versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.27 no.4 São Carlos out./dez. 2019 Epub 25-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1818
Desde a metade do século XX o desenvolvimento humano tem sido entendido por muitos teóricos como um processo multidimensional (SPENCER; PERONE; BUSS, 2011). Sob a ótica de teorias contemporâneas, o desenvolvimento infantil tem sido estudado a partir de uma perspectiva ecológica e dinâmica e, ao invés de caracterizar o que muda com o desenvolvimento, há uma tendência de se compreender como as mudanças no desenvolvimento ocorrem (BRONFENBRENNER; CECI, 1994; THELEN, 1995; SPENCER; PERONE; BUSS, 2011). Há também valorização das relações existentes entre o desenvolvimento infantil e tradições culturais, práticas, locais e contexto histórico nos quais as atividades infantis são vivenciadas (HEDEGAARD, 2012).
Os cuidados prestados às crianças também são influenciados por fatores culturais, socioeconômicos e de estrutura familiar (FERREIRA et al., 2018; FREITAS et al., 2013). Entende-se que o desenvolvimento se dá a partir da interação das relações vivenciadas no dia a dia do sujeito com a mediação da cultura e do contexto sócio histórico (NELSON; IWAMA, 2010; HEDEGAARD, 2012). Dentro destas perspectivas, a abordagem ecológica de Bronfenbrenner auxilia no entendimento de que o sujeito está em constante interação com as suas relações e contextos sociais, ou seja, o material genético não produz traços acabados, mas interage com a experiência ambiental na determinação dos resultados do desenvolvimento (BRONFENBRENNER; CECI, 1994). Bronfenbrenner (1979) caracteriza contexto como um evento ou condição fora do organismo que pode influenciar ou ser influenciado pela pessoa em desenvolvimento. A abordagem bioecológica entende o contexto como potencializador de oportunidades influenciáveis no desenvolvimento do sujeito e que todas as relações (criança, família, sociedade) estão interligadas (BENETTI et al., 2013; BRONFENBRENNER, 1979).
O desenvolvimento da movimentação humana acontece de forma semelhante em qualquer lugar do planeta, já que a maior parte da população é capaz de executar movimentos e atividades cotidianas com relativa competência: vestir, alimentar, brincar, caminhar são algumas das atividades que conseguimos fazer com pouca ou nenhuma instrução formal (DANTAS; MANOEL, 2009). Entretanto, algumas crianças têm muita dificuldade para realizar estas atividades e suas competências motoras são diferentes de seus pares, mas não apresentam sinais neurológicos clássicos que possam explicar o problema (MAGALHÃES; CARDOSO; MISSIUNA, 2011). Atualmente, o termo transtorno do desenvolvimento da coordenação (TDC) é considerado o mais adequado para se referir à estas crianças (MAGALHÃES; CARDOSO; MISSIUNA, 2011). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) estabelece quatro critérios para diagnóstico do TDC considerando crianças que ao início do desenvolvimento têm a aquisição e a execução de habilidades motoras coordenadas substancialmente abaixo do esperado considerando-se a idade cronológica e nível de inteligência e a oportunidade de aprender e usar a habilidade, na ausência de problemas neurológicos ou físicos (ASSOCIAÇÃO..., 2014).
A prevalência do TDC comumente reportada na literatura é de 5% a 6% de crianças em idade escolar (BLANK et al., 2019), sendo que estudos brasileiros reportam índices que variam entre 3% e 43%, dependendo da região do país, avaliações utilizadas e ponto de corte estabelecido a depender do teste motor utilizado (BARBA et al., 2017; BELTRAME et al., 2017; FRANCA; CARDOSO; ARAÚJO, 2017). As possíveis causas do TDC ainda são pouco esclarecidas, embora seja considerado um transtorno do neurodesenvolvimento o que remete a problemas no sistema nervoso central, implicando em consequências funcionais (ASSOCIAÇÃO..., 2014; ZWICKER; HARRIS; KLASSEN, 2013). Meninos e crianças com história de prematuridade e muito baixo peso ao nascer estão mais propensas a desenvolverem o TDC (ASSOCIAÇÃO..., 2014; ZWICKER et al., 2013) além disso, os problemas motores muitas vezes estão em associação com dificuldades de aprendizagem e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) (GOULARDINS et al., 2015; OLIVEIRA; NETO; PALHARES, 2018).
Por vezes, essas crianças são chamadas de “preguiçosas”, “estabanadas”, “lentas”, e observa-se que é comum fracassarem nas tentativas de completar tarefas em casa e na escola (SEGAL et al., 2002; MISSIUNA et al., 2006; MAGALHÃES; CARDOSO; MISSIUNA, 2011). Crianças com TDC tendem a evitar atividades que requerem mais esforço corporal e sejam mais difíceis de fazer em decorrência do fracasso repetido ao tentar realizá-las (CAIRNEY et al., 2012). A criança com TDC pode evitar participar de brincadeiras mais ativas, das aulas de educação física, podendo levar a repercussões na saúde física e mental, como baixa autoestima, pouca motivação, isolamento social e depressão (CAIRNEY et al., 2012; MISSIUNA; CAMPBELL, 2014; CAPISTRANO et al., 2015).
Dificuldades para desempenhar atividades nas quais se espera que a criança faça ou que deseja fazer, mas não consegue, é um ponto fundamental no reconhecimento do TDC (SMITS-ENGELSMAN et al., 2015). Neste sentido, crianças com TDC representam parcela considerável no total de encaminhamentos para terapia ocupacional (BLANK et al., 2019). Na perspectiva do Modelo Canadense de Desempenho Ocupacional e Engajamento (CMOP-E), a terapia ocupacional está preocupada com o desempenho ocupacional e com a transformação, significado, identidade, engajamento, equilíbrio e justiça ocupacional (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013). O desempenho ocupacional é definido como a execução real de uma ocupação, enquanto competência ocupacional é a adequação ou suficiência numa habilidade ocupacional satisfazendo os requisitos do ambiente (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013). Engajamento é definido como envolver-se em uma situação, participar (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013). O engajamento na ocupação envolve a interdependência dinâmica entre pessoa, ambiente e ocupação.
O TDC compromete o engajamento da criança em ocupações e estes problemas transcendem o diagnóstico de um transtorno motor e podem levar à exclusão social, baixa autoestima, atraso na aprendizagem e problemas no contexto familiar (MISSIUNA; CAMPBELL, 2014). Crianças com TDC não participam das mesmas atividades que outras crianças e, em decorrência disso, podem deixar de explorar a sua competência e não estarem motivadas para participar de novas oportunidades que lhes são oferecidas (ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010; WAGNER et al., 2012; MISSIUNA; CAMPBELL, 2014). Estas questões independem da condição socioeconômica e cultural (ASSOCIAÇÃO..., 2014). Grupos de pesquisadores brasileiros vêm investigando o impacto de fatores contextuais, como ambiente e nível socioeconômico no desenvolvimento e desempenho motor e cognitivo, bem como os impactos na percepção de competência e na motivação para aprender e na formação do autoconceito de crianças com TDC (BOBBIO et al., 2010; VALENTINI et al., 2016; COUTINHO et al., 2017; NOBRE et al., 2018).
O constructo autoeficácia ou competência percebida reflete a habilidade para avaliar sua própria capacidade em realizar uma determinada tarefa (MISSIUNA et al., 2006). A percepção de autoeficácia determina as atividades nas quais se participa, a quantidade de energia que se coloca nelas e o grau de perseverança face a adversidades e ainda prediz metas que um indivíduo pode traçar para si em termos de crescimento pessoal (BANDURA, 1997). Em geral, um forte senso de autoeficácia pode ser fundamental para se obter sucesso com o que se deseja alcançar (MISSIUNA et al., 2006). Além de ser importante para se auto avaliarem e identificarem metas de terapia (MISSIUNA et al., 2006), a percepção de autoeficácia de crianças com TDC pode influenciar escolhas e preferências por determinadas atividades (ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010). Quanto menor a autoeficácia, pior é o desempenho motor e mais restritas são as atividades nas quais as crianças com TDC tem preferência por participar (ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010). Assim, crianças com TDC podem evitar participar de atividades não só pelas dificuldades motoras, como também pelo baixo senso de autoeficácia (ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010).
A formação do autoconceito e da percepção que a criança tem de si é caracterizada como um conjunto de atribuições cognitivas, como características pessoais e de comportamento em situações do dia a dia (OLIVEIRA; MATSUKURA; FONTAINE, 2017). Esta visão varia de acordo com as considerações de percepções que o indivíduo tem de si mesmo e, como consequência, do julgamento que os outros significativos fazem dele, principalmente, influenciado pelas interações estabelecidas nos contextos familiar, social e escolar (OLIVEIRA; MATSUKURA; FONTAINE, 2017). Galvão et al. (2014a) revisaram estudos sobre a percepção dos pais sobre a rotina principalmente em casa e na escola de suas crianças com sinais de ou já diagnosticadas com TDC. Os pais falaram sobre as diferenças no comportamento motor de suas crianças e relataram restrições na participação em atividades típicas da infância. Entre as maiores preocupações das entrevistadas estavam o processo de socialização e a falta de preparo do sistema educacional para lidar com as dificuldades das crianças (GALVÃO et al., 2014a).
Como todos os estudos revisados eram estrangeiros, as autoras alertam para a importância de pesquisar a percepção de mães de crianças brasileiras com TDC (GALVÃO et al., 2014a). Assim, elas entrevistaram cinco cuidadoras de crianças identificadas com o transtorno e os resultados mostraram que os problemas de coordenação motora ainda são pouco reconhecidos, sendo que os problemas decorrentes das dificuldades acadêmicas são mais impactantes (GALVÃO et al., 2014b).
Buscando contribuir com a literatura nesta área e avançando no sentido de entender o ponto de vista das mães e das crianças sobre as dificuldades motoras, parte-se das seguintes perguntas de pesquisa: qual é a percepção de mães e suas crianças sobre os possíveis impactos do TDC no dia a dia? O transtorno influencia o autoconceito e a autoeficácia das crianças? Este trabalho teve como objetivo geral investigar as percepções da díade mãe-criança sobre os prováveis impactos do TDC no desempenho ocupacional das crianças e no dia a dia da família; e, como objetivos específicos: (1) explorar as relações existentes entre as ocupações, habilidades e ambiente das crianças; (2) investigar os possíveis impactos do transtorno na formação do autoconceito e autoeficácia das crianças.
Este é um estudo exploratório de corte transversal que investigou a percepção de crianças e suas mães sobre os possíveis impactos do TDC no dia a dia da família. Optou-se pela metodologia qualitativa por ser uma abordagem mais adequada para explorar interpretações das pessoas sobre o modo como vivem, pensam e percebem a realidade (MINAYO et al., 2002). Esta pesquisa é parte de um projeto maior que investigou a relação entre o processamento auditivo central, processamento sensorial e coordenação motora em crianças com idade escolar em processo de finalização, aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (C.A.A.E 61403916.1.0000.0065; Parecer 1.856.907).
Participaram do estudo maior 72 crianças, de sete a dez anos de idade, de duas escolas públicas da cidade de João Pessoa, Paraíba. Este estudo envolveu duas escolas públicas municipais de ensino fundamental que aceitaram participar. A faixa etária das crianças se refere a uma etapa de aumento da demanda escolar, contribuindo para o possível reconhecimento de problemas acadêmicos e identificação de suas causas.
As crianças foram inicialmente avaliadas com: (1) o Movement Assessment Battery for Children 2 – MABC-2 (HENDERSON et al., 2007) para avaliar o desempenho motor através de observação direta. Crianças com percentil menor ou igual a 15 apresentam problemas motores, sendo o percentil igual a 5 considerado o mais grave quadro do TDC; (2) as Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, normatizado para crianças brasileiras (ANGELINI et al., 1999) para avaliar o desenvolvimento intelectual. Classifica o nível cognitivo como: intelectualmente superior, definitivamente acima da média, intelectualmente médio, definitivamente abaixo da média, intelectualmente deficiente; (3) Swanson, Nolan and Phelham (SNAP-IV) versão brasileira (MATTOS et al., 2006), para avaliar sinais do TDAH, preenchido pelos cuidadores; (4) Perfil Sensorial 2, versão em processo de tradução e adaptação transcultural (DUNN, 2014), para caracterizar o processamento sensorial; (5) ficha de registro de dados desenvolvida para o estudo sobre o histórico de crescimento e desenvolvimento da criança e dados sobre condições socioeconômicas e ambientais.
Os responsáveis foram esclarecidos sobre a natureza da pesquisa, bem como da possibilidade de a criança apresentar desempenho motor abaixo do esperado para idade, sendo que nestas circunstâncias, seriam chamados para entrevista e orientações. Após aceitarem participar, os responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e as crianças assinaram o termo de assentimento. Após esta bateria de avaliações para o estudo maior, as crianças convidadas para o presente estudo foram elegíveis de acordo com os seguintes critérios de inclusão: a) percentil igual e menor do que 15 no teste MABC-2; b) categoria igual ou maior que III (intelectualmente médio) na RAVEN. Os critérios de exclusão foram: diagnóstico de quadros clínicos ou doenças neurológicas; atraso de mais de um ano escolar que poderia indicar outros problemas.
Foram identificadas sete crianças que apresentavam desempenho motor abaixo do esperado para a idade, mas sem diagnóstico confirmado, que em conjunto com suas mães, foram convidadas a participarem deste estudo. Destas, quatro díades mãe-criança foram excluídas por não comparecimento às entrevistas apesar de duas tentativas de novos agendamentos, ou, por impossibilidade de contato, esgotadas todas as fontes. Ao final, aceitaram participar e compareceram a este estudo, três mães e três crianças (Figura 1).
As mães e crianças elegíveis foram contatadas por telefone, informadas sobre o desempenho de suas crianças nos testes e convidadas a comparecerem à Clínica-Escola de Terapia Ocupacional da Universidade Federal da Paraíba, nos meses de julho e agosto de 2018 para serem entrevistadas quanto aos impactos das dificuldades da criança no cotidiano e para receberem as orientações sobre como aperfeiçoar o desenvolvimento e desempenho de suas crianças.
Para fins de caracterização da amostra, as mães responderam ao Critério de Classificação Econômica Brasil – CCEB da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) (BRASIL, 2014) que foi aplicado para estimar o nível econômico da família. Estima o poder de compra das pessoas e famílias urbanas, proporcionando a classificação da população em classes econômicas. O sistema de pontuação do CCEB é dividido em duas categorias: posse de itens e grau de instrução do chefe de família e acesso a serviços públicos. A soma da pontuação total possibilita definir em qual das seis classes a família se enquadra (A - por volta de R$20.272,56; B1 - por volta de R$8.695,88; B2 - por volta de R$4.427,36; C1 - por volta de R$2.409,01; C2 - por volta de R$1.446,24; DE - por volta de R$639,78).
Para confirmar as dificuldades no desempenho da criança em atividades de vida diária, escola, brincar e lazer (Critério B sugestivo de TDC de acordo com o DSM-V), as mães responderam ao Developmental Coordination Disorder Questionnaire versão brasileira (DCDQ-Brasil) (PRADO; MAGALHÃES; WILSON, 2009). O DCDQ-Brasil tem 15 itens distribuídos nas seguintes sessões: controle durante o movimento, habilidades motoras finas e de escrita, habilidades motoras grossas e de planejamento, coordenação motora global. Os itens são pontuados em escala de cinco pontos, com pontuação máxima igual a 75; quanto maior a pontuação, melhor o desempenho da criança na atividade de acordo com o respondente. Embora ainda não haja normas brasileiras para o DCDQ-Brasil, foram utilizados os pontos de corte propostos para crianças canadenses, pois as médias de desempenho são similares nos dois países (PRADO; MAGALHÃES; WILSON, 2009). Suspeita-se que a criança tenha problemas motores que estão refletindo no desempenho de atividades se: de cinco anos a sete anos e 11 meses obtiver escore total de 0-46; de oito anos aos nove anos e 11 meses, obtiver escore total de 0-55; de 10 anos a 15 anos e seis meses, obtiver escore total de 0-57.
As mães e crianças foram entrevistadas ao mesmo tempo em salas distintas, por duas pesquisadoras (CL e CA). Para que as mães e crianças pudessem falar sobre suas percepções quanto aos impactos do TDC no cotidiano das crianças e da família, foi elaborado um roteiro norteador para a entrevista semiestruturada. Este roteiro foi construído conforme dados obtidos na literatura (GALVÃO et al., 2014b) e com base na experiência da entrevistadora (CA) com crianças com TDC e suas famílias (ARAÚJO; MAGALHÃES; CARDOSO, 2011; ARAÚJO; CARDOSO; MAGALHÃES, 2017). Inicialmente, as mães foram estimuladas a falarem sobre como a criança fazia as atividades em casa, como se arrumar, se vestir, tomar banho, ajudar em tarefas domésticas, e, em seguida, sobre a criança na escola, no brincar e na relação com os colegas. As perguntas eram disparadas à medida em que a mãe dialogava com a entrevistadora, para que pudessem falar de forma livre sobre o tema.
Para investigar se as dificuldades motoras eram identificadas e percebidas pelas crianças, a técnica metodológica foi diferente: uma atividade de desenho livre foi proposta à criança, enquanto a pesquisadora (CL) fez a entrevista aberta com o intuito de deixar a criança confortável para falar sobre si. Oliveira (2012) entende a pesquisa como um ato criativo e que o pesquisador pode utilizar instrumentos adequados ao seu objeto de estudo sem fazer uso de uma forma para rotular realidades (OLIVEIRA, 2012). Além disto, entrevistar crianças representa um desafio, pois é necessário pensar meios inovadores para que a criança consiga interagir com o pesquisador e expressar suas ideias. Isto permite que a criança dê contribuições para a compreensão do pesquisador sobre suas formas de ver e pensar sobre seus contextos de vida (FOLQUE, 2010).
As entrevistas foram gravadas em equipamento de audio (Tablet Samsung Galaxy Tab 4, via aplicativo Voice Recorder), com autorização dos participantes. O tempo de entrevista tanto com as mães quanto com as crianças variou de 30 a 40 minutos (total de 126 horas e 31 minutos de gravação). Em seguida, as entrevistas foram transcritas na íntegra pela pesquisadora (CL).
Optou-se pela análise de conteúdo por permitir ao pesquisador encontrar respostas para as questões formuladas, confirmar ou não hipóteses estabelecidas anteriormente à investigação, e descobrir o que está por trás de conteúdos manifestos (GOMES, 2002). O processo de análise foi conduzido em estágios: pré-análise, codificação (transformação do dado bruto, recortes, agregação e enumeração para organização da análise) e definições de categorias distintas (GOMES, 2002; MINAYO et al., 2002; BARDIN, 2010).
Para buscar a compreensão dos processos de enfrentamento pelos quais a criança com TDC e sua família vivenciam, foram utilizados como referenciais teóricos a teoria bioecológica de Bronfenbrenner (BRONFENBRENNER, 1979; BRONFENBRENNER; CECI, 1994) e o modelo Canadense de Desempenho Ocupacional e Engajamento (CMOP-E) (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013).
A abordagem bioecológica de Bronfenbrenner (1979) explica que a falta de oportunidade pode se dar a partir de duas esferas centrais: macrossistema e microssistema - respectivamente, pelo impacto do contexto cultural, subcultura, pobreza, riqueza, e, pelas situações que a criança tem experiência pessoal direta, como as relações familiares. Na camada exossistema são consideradas as situações não experimentadas diretamente pela criança no dia a dia, mas que afetam a camada microssistema; a família. Segundo esta abordagem, o desenvolvimento da criança se dá a partir da interação das camadas concêntricas, que são situações vivenciadas pelo sujeito, onde todas as influências do ambiente estão relacionadas entre si (BRONFENBRENNER, 1979).
O CMOP-E contribui para o entendimento de que há uma interação dinâmica entre o sujeito e as diferentes perspectivas da sua vida caracterizado como a tríade: ambiente – ocupação – pessoa. Todo sujeito (com seus componentes cognitivos, afetivos, físicos e outros) está inserido em um ambiente - físico, cultural, social ou institucional – engajado em ocupações (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013). Fatores ambientais – sociais e econômicos - podem representar barreiras ou facilitadores para o engajamento da criança em atividades significativas para ela. O CMOP-E entende que o ambiente influencia na ocupação humana e que a pessoa tem a capacidade de adaptar e adquirir novas habilidades frente a novos contextos de vida (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013).
Os resultados serão apresentados juntamente com as discussões realizadas advindas das entrevistas junto às mães e crianças. A caracterização dos participantes foi resumida nas tabelas 1 e 2.
Tabela 1 Perfil das crianças.
Criança 1 | Criança 2 | Criança 3 | |
---|---|---|---|
Gênero | Masculino | Feminino | Feminino |
Idade | 9 | 9 | 8 |
Escola | Escola A | Escola A | Escola B |
MABC-2 | 5 | 5 | 5 |
DCDQ – Brasil* | 31 | - | 54 |
SNAP-IV | Presença de sinais clínicos de desatenção e/ou hiperatividade | Presença de sinais clínicos de desatenção e/ou hiperatividade | Ausência de sinais clínicos de desatenção e/ou hiperatividade |
*De acordo com o ponto de corte para idade, representa indicativo de dificuldades do desempenho de atividades da vida diária, escolares e de brincar para as crianças 1 e 3, a mãe da criança 2 não soube informar sobre o desempenho da criança em alguns itens do questionário, não sendo possível prever pontuação total.
Tabela 2 Perfil dos Informantes.
Informante 1 | Informante 2 | Informante 3 | |
---|---|---|---|
Caracterização | Mãe = M1 | Mãe = M2 | Mãe= M3 |
Idade | 34 | 38 | 45 |
Estado civil | Casada | Solteira | Divorciada |
Número de filhos | 01 | 04 | 01 |
Escolaridade | Fundamental II incompleto | Analfabeta | Superior incompleto |
Profissão informante | Doméstica | Diarista | Comerciante |
Classificação econômica | C1 | D-E | C1 |
Renda aproximada | Um salário mínimo | Menor que um salário mínimo | Maior que cinco salários mínimos |
A partir da análise das entrevistas surgiram os temas que mais se destacaram dentre as falas e nortearam a construção das seguintes categorias: oferta de oportunidades de brincar e de fazer, impactos na escola, e, dentro desta, a subcategoria relação com os outros.
As oportunidades vivenciadas e experimentadas pelas crianças identificadas com TDC foi uma temática recorrente. De modo geral, todas as mães percebem as influências das dificuldades das crianças e de fatores dos contextos em que vivem frente a oferta de oportunidades para aprender e praticar habilidades no dia a dia.
Não, eu deixo ele brincar em casa, na minha casa tem videogame aí ele brinca com os meninos, quem chega brinca com ele (M1).
Não, ela brinca, só assiste mais e brinca com ela tem uma ela ganhou uma caminha é com o que ela tá brincando agora de boneca tanto que dá ele, ela arranca a cabeça, arranca braço e vai direto pra o lixo. Aí agora ela tá só com a caminha, somente brinca com o que tem (M2).
Brinca com as meninas, eu só não deixo ela brincar com menino mais, antes eu deixava, mas agora não deixo mais não. Quando ela tá brincando com menino, eu coloco ela pra dentro. Só tem dois meninos que eu deixo ela brincar que são meus vizinhos onde eu moro, porque eu moro de aluguel aí eu moro em uma vila, mais em termo dela tá no meio da rua brincando com menino eu não deixo mais não. Ou ela brinca com menina, ou não brinca com ninguém, fica dentro de casa e brinca só (M2).
Tendo em vista os fatores que influenciam a oferta de oportunidades para as crianças entrevistadas aprenderem e desenvolverem habilidades, obtivemos dois parâmetros: 1) poucas oportunidades - as crianças 1 e 2 que vivem em um contexto diferente, com alto índice de vulnerabilidade socioeconômica, violência e periculosidade; 2) aumento de oportunidades - a criança 3 vivia em um contexto de restrição de oportunidades pelo espaço físico em que estava inserida e passou a ter oportunidades com a mudança de ambiente, ou seja, a criança teve um aumento nas oportunidades de vivenciar e experimentar situações que antes não eram comuns em seu dia a dia.
Até o ano passado a gente morava no apartamento dos meus pais, que não tem espaço, tem esse detalhe [...] E como passo o dia trabalhando, tenho muito cuidado para ela não cair, para ela não... acontecer... ela tem bicicleta, mas nunca deixei usar, temendo, porque lá não tem espaço, é uma garagem, aí ficava muito perigoso, ou ficava na rua ou ficava onde tem os carros. Aí quando foi do ano passado pra cá, eu consegui, a gente conseguiu morar no nosso apartamento próprio, não é um palacete, mas é nosso. Aí tem um espaço, uma área melhor, ela tem o quarto dela, não dorme no quarto comigo [...] E lá tem um espaço pra criança, um espaço pra brincar, daí ela está bem mais solta. Mesmo ela ficando um período assim, com meus pais, um período que eu tô trabalhando, mas ela, a noite, brinca com as outras crianças, se socializa melhor (M3).
Maior e Cândido (2014) utilizaram critérios (econômico, social e ambiental) propostos por outros pesquisadores brasileiros para pesquisarem sobre vulnerabilidade e analisaram diferentes locais da cidade na qual o presente estudo aconteceu. O contexto em que as crianças 1 e 2 vivem foi considerado uma comunidade com alta vulnerabilidade socioeconômica, algo que é reforçado na fala das mães M1 e M2 sobre o lugar, relatando e reconhecendo o local como violento e perigoso, sendo uma das barreiras atribuídas por elas à participação das crianças na comunidade (MAIOR; CÂNDIDO, 2014).
Em contrapartida, M3 vive em condomínio fechado, em bairro de classe média, onde a criança 3 passou a experimentar oportunidades surgidas a partir da mudança de contexto, inclusive escolar. M3 refere-se a esta mudança. Embora tenha emergido esta questão contextual, é interessante notar que tanto M2, quanto as próprias crianças 2 e 3, comentam que brincam dentro de casa. Ou seja, de um modo geral, mães e crianças comentaram sobre oferta de oportunidades as quais suas crianças estavam submetidas – restrição e aumento – são possivelmente mediadas pelo fator contexto, mas é perceptível que questões inerentes aos problemas de coordenação motora e as preferências por atividades menos ativas também exerçam influência sobre as atividades nas quais as crianças escolham participar.
Ela deu um salto de atividade muito grande [...] esse ano ela deu um salto muito grande, não sabe? (M3).
[...] ela brinca dentro de casa, agora tem umas meninas lá que ela fez amizade, ai ela agora tá brincando mais dentro de casa, não tem? Quando chega da escola, mas só isso mesmo (M2).
Brincar de casinha, é [...] Brincar de casinha de boneca (criança 2).
De barbie, na casinha da barbie com as minhas amigas, assisto tv (Criança 3).
Porque tem vez que eu to brincando, aí eu levo uma topada em casa e sem querer eu derrubo as coisas, minha mãe não gosta [...] (Criança 2).
A relação entre contexto ou ambiente físico e social e o desenvolvimento, pareceram atreladas a questões relacionadas ao TDC. Em algumas situações, foi possível observar que as crianças têm a oportunidade de vivenciar o brincar em seu dia a dia, porém as atividades ficam mais restritas a vídeo games, bonecas e o que tem disponível para elas com maior frequência dentro de casa (CAIRNEY et al., 2010; ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010). A partir destes resultados percebe-se a inter-relação entre o microssistema e o mesossistema conforme a teoria ecológica de Bronfenbrenner (1979). A criança em determinado contexto (micro) - suas atividades, papéis, relações e características físicas – pode interagir ou não com outro contexto – como a vizinhança ou comunidade (meso) na qual se insere para participar ativamente. A ideia essencial da teoria ecológica é a de que o desenvolvimento humano é influenciado por mudanças que acontecem no ambiente cultural, social, econômico e pelas histórias de vida, experiências, crenças e comportamentos (HADDAD, 1997).
As crianças 1 e 2 reconhecem as suas dificuldades motoras e evitam brincadeiras que necessitam das suas habilidades motoras e agilidade para correr.
Você não gosta de correr não? Não, tia. (risos) porque é chato, tia. Muito! Eu caio demais. Completou: Não. Eu não fico muito na rua, jogo mais com meu amigo no play 2, mario. Maaaaaario... Não gosto muito de brincar na rua não. Porque é chato, a pessoa fica caindo, você se machuca. Minha mãe disse que é normal. Eu só fico em casa, eu e meu amigo (Criança 1).
Porque tem vez que eu to brincando, aí eu levo uma topada em casa e sem querer eu derrubo as coisas, minha mãe não gosta [...] (Criança 2).
A fala da criança 1 reflete seu comportamento e situações que ocorreram inclusive durante a entrevista. Em um dos episódios, a criança levantou-se para jogar um papel na lixeira e chegou a cair ao abaixar um pouco a cabeça e as pernas para alcançá-la. Neste momento, a criança fixou os olhos na entrevistadora, abaixou a cabeça com o semblante de tristeza e disse: “é sempre assim, tia”.
O modelo canadense de desempenho e engajamento ocupacional (CMOP-E) é um modelo dinâmico que permite ao terapeuta ocupacional pensar a interação entre pessoa, ambiente e ocupação, e ainda o engajamento ocupacional, para além da competência na execução das tarefas que compõem as ocupações humanas (TOWNSEND; POLATAJKO, 2013). Entender como a pessoa se envolve e participa de situações de vida é central. A criança com TDC pode ter limitações no engajamento ocupacional não só pelos problemas físicos de coordenação motora, mas pela maneira com a qual acontece a interação dinâmica das suas características pessoais (físicas, afetivas, cognitivas, crenças) com o ambiente em que vive. O contexto cultural e social como a família, a vizinhança e a escola também ofertam significados às ocupações e ao modo como a criança se percebe nesta interação.
A criança que possui uma percepção de autoeficácia positiva – domínio afetivo no CMOP-E, mantém a crença de que é capaz de alcançar os resultados almejados para si, podendo fazer planos e traçar metas relacionadas a atividades que querem realizar. Em contrapartida, percepção de autoeficácia negativa pode levar a criança a apresentar comportamentos de abandono do problema tendo impactos na saúde e bem-estar na sua vida, influenciando na motivação e aprendizagem frente a demandas de atividades e participação (OLIVEIRA; MATSUKURA; FONTAINE, 2017; ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010).
Além da percepção de autoeficácia, o autoconceito também pode afetar o sistema de confiança em si, pensamentos, sentimentos e ações da criança, limitando ainda mais o engajamento ocupacional. Partindo do pressuposto de que o autoconceito se constitui também a partir de julgamentos que os outros fazem sobre a criança, entende-se que cuidadores, professoras, e outros significativos também podem influenciar e impactar na percepção da criança sobre si e sobre suas habilidades (OLIVEIRA; MATSUKURA; FONTAINE, 2017).
Crianças com TCD evitam participar de atividades que demandam essas habilidades e tendem a mostrar pouco ou nenhum interesse por esportes e brincadeiras que requisitem coordenação motora grossa ou fina mais apurada (CAIRNEY et al., 2007). Observa-se, portanto, que a criança 1 sugere na sua fala o interesse por jogos e brincadeiras que não requerem mais do que ele possa, ou seja, o esforço para realizar habilidades motoras em brincadeiras que causam sofrimento e angústia, mantendo a preferência pelo vídeo game e brincadeiras de super-heróis.
Ah, nois brinca de um moi de coisa [...] Ah, a gente brinca de super-herói, tipo... É fácil, é só você imaginar que você é um [...] Nois só brinca de coisas de heróis, tipo... Naruto, a senhora sabe o que é naruto? [...] nois brinca de dragon bool, naruto, nois brinca, de... Nois brinca de um moi de coisa, é... Que eu quase não sei (Criança 1).
Em contrapartida, as crianças 2 e 3 preferem brincadeiras que desafiam as suas habilidades motoras e tem oportunidades de vivenciá-las em seu dia a dia, tanto no contexto escolar, quanto na comunidade. De acordo com Cairney, Veldhuizen e Szatmari (2010), os déficits na participação em atividades organizadas e de brincar livre de meninos com TDC tendem a diminuir ao longo do tempo, enquanto em meninas com TDC, a participação tende a aumentar levemente (CAIRNEY et al., 2010). No entanto, no presente estudo, a criança 1 (menino) refere diminuição na participação em atividades mais ativas e percebe a interferência de suas dificuldades, enquanto as crianças 2 e 3 (meninas), tentam se engajar em atividades organizadas e de brincar livre mais ativas, pelo menos no contexto escolar e da comunidade.
Qualquer coisa, esconde esconde, toca toca, toca gelo... [...] Não sou muito chegada a bola não (Criança 2).
Esconde esconde, é... Menino pega menina, é... Xadrez, a gente brinca de boneca lá no colégio [...] futebol, gosto também de queimada (Criança 3).
A inter-relação entre oportunidade e rotina também se sobressaiu nesta categoria, uma vez que para otimizar o tempo, evitar frustrações e aborrecimentos, as mães completam quase sempre as atividades para as crianças. As crianças também são taxadas de preguiçosas em relação ao desempenho nas AVD. Inicialmente quando perguntadas sobre como os filhos realizavam as suas atividades de vida diária (AVD), a mãe da criança 1 foi taxativa:
Demora [...] eu que coloco a roupa nele. [...] Tomar banho, ele toma assim, vai no banheiro, se molhou, na hora do banho, é? Que ele vai, bem rápido. Aí eu faço, vai simbora tomar banho “N”, aí as vezes ele não toma banho direito, aí eu vou lá e dou banho nele. Para vestir a roupa as vezes é do mesmo jeito, não quer colocar a roupa e fica enrolado com a toalha, aí eu vou lá e coloco a roupa nele, mas as vezes eu acho que é preguiça dele, sei não. Eu fico pensando assim, as vezes eu penso (M1).
[...] às vezes ele coloca errado[...] não é toda vez não, mas às vezes ele coloca, ai eu digo, ta errado, tire aí, não é assim, aí ele vai lá e coloca bem certinho [...] a roupa avessada as vezes, a camisa. As vezes a bermuda de trás pra frente, a frente pra trás (M1).
Como eu morava na casa dos meus pais, eles acordavam, tinham que acordar muito cedo, porque a van passava muito cedo, eu que arrumava. Eu que arrumava ela literalmente [...] (M3).
A mudança para a criança 3 acontece quando a mãe deixa de fazer as atividades por ela, ofertando a oportunidade à criança:
[...] Ai como foi que nós estamos na nossa casa, ai eu disse, olhe minha filha, sua mãe precisa descansar, e você já está na idade de fazer as suas coisas só. Aí ela está re... ta assim, se vestindo só, se arrumando só, escolhendo a roupa dela só [...] quando foi pra sapato, sou eu que tem que dar o... amarrar [...] (M3).
Em contrapartida M2 relatou que a filha faz suas AVD com independência: “Ela calça tênis sozinha, ela amarra, não fica bem feito, mas ela faz” (M2). A relação entre o fazer e as oportunidades vivenciadas no dia a dia diz muito sobre as possibilidades de uso e experimentação das habilidades e da capacidade de execução das crianças. Em geral, a assistência e o tempo ofertados a crianças com TDC em atividades do dia a dia são maiores que o tempo fornecido para as crianças com desenvolvimento típico da mesma idade (SUMMERS; LARKIN; DEWEY, 2008). Houve ainda relatos do reconhecimento do problema devido a não realização das AVD’s:
Pra mim eu acho que é... não sei, né. Porque pra a idade dele, né, não era hora pra fazer isso, né (M1).
As dificuldades na execução de atividades diárias nem sempre são relacionados aos problemas de coordenação motora da criança. O TDC ainda é pouco reconhecido e levado em consideração por pais e professores, ao tentarem explicar o desempenho das crianças. Isto é reforçado na fala das mães: as crianças são taxadas de preguiçosas, desinteressadas e estabanadas por não conseguirem realizar as atividades do dia a dia que uma criança da mesma idade realiza com maestria. Ao deixar esta questão de lado, os problemas podem aumentar. Estudos indicam que os problemas de coordenação motora não são breves e típicos da infância, podendo ter impacto na fase adulta (TAL-SABAN et al., 2012), levando assim, a um maior índice de casos de depressão, problemas sociais e emocionais em indivíduos com TDC (CAIRNEY et al., 2010; MISSIUNA; CAMPBELL, 2014).
A identificação precoce do TDC é um meio para predizer os níveis de participação em atividades das crianças diagnosticadas com o transtorno, tendo em vista que, elas encontram barreiras para a participação e envolvimento em várias atividades como autocuidado, tarefas acadêmicas, brincar, lazer e envolvimento social (MAZER; DELLA BARBA, 2010; ROSENBLUM; ENGEL-YEGER, 2014). Muitas vezes os pais percebem alguns problemas na execução de tarefas comuns, no entanto, quando relatam essas preocupações para profissionais da área da saúde, o TDC é desconsiderado por desconhecimento da existência do transtorno (ROSENBLUM; ENGEL-YEGER, 2014). A identificação precoce é fundamental para a prevenção de questões emocionais mais graves relacionadas à diminuição do sucesso e participação em diferentes ambientes. Sendo assim, os pais, cuidadores e professores precisam tomar conhecimento sobre o TDC e seus impactos, com o intuito de identificar problemas precocemente, e agir de imediato (MAZER; DELLA BARBA, 2010; OKUDA, 2015; ROSENBLUM; ENGEL-YEGER, 2014).
Um dos critérios para diagnóstico do TDC é a interferência de maneira significativa no desempenho ou na participação de atividades da vida familiar, social, escolar ou comunitária. O assunto que mais se sobressaiu nas entrevistas das mães foi a dificuldades dos filhos na execução das tarefas escolares, despertando o olhar delas e apontando para algum tipo de problema. As três mães reconhecem as dificuldades de suas crianças, porém acreditam que seja mais pela preguiça e falta de interesse nas atividades escolares.
As mães das crianças 1 e 2 compartilham em suas falas da mesma angústia e preocupação quanto ao comportamento e a aprendizagem das crianças na escola.
Não sei se é preguiça, não sei o que é. Também não sei, quem sabe é a professora, mas também ela diz ela conversou comigo ontem e disse que ela não tá tirando, mas ela disse que é... ele tá desenvolvendo mais, porque agora coloca o nome dele lá aí ele vai lá e começa a escrever bem devagar demora que só (M1).
Até agora pra mim, assim, ela não aprendeu nada. Porque ela não conhece o alfabeto ainda, ela não... ela é desinteressada nessa parte. Eu acho ela desinteressada, porque a professora...desde o começo quando eu botei ela pra estudar, ela sempre brincava, conversava, ela não presta atenção no que a professora ta ensinando, ela fica desligada, não tem? O negoço dela é ta dando atenção aos outros. Eu muitas vezes fui chamada desde o começo quando coloquei ela pra estudar em termo disso, porque ela deixava de fazer as coisas dela, pra ir ajudar os coleguinhas, aí conversa, ficava distraída, da maioria das vezes que eu fui chamada no colégio, foi mais em termo disso, porque ela é muito distraída (M2).
Porque...ela...o primeiro ano ela fez em escola particular, a diretora queria reprovar. O colégio particular, assim pra proceder preço e tal tal, também queriam que ela repetisse o primeiro ano. Ela não lia. Ela fazia reforço, mas mesmo assim ela não conseguia ler. Minha mãe é professora, mas não tinha mais paciência, já é aposentada, é idosa. Quando foi no segundo ano ela foi para a escola pública, toda aquela adaptação, mas que também saiu sem conseguir ler. Melhorou muito a escrita. Quando entrou no terceiro ano que ela continuou na escola A que ela foi pra outra escola B, que ela conseguiu, antes do meio do ano ser alfabetizada. É por isso que eu digo que o salto foi esse. Pra matemática ela tem uma [...] (M3).
Todas as três crianças obtiveram percentil 5 no teste de desempenho motor, o que indica presença mais acentuada de problemas motores, que de fato interferem na realização de atividades em casa e na escola, e na participação em jogos e brincadeiras. Além de estarem inseridas em contexto diferente da criança 3, as crianças 1 e 2 apresentaram sinais clínicos de problemas de desatenção e/ou impulsividade/ hiperatividade. Cerca de 50% de crianças com TDC apresentam dificuldades na aprendizagem e TDAH (GOULARDINS et al., 2015; OLIVEIRA; NETO; PALHARES, 2018). Na maioria dos casos, é no início do ensino fundamental que a criança começa a apresentar as primeiras queixas de dificuldades na escola e frequentemente têm relação com as dificuldades motoras, apesar de nem sempre serem identificadas como problema (MAGALHÃES; CARDOSO; MISSIUNA, 2011). No caso das crianças deste estudo, as dificuldades de aprendizagem também podem estar presentes e devem ser mais bem investigadas.
Tendo em vista que a atividade escolar requer a execução de diversas habilidades motoras em conjunto, o que para as crianças com TDC é mais difícil de ser feito, as crianças são taxadas como preguiçosas, desinteressadas e sofrem ao não conseguirem realizar ou completar as tarefas da escola:
É, aí as vezes ele diz, ta bom, tire logo a minha mão, porque tu não faz a tarefa no meu lugar. Aí eu digo: não, quem tem que fazer é você. Eu já to te ajudando pegando na sua mão. Aí pronto, eu ajudo ele, aí ele termina a tarefa, aí faz (M1).
É porque ela é desinteressada, ensina a ela agora, quando vai perguntar, ela já não sabe mais [...] Um pouquinho pra não dizer que é tanto, né? (risos) a pessoa rir, mas o negoço é sério, ela é muito... Não sei não, ela é muito desligada da vida, não se interessa nas coisas, pra ensinar a ela dá trabalho, tem hora que ela se estressa. Porque ta explicando e ela só faz rir, ela não leva nada a sério, só leva na brincadeira mulher (M2).
Pra acompanhar, ela não acompanha muito não. Ela ontem, sempre os meninos as vezes, quem é mais desenrolado do que ela termina rápido e ela ainda fica fazendo a tarefa [...] é, porque assim, ela tem, ela tem um pouquinho de dificuldade de tirar do quadro mesmo (M2).
