versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3164
O transplante hepático é o tratamento de escolha para pacientes com cirrose e descompensação da doença, para aqueles com insuficiência hepática fulminante e com carcinoma hepatocelular dentro dos critérios de Milão.(1)
O objetivo deste artigo foi revisar brevemente a história e apresentar os resultados recentes do transplante de fígado no Brasil e no mundo, bem como apresentar tópicos controversos e perspectivas.
A primeira descrição científica, da utilização do transplante de fígado para o tratamento de pacientes, foi feita por Welch, em 1955. Naquela época, foi proposto um transplante ectópico do fígado na cavidade abdominal.(2) Francis Moore, em 1958, descreveu a técnica do transplante ortotópico de fígado em cães.(3)
No dia 1o de março de 1963, Starzl et al. realizaram o primeiro transplante de fígado do mundo. Um menino de 3 anos com atresia biliar foi submetido ao transplante de fígado, mas morreu no intraoperatório por distúrbio de coagulação e hemorragia incontrolável.(4) Inicialmente, todos os pacientes transplantados de fígado recebiam a imunossupressão proposta para o transplante renal, ou seja, azatioprina e corticoides. Os resultados foram desapontadores. Nos primeiros cinco transplantes de fígado, nenhum paciente sobreviveu mais que 23 dias.(4) A lesão de isquemia-reperfusão e a rejeição inevitavelmente evoluíam para insuficiência hepática ou sepse.
Desencorajado e reconhecendo as grandes dificuldades para a realização do transplante de fígado, Starzl desenvolveu lentamente os procedimentos e os princípios que norteiam o transplante de fígado até hoje. Em 1967, estimulado por Calne a utilizar soro antilinfocitário, Starzl iniciou uma série de transplantes de fígado com sucesso na Universidade do Colorado. O primeiro caso foi de um paciente com carcinoma hepatocelular avançado que sobreviveu mais que 1 ano com função hepática preservada e morreu pela recidiva da doença.(5)
A despeito do ocasional sucesso e da melhora da sobrevida inicial, 70% da mortalidade era a rotina na maioria dos serviços de transplante de fígado. Com um esquema de imunossupressão não seletivo, associado a complexidade cirúrgica do transplante de fígado, concluiu-se que o pacientes ficavam extremamente vulneráveis a infecções.
As complicações infecciosas e a rejeição crônica eram as principais causas de morte, respectivamente, precoce e tardia nos transplantados de fígado. Eram necessários, então, melhores imunossupressores e agentes anti-infecciosos. Até 1977, aproximadamente 200 transplantes de fígado foram realizados no mundo. Nesse período, problemas técnicos de reconstrução biliar, tratamento de coagulopatia intraoperatória e técnica cirúrgica do doador foram estabelecidos.(6) Praticamente as Universidades de Colorado e de Cambridge foram as únicas a manterem estudos clínicos experimentais em transplante de fígado nos 15 anos seguintes.(7)
Calne, em 1979, utilizou pela primeira vez a ciclosporina em dois pacientes submetidos ao transplante de fígado, iniciando um novo capítulo na história do transplante de fígado.(8) Em 1983, o National Institutes of Health, após avaliar o resultado de 531 casos, aprovou o transplante de fígado como uma terapia válida para o tratamento de doenças hepáticas terminais.
Starzl et al. relataram, em 1989, que a sobrevida de 1.179 pacientes submetidos ao transplante hepático em 1 e 5 anos foi, respectivamente, de 73 e 64%. Esses resultados correspondiam ao dobro da sobrevida dos pacientes que utilizavam azatioprina e corticoide.(9)
Finalmente, em 1990, Starzl et al. relataram o primeiro uso do novo imunossupressor tacrolimo em pacientes transplantados de fígado que apresentavam rejeição mesmo com tratamento imