versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.4 São Paulo jul./go. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000023
Dentre os fatores que contribuem para o aumento da incidência da tuberculose entre as populações prisionais, destacam-se: sexo masculino; baixa escolaridade; origem de comunidades carentes; uso de drogas ilícitas; alta prevalência de infecção por HIV; dificuldade de acesso aos serviços de saúde; celas superpopulosas, mal ventiladas e com pouca iluminação; e falta de informações sobre a tuberculose.1,2 Além disso, estudos demonstram que uma maior frequência de prisões anteriores, bem como o tempo de encarceramento, estão diretamente relacionados com uma maior ocorrência dessa doença.3,4
A incidência de tuberculose tem diminuído mundialmente nos últimos anos, com redução de 45% no número de casos entre os anos de 1990 e 2012. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil ocupa a 19ª posição entre os 22 países responsáveis por 80% dos casos de tuberculose. 5 No entanto, as taxas de incidência da doença no Brasil e no Rio Grande do Sul (RS) têm se mantido. Em 2013, foram notificados 78.628 casos no Brasil e, dentre esses, 6.378 (8,1%) na população prisional. No estado do RS, 6.917 casos foram notificados em 2014, sendo 9,4% desses entre a população prisional.6
Na população prisional, é possível verificar a ocorrência de transmissão recente da tuberculose dentro das unidades prisionais, caracterizada pela identificação de cepas geneticamente semelhantes. Com a busca ativa e o auxílio de métodos de biologia molecular, pode-se verificar a relação clonal entre as cepas, o que é útil para as investigações epidemiológicas, a identificação de cepas geneticamente relacionadas e sua dispersão na população prisional.7
O aumento da incidência de casos de tuberculose por cepas de Mycobacterium tuberculosis resistente aos antimicrobianos é diretamente relacionado a tratamento inadequado ou abandono do mesmo. A detecção tardia da doença, em pacientes com resistência, permite a manutenção na transmissão dessas cepas em uma dada população.8,9
A genotipagem do M. tuberculosis é uma ferramenta útil para estudos de epidemiologia, bem como para identificar a dispersão clonal, eventuais cepas com maior prevalência e surtos. Entre as técnicas de genotipagem existentes, o mycobacterial interspersed repetitive units-variable number of tandem repeats (MIRU-VNTR) tem sido utilizado por possuir poder discriminatório similar ao RFLP e por utilizar a técnica de PCR, que reduz o tempo e a complexidade em relação ao RFLP.10
O objetivo do presente estudo foi caracterizar o perfil epidemiológico dos casos de tuberculose em uma prisão do Sul do Brasil, através de epidemiologia clássica e molecular.
Realizou-se um estudo transversal, retrospectivo, no qual foram incluídos isolados de M. tuberculosis de pacientes diagnosticados com tuberculose no Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, no município de Santa Cruz do Sul (RS) entre janeiro de 2011 e agosto de 2014. Essa é uma penitenciária de médio porte que conta com uma equipe de saúde prisional. Durante o período estudado, foram realizadas 873 baciloscopias, representando 379 apenados; desses, 53 foram diagnosticados com tuberculose na unidade penitenciária, indicando uma prevalência de 80 casos por 100 mil habitantes. Obtiveram-se isolados de M. tuberculosis de 35 pacientes (66%) diferentes. Os isolados clínicos desses pacientes são provenientes de um banco de amostras do Instituto de Pesquisa Biológica, Laboratório Central do Rio Grande do Sul, os quais foram repicados em meio de cultura Ogawa-Kudoh e incubados a 37°C, por um período de 4-8 semanas. Os 35 isolados foram submetidos ao teste de sensibilidade para isoniazida, etambutol, rifampicina e pirazinamida pelo método das proporções11) e genotipados através da técnica de PCR pela análise 15-locus MIRU-VNTR.12
Dados demográficos e prisionais foram obtidos através do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, atualizado regularmente pelos agentes penitenciários, que informam dados como período de reclusão, histórico de encarceramento, visitas, número de pessoas por cela e trocas de cela. Os dados clínicos e laboratoriais dos pacientes foram coletados no Laboratório Central do Rio Grande do Sul e no ambulatório de tuberculose do município. Dentre as variáveis epidemiológicas analisadas, estão idade, sexo, escolaridade, infecção por HIV, galeria, tempo de prisão, histórico de encarceramento, período total de reclusão e número de troca de celas. A comparação pelo número do genótipo das cepas foi realizada através da construção de um dendrograma para a comparação do grau de similaridade.13 Os dados epidemiológicos, clínicos e prisionais foram avaliados com o programa IBM SPSS Statistics, versão 20.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). Os valores foram expressos em médias e desvios-padrão ou números absolutos e proporções. As médias foram comparadas pelo teste t de Student e, para comparações de variáveis categóricas, foi utilizado o teste do qui-quadrado de Pearson, para os quais valores de p ≤ 0,05 foram considerados significativos. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde, sob o parecer nº 984.264.
Dos 35 indivíduos incluídos no estudo, todos eram do sexo masculino (100%), com média de idade de 33,2 anos; 31 (88,6%) possuíam ensino fundamental completo (Tabela 1). Considerando o tempo de encarceramento, 28 (80,0%) estavam presos há mais de 3 anos, e todos (100%) já haviam sido presos mais de uma vez, com média de 8,9 ± 5,2 vezes. Dados a respeito da troca de cela foram obtidos de 34 indivíduos, sendo que desses, todos haviam trocado de cela mais de uma vez durante o período de encarceramento. Considerando-se a distribuição dos casos de tuberculose na unidade prisional, 10 (27,8%) haviam permanecido por mais tempo na galeria C do que nas outras galerias.
Tabela 1 Características clínicas, demográficas e prisionais dos pacientes de acordo com a classificação de cluster ou não cluster.a
Variável | Cluster | Não cluster | Total | p |
---|---|---|---|---|
Idade, anos | 34,10 ± 11,85 | 31,40 ± 7,75 | 33,20 ± 10,70 | 0,49 |
Escolaridade | ||||
Ensino fundamental | 20 (64,5) | 11 (35,5) | 21 (88,6) | |
Ensino médio | 3 (100,0) | 0 (0,0) | 3 (8,6) | 0,35 |
Analfabeto | 1 (100,0) | 0 (0,0) | 1 (2,9) | |
Galeria | ||||
A | 7 (77,8) | 2 (22,2) | 9 (25,7) | |
B | 5 (100,0) | 0 (0,0) | 5 (14,3) | 0,07 |
C | 8 (80,0) | 2 (20,0) | 10 (28,6) | |
D | 2 (33,3) | 4 (66,7) | 6 (17,1) | |
Tempo de prisão | ||||
Até 3 anos | 3 (42,9) | 4 (57,1) | 7 (20,0) | 0,17 |
Mais de 3 anos | 21 (75,0) | 7 (25,0) | 28 (80,0) | |
Nº vezes preso | ||||
Até 10 vezes | 18 (72,0) | 7 (28,0) | 25 (71,4) | 0,68 |
Mais de 10 vezes | 6 (60,0) | 4 (40,0) | 10 (28,6) | |
Pessoas na cela | ||||
Até 6 pessoas | 5 (100,0) | 0 (0,0) | 5 (16,7) | 0,28 |
Mais de 6 pessoas | 17 (68,0) | 8 (32,0) | 25 (83,3) | |
Visitas | ||||
Sim | 13 (72,2) | 5 (27,8) | 18 (51,4) | 0,72 |
Não | 11 (64,7) | 6 (35,3) | 17 (48,6) | |
Visitas íntimas | ||||
Sim | 10 (83,3) | 2 (16,7) | 12 (34,3) | 0,25 |
Não | 14 (60,9) | 9 (39,1) | 23 (65,7) |
aValores expressos em n (%) ou média ± dp.
Em relação às características clínicas, os resultados dos testes de HIV estavam disponíveis para 19 pacientes (52,8%) - 1 (5,3%) com resultado positivo. Havia 21 (58,3%) pacientes com microscopia positiva para BAAR e 35 (100%) com cultura positiva, obtendo-se um incremento de 41,7% com o resultado da cultura para o diagnóstico de tuberculose.
Dentre os 35 isolados avaliados na genotipagem, 24 (68,6%) apresentaram-se distribuídos em cinco clusters, classificados de A a E, contendo de 3 a 7 indivíduos (Figura 1) por cluster. Dados clínicos, demográficos e prisionais dos pacientes, conforme a classificação de cluster ou não cluster, são apresentados na Tabela 1.
Figura 1 Dendrograma mostrando os padrões de cluster relacionados ao perfil de sensibilidade aos medicamentos.
Entre os 35 isolados avaliados quanto ao perfil de sensibilidade aos antimicrobianos, 8 (22,9%) eram monorresistentes a isoniazida. Um total de 87,5% dos isolados resistentes estavam agrupados em um mesmo cluster (D), sendo os pacientes distribuídos entre as galerias A e B, localizadas na mesma ala do presídio. Os dois maiores clusters formados, B e D, representaram 52,0% das cepas e abrigaram todos os casos de resistência aos medicamentos.
Entre esses pacientes, 28 (80,0%) estavam presos há mais de 3 anos e todos (100%) já haviam sido presos mais de uma vez, com média de 8,9 ± 5,2 vezes, média superior a encontrada em um estudo no Sul do Brasil.14
Um dos maiores obstáculos no controle da tuberculose reside na detecção precoce e acurada dos casos da doença. O incremento de 41,7% de sensibilidade obtido pela cultura em relação à microscopia realça a necessidade da realização da cultura para aumentar a taxa de detecção de casos de tuberculose.14
Apesar de ser mandatória a realização do teste de HIV em pacientes com tuberculose, somente 52,8% tinham esse resultado, com identificação de um caso de coinfecção HIV/tuberculose (5,3%), dado inferior ao encontrado em estudos realizados no sul do Brasil.15,16)
Das cepas isoladas, 24 (68,6%) apresentaram-se distribuídas em cinco clusters. Em um estudo realizado em outra penitenciária do RS, 58,3% dos isolados apresentavam perfil genético idêntico.14). Embora esse alto índice de agrupamento sugira uma transmissão recente, que pode ter ocorrido dentro da unidade prisional, a inexistência de estudos de isolados obtidos na população local extramuros é um fator limitante para a presente análise.17,18
Em 8 isolados (22,9%), foi identificada monorresistência a isoniazida, sendo que 7 (87,5%) desses estavam em um mesmo cluster (p < 0,05), reforçando a hipótese de transmissão recente do bacilo.19,20 A alta taxa de resistência observada é maior que aquela encontrada em outros estudos.7,14 Isso é considerado como sendo um importante problema em instituições fechadas, onde a possibilidade de surtos pode atingir grandes dimensões.14
O cluster D, composto por 7 pacientes apresentando resistência a isoniazida, foi distribuído entre as galerias A e B (ambas localizadas na mesma ala do presídio, com compartilhamento do pátio); apesar de os indivíduos não estarem na mesma cela, deve-se considerar que o contato entre os presos pode ocorrer no pátio e que a troca de celas e de galerias é comum.
O presente estudo demonstrou um elevado percentual de isolados com resistência a isoniazida, assim como uma alta frequência de isolados compartilhando o mesmo genótipo. Esses dados reforçam a possibilidade de a transmissão do bacilo ter ocorrido predominantemente dentro da unidade prisional. O controle da tuberculose em unidades prisionais depende de um programa efetivo de controle da doença dentro do sistema prisional, incluindo a busca ativa de sintomáticos respiratórios, diagnóstico rápido e tratamento diretamente observado. Além disso, a educação permanente para os trabalhadores do sistema prisional e a discussão da temática "saúde prisional" em outros fóruns, como nos conselhos comunitários, podem trazer inúmeros benefícios para o controle da tuberculose prisional.