versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1845
Define-se o mieloma múltiplo (MM) como uma desordem maligna das células plasmáticas, na qual há a secreção de uma imunoglobulina monoclonal no sangue e/ou na urina(1). Sua incidência é variável, mas se estima que seja responsável por 1% do total das neoplasias e por 10% das neoplasias hematológicas(2,3).
O MM afeta principalmente a população idosa, com mediana de idade ao diagnóstico de 67 anos, porém 3% dos pacientes têm idade inferior a 40 anos(4).
As manifestações clínicas do MM são extremamente variáveis, oscilando de um paciente assintomático (smoldering mieloma) a uma emergência clínica. Assim, é proposta para o diagnóstico a associação de critérios clínicos e laboratoriais, sendo eles: anemia, insuficiência renal, hipercalcemia e/ou lesões ósseas; detecção de proteína monoclonal sérica e/ou urinária, infiltração por plasmócitos clonais na medula e/ou existência de plasmocitoma(4). Em 3% dos pacientes, a proteína monoclonal não é detectada, sendo esses casos denominados mieloma “não secretor”(5).
Além de sua classificação quanto à apresentação clínica, os pacientes são estadiados ao diagnóstico conforme critérios padronizados internacionalmente, classicamente, pelo estadiamento de Durie-Salmon (Durie-Salmon stage – DSS) e pelo International Staging System (ISS)(4).
O DSS classifica os pacientes em três estádios de acordo com os valores de hemoglobina, cálcio sérico, creatinina, níveis de imunoglobulina secretada e extensão das lesões líticas ósseas. Já o ISS também propõe três estádios, mas se baseia apenas em dois marcadores laboratoriais de atividade de doença: beta-2 microglobulina e albumina(4).
Atualmente, associa-se a avaliação citogenética à estratificação de risco. Essa avaliação pode ser realizada por cariótipo ou FISH. O cariótipo é utilizado com o objetivo de detectar a deleção do cromossomo 13 ou hipodiploidia, e o FISH para a detecção das translocações (4,14), (4,16) ou deleção do 17p13. A presença de qualquer um desses marcadores genéticos define o paciente como de alto risco(6).
Desde 1980, quando foi estabelecida a importância do transplante autólogo de medula óssea (TAMO) como consolidação terapêutica, devido ao ganho de sobrevida relacionado, os pacientes ao diagnóstico passaram também a ser avaliados quanto à sua elegibilidade ao transplante. Para os pacientes elegíveis, o uso de agentes alquilantes não é recomendado no tratamento inicial, pois podem prejudicar uma futura mobilização de células tronco(7).
São considerados como não elegíveis ao TAMO os pacientes com idade avançada (classicamente acima de 65 anos, mas essa idade limite varia de centro para centro), bilirrubina direta > 2,0 mg/dL (34,2 mmol/L) e creatinina sérica > 2,5 mg/dL (221 mmol / L), salvo em diálise crônica estável e baixa performance(8).
Ao longo dos 20 anos que separam o início da utilização do TAMO dos novos avanços terapêuticos, a técnica empregada em sua realização foi aperfeiçoada.
A partir do conhecimento da imunossupressão ocasionada pelo uso de agentes alquilantes e da necessidade da infusão de uma nova medula para restauração de sua função, o melfalan foi considerado a droga de escolha na terapia de indução do transplante autólogo para mieloma(9).
Nos anos 1990, já com o uso do melfalan difundido, a dose proposta para o transplante era de 140 mg/m2; entretanto, nessa década, doses maiores foram testadas (200 mg/m2), demonstrando não acumular toxidade e sendo capazes de aumentar as taxas de sobrevida global, a qual passou de 47 para 60%(10,11).
O ano de 2000 é considerado como um marco histórico do mieloma, pois, nesse período, surgiram as publicações com os resultados dos estudos com as chamadas “novos drogas” (talidomida, lenalidomida e bortezomibe), as quais associaram ganho em resposta a valores superiores a 70% descritos em pacientes sem tratamento prévio(12).
Apesar do uso difundido dessas drogas, o TAMO permanece como base da terapia de consolidação do MM. Entretanto, discute-se o momento adequado para que ele seja realizado, além da importância da resposta completa nesse contexto, uma vez que o tempo de manutenção dessa resposta, em conjunto com os dados clínicos e citogenéticos, é considerado um importante fator prognóstico(13).
Acredita-se que o TAMO, além de acarretar a redução de massa tumoral, aperfeiçoa a atividade antimieloma com o uso do melfalan em altas doses, pois o mecanismo de ação do agente alquilante possui atuação sobre as células progenitoras, complementando a terapêutica(14).
Relatar a sobrevida de pacientes com diagnóstico de MM, em até 5 anos após serem submetidos a TAMO.
Trata-se de um estudo de coorte observacional baseado na análise de registro de dados de 73 prontuários de pacientes consecutivos com diagnóstico de MM submetidos ao TAMO no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), em São Paulo (SP), entre os anos de 1992 a 2007.
Os dados foram obtidos por meio da análise retrospectiva de prontuários recuperados no Serviço de Arquivos Médicos e Estatísticos (SAME) do HIAE. A evolução do paciente foi documentada conforme a data do último follow- up, o que incluiu a data da última consulta ambulatorial ou a data do óbito. O período foi instituído com base no objetivo de avaliar a sobrevida em 5 anos dos pacientes transplantados ao longo do período de 15 anos.
Os óbitos foram recuperados por meio de busca ativa com as equipes médicas cadastradas no Serviço de Transplante e dos registros de internação hospitalar.
Visando minimizar a influência do uso das novas drogas sobre a sobrevida da amostra analisada neste trabalho, a sobrevida relacionada à terapêutica foi dividida em dois grupos, sendo o primeiro aqueles com diagnóstico realizado antes de Janeiro de 2000 e o segundo após essa data.
O protocolo de mobilização celular foi ciclofosfamida 4 g/m2 e fator estimulador de colônia (G-CSF). O condicionamento foi realizado em todos os 73 casos com melfalan, sendo em 65 na dose de 200 mg/m2. Todos os pacientes receberam pelo menos 2,0 x 108 células nucleadas/kg, quando utilizada medula óssea, e pelo menos 2,5 x 106 células CD34+/kg, se utilizadas célulastronco hematopoiéticas periféricas.
A análise estatística foi realizada por meio da codificação de dados e aplicação do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS). As variáveis independentes (idade, subtipo do mieloma, estadiamento, status do mieloma ao transplante e período do diagnóstico) foram avaliadas por meio de análise bivariada utilizando o teste do χ2. A sobrevida foi observada por meio do método de Kaplan-Meier. O nível de confiança adotado foi de 95%.
No período de 1992 a 2007, foi realizado TAMO em 73 pacientes consecutivos no HIAE com MM. Nessa população, a mediana de idade ao transplante foi de 55 anos, sendo 64% do sexo masculino.
O DSS pôde ser recuperado em 64 pacientes e o ISS, em 42; os dados estão descritos detalhadamente na tabela 1. Pertenciam ao estádio I do DSS 6,3% (n = 4); ao II, 59,4% (n = 38); e ao III, 34,4% (n = 22). Na classificação proposta pelo ISS, 61,9% pertenciam ao estádio I (n = 26); 21,4% ao II (n = 9); e 16,7% (n = 7) ao III.
Tabela 1 Sobrevida global dos pacientes submetidos a transplante autólogo no Hospital Israelita Albert Einstein nos anos 1993 a 2007
Características | n | % | Sobrevida no grupo (%) | Valor p | |
---|---|---|---|---|---|
Estadiamento Durie-Salmon | 0,31 | ||||
I | 4 | 6,3 | 75 | ||
II A | 32 | 50 | 84,4 | ||
II B | 6 | 9,4 | 66,7 | ||
III A | 12 | 18,8 | 66,7 | ||
III B | 10 | 15,6 | 50 | ||
Estadiamento ISS | 0,24 | ||||
I | 26 | 61,9 | 87,7 | ||
II | 9 | 21,4 | 71,4 | ||
III | 7 | 16,7 | 57,1 | ||
Tipo de imunoglobulina | |||||
IgG | 38 | 59,4 | 77,8 | 0,54 | |
IgG kappa | 8 | 12,5 | 71,4 | ||
IgG lambda | 1 | 1,6 | 100 | ||
IgA | 7 | 10,9 | 71,4 | ||
IgA kappa | 2 | 3,1 | 100 | ||
IgA lambda | 2 | 3,1 | 0 | ||
Cadeia leve | 3 | 4,7 | 66,7 | ||
Não secretor | 3 | 4,7 | 100 |
ISS: International Staging System.
Com relação ao subtipo de paraproteína excretada, dos 64 pacientes avaliáveis, 73,4% (n = 47) eram IgG, 17,2% (n = 11) eram IgA, 4,7% (n = 3) cadeia leve e 4,7% (n = 3) não secretores (Tabela 1).
Do total de pacientes, 49 deles realizaram o transplante após o ano de 2000 e 15 realizaram 2 procedimentos. Entre os 60 pacientes com resposta prévia ao TAMO conhecida, 47,3% (n = 27) era completa e 53,7% (n = 29), parcial. Foram transplantados com doença em progressão 6,7% (n = 4).
Ao final de 60 meses de seguimento, a taxa de sobrevida encontrada foi de 75%, com variação de 2,4 a 60 meses e mediana não atingida (Figura 1). Até o D+30 (30 dias após o TAMO), foram verificados dois óbitos (2,7%), ambos relacionados a complicações infecciosas. Entre o D+30 e o D+100, houve um óbito (1,4%) decorrente de acidente vascular encefálico hemorrágico.
Figura 1 Sobrevida global dos pacientes submetidos a transplante autólogo no Hospital Israelita Albert Einstein nos anos 1993 a 2007
Correlacionando a sobrevida ao estadiamento, não foi observada a significância estatística, seja pelo DSS (p = 0,31) ou pelo ISS (p = 0,24) (Tabela 1). Do total de 16 óbitos, avaliados pelo DSS, 1 paciente pertencia ao estádio I, 7 ao II e 8 ao III (Figura 2); dos 8 óbitos avaliados pelo ISS, 3 pertenciam ao estádio I, 2 ao II e 3 ao III (Figura 3).