O tom da voz e os gestos durante as entrevistas a M2 e M1 eram denotadoras de tristeza e preocupação em decorrência das dificuldades e problemas enfrentados pelos filhos no contexto escolar. Os problemas de escrita estão presentes na rotina escolar e são intimamente relacionados ao TDC. Mas outro ponto a ser destacado dentro do ambiente escolar, geralmente pouco valorizado pelos professores, é a falta de envolvimento e o pobre desempenho em atividades físicas para a idade, o que tem implicações psicossociais a serem levadas em consideração, como a exclusão social e baixa autoestima, gerando impacto no rendimento escolar (CAIRNEY et al., 2012; MISSIUNA; CAMPBELL, 2014; CAPISTRANO et al., 2015).
Esta subcategoria foi proposta pela temática ter emergido fortemente na fala da díade 1 quando falavam sobre o cotidiano na escola. Por ser um assunto relevante, tornou-se importante destacar os relatos de M1 e da criança 1 sobre as relações vivenciadas com os colegas na escola e na comunidade. Tendo em vista que as relações pessoais têm impacto no modo como nos relacionamos com o mundo, a fala de M1 aponta a realidade vivida por sua criança no contexto escolar e está relacionada ao impacto da relação do filho com os colegas, transparecendo o sofrimento da criança 1, que muitas vezes prefere se distanciar das atividades com os demais colegas para evitar conflitos.
Ele só fala do recreio quando os colegas dá nele [...] os coleguinhas dá nele aí ele faz tá vendo, eu não queria nem sair da sala tá vendo mainha, tá vendo mainha, eu não queria nem sair da sala os meninos ficam arengando comigo aí eu fico dentro da sala (M1).
Diz... Que eu sou chato [...] Ele bate em mim. Não sei, ele é muito chato, me chama de pirralho. Eu não posso passar do lado dele, ele me bate (Criança 1).
Não, só ele, ele implica com todo mundo. O menino lá da rua, ele implica comigo também [...] ele não deixa eu perguntar. Ele é pior que o outro, só passar do lado que ele se irrita (Criança 1).
A literatura destaca que crianças com problemas de coordenação motora tem tendência a ter menos amigos e a não serem convidadas a participar de brincadeiras com as demais. As crianças por muitas vezes ainda se tornam alvo de gozação dos colegas, evitando a participação em ambientes que tenham atividades físicas e brincadeiras em grupos envolvidas, tornando ainda mais escassas as oportunidades de praticarem as suas habilidades e vivências com o outro (MISSIUNA; CAMPBELL, 2014; SEGAL et al., 2002; WAGNER et al., 2012).
Sentimentos relacionados à percepção de competência e autoestima das crianças com TDC são temas frequentemente discutidos na literatura (ENGEL-YEGER; HANNA-KASIS, 2010; MISSIUNA; CAMPBELL, 2014). Ao fazer os desenhos durante a entrevista a Criança 1 expressou o que as outras pessoas falam sobre ele: (Expressão de choro)
Mimimi [...] Todo mundo diz que eu só faço rabisco, não faço nada direito. [...] Um vizinho lá da sala da minha escola, ele é muito chato. Aí disse que eu só faço rabisco.
A partir dos relatos de mães e crianças foi possível compreender as percepções sobre e suas crianças e explorar as possíveis relações existentes entre as ocupações, os indivíduos e o ambiente nos quais se inserem, bem como o modo como estas relações e as percepções que a criança tem de si podem interferir no engajamento em atividades.
Embora percebam claramente os problemas enfrentados por suas crianças, as mães os relacionam à dificuldades de aprendizagem. O desajeitamento e lentidão das crianças para fazer atividades do dia a dia como: vestir, despir, alimentação, autocuidado, etc., talvez não sejam problemas tão relevantes quanto, por exemplo, as dificuldades no contexto escolar, compartilhadas por todas as mães, e que também podem ter ligação com o TDC como escrita, cópias do quadro, recorte, organização de materiais e realização de tarefas escolares no tempo e com mais independência. Percebe-se que há empenho das mães em buscar ajuda e entendimento sobre as dificuldades vivenciadas pelas crianças e que fatores do contexto influenciam a oferta de oportunidades de experiências motoras e relacionais a partir do brincar.
As mães deste estudo também sinalizam que percebem suas crianças mais “preguiçosas” e “desajeitadas”, reproduzindo uma fala comum em relação a crianças com TDC. Muitas vezes as mães referem que tem que fazer determinadas atividades por suas crianças, porque acreditam que as crianças não são capazes ou não fazem bem. Características pessoais e de comportamento em situações do dia a dia levam a criança a formar o autoconceito e a percepção de competência (autoeficácia). Isto pode variar dependendo das percepções que o indivíduo tem de si mesmo e do julgamento que outras pessoas relevantes fazem dele, principalmente, pelas relações que desenvolve nos contextos familiar, social e escolar.
Os resultados do presente estudo evidenciam que os problemas da coordenação motora não são identificados e reconhecidos, o que aponta para a importância em esclarecer mães, educadores e profissionais de saúde quanto às características do TDC e a presença de co-ocorrências, para que a criança e a família tenham suporte adequado para facilitar o engajamento e a participação em seus contextos de vida. Os participantes deste estudo receberam orientações sobre como aperfeiçoar o desenvolvimento e desempenho de suas crianças na realização de atividades rotineiras e pensar soluções para minimizar frustrações frente às dificuldades do dia a dia.
Algumas limitações podem ser descritas como o baixo número de participantes, mesmo que tenham se obtido dados suficientes para discutir as realidades vivenciadas pelas crianças com TDC e suas mães; uma única oportunidade de entrevistar a criança também pode ser um fator limitante, entendendo que se houvesse um número maior de sessões de entrevista as crianças poderiam ter se sentido mais à vontade para falar sobre si.
Acredita-se que o estudo possa contribuir para reforçar a necessidade de informar sobre os impactos do problema motor influenciando potencialmente o desempenho nas atividades em casa e na escola e na participação, além de considerar o papel do ambiente e da oferta de oportunidades para estas crianças.