulina, leptina, apolipoproteína B100 e A1, maiores prevalências de sobrepeso, obesidade, CA aumentada e hipertensão arterial em relação ao grupo com pressão arterial normal na adolescência. A adolescência é uma fase que merece especial atenção. Uma boa nutrição nessa fase repercute de forma definitiva na vida do indivíduo, pois é nela que 25% da estatura final e 50% da massa corporal são adquiridos, sendo uma fase importante para o controle de peso e a aquisição de bons hábitos alimentares.
Outro interessante estudo publicado nos ABC 19 avaliou indivíduos em três momentos distintos da vida. Os adultos diagnosticados com síndrome metabólica já tinham, na adolescência, valores significativamente superiores de peso, circunferência da cintura e índice de massa corporal. Esse fato tem importantes implicações para a prevenção, já que a detecção precoce desses fatores de risco pode significar benefício significativo no futuro20 , 21.
A adoção de um modelo de curso da vida tem, portanto, o potencial de alterar significativamente o paradigma de prevenção das doenças cardiovasculares, da atual ênfase no controle de fatores de risco na vida adulta para uma abordagem mais ampla de prevenção dos fatores de risco propriamente ditos durante todo o curso da vida, incluindo a infância e a adolescência. Novos estudos brasileiros, incluindo possíveis mecanismos, como a expressão gênica22, e as interações entre as fases da vida, a composição corporal e o meio ambiente23, poderão acrescentar evidências a esse conjunto, abrindo novas possibilidades de intervenção no nosso meio.