Figura 2 Sobrevida relacionada ao estadiamento de Durie-Salmon de pacientes submetidos a transplante autólogo no Hospital Israelita Albert Einstein
Figura 3 Sobrevida relacionada ao estadiamento pelo ISS de pacientes submetidos a transplante autólogo no Hospital Israelita Albert Einstein.
Quanto ao subtipo de imunoglobulina secretada, observaram-se 15 óbitos: 10 eram IgG, 4 IgA e 1 cadeia leve. Entre os não secretores, não houve óbitos ao longo dos 60 meses. Esses resultados não demonstraram significância estatística (p = 0,54) (Figura 4).
Figura 4 Sobrevida relacionada ao subtipo de imunoglobulina secretada de pacientes submetidos a transplante autólogo no Hospital Israelita Albert Einstein.
O período de diagnóstico do paciente, ou seja, antes ou após a aplicação das novas drogas, também não demonstrou significância estatística (p = 0,57) (Figura 5). No grupo diagnosticado antes do ano 2000, houve uma taxa de óbito de 30% (n = 6) do total de 20 pacientes com status conhecido em 60 meses. No grupo diagnosticado após o ano 2000, a taxa de óbito foi de 22% (n = 10) do total de 44 casos conhecidos.
Figura 5 Sobrevida relacionada ao ano de diagnóstico de pacientes submetidos a transplante autólogo no Hospital Israelita Albert Einstein.
Ter realizado um ou mais transplantes autólogos não interferiu na sobrevida relacionada (p = 0,78), com taxa de óbito de 29% (4/14) para os pacientes que realizaram dois TAMO e 24% (12/50) para os que realizaram apenas um.
Avaliando a sobrevida de 58 casos, cuja resposta previamente ao transplante era conhecida, observouse que, do total de 26 casos com resposta completa, 1 evoluiu a óbito; dos 28 em resposta parcial, 11 evoluíram a óbito; e dos 4 com doença em progressão, 2 evoluíram a óbito. A progressão de doença foi causa de óbito em 15 pacientes. Houve significância estatística à resposta à terapêutica prévia ao transplante e à evolução do paciente (p = 0,01) (Figura 6).
A mediana de idade da população submetida a TAMO neste estudo foi inferior à população brasileira diagnosticada para MM, observada em trabalho multicêntrico prévio, no qual foi relatada idade mediana de 60,5 anos(2). Esse dado é explicado pela descrição de exclusivamente uma amostra elegível a TAMO e que, portanto, é esperada que seja composta por pacientes mais jovens, como é demonstrado pela literatura nesse grupo: 45 a 52 anos(14).
Com relação ao estadiamento, foi também observado que a população deste estudo diferiu da população brasileira previamente relatada, na qual é descrita uma predominância de estadiamentos avançados(2). Entretanto, mais uma vez esse dado não difere da literatura médica para este grupo(14).
Apesar da semelhança epidemiológica a Cavo et al, a taxa de sobrevida após TAMO foi de 46%(9).
A diferença na sobrevida encontrada neste trabalho pode ser explicada pela taxa de resposta prévia ao transplante. Após os 60 meses de acompanhamento, dos 58 pacientes que puderam ser avaliados, 44% foram transplantados com resposta completa e 48% com resposta parcial, dado que se demonstrou estatisticamente significante (p = 0,01).
Essa relação entre resposta prévia e evolução clínica é enfatizada positivamente(15). Segundo estudo realizado por Barlogie et al. com amostra de 668 pacientes, a taxa de sobrevida em 5 anos nos casos de MM submetidos a TAMO em resposta completa foi de 42 a 56%(16).
O papel da resposta na evolução do MM se destacou com os ganhos obtidos após as novas drogas. Previamente, os esquemas utilizados, tal como o VAD (vincristina, doxorrubicina e dexametasona), indicados para pacientes elegíveis, apenas demonstravam atividade antimieloma em metade dos casos(15).
Com o objetivo de minimizar a influência das novas drogas na análise da evolução dos pacientes estudados, dividiu-se a amostra deste trabalho, conforme a data de diagnóstico (antes e após o ano de 2000); entretanto, essa correlação não foi estatisticamente significante. Descritivamente, contudo, a taxa de sobrevida foi ligeiramente superior, ou seja, 70% para o primeiro grupo e 78% para o segundo.
A divisão proposta nesta análise foi realizada previamente por Kumar et al.(12). Esse autor observou, em pacientes com mais de 60 anos, sobrevida de 37% no primeiro período e de 52% no segundo. Entretanto, esse estudo teve como objetivo exclusivo relatar a sobrevida e englobou o período de 1971 a 2006. Assim, comparações entre essas duas amostragens não são possíveis(12).
A experiência na realização de TAMO para MM em uma instituição brasileira demonstrou evolução concordante com a literatura. Além disso, destacou a importância da resposta prévia ao transplante na sobrevida desses pacientes, com influência positiva para os casos com resposta completa antes de serem submetidos ao TAMO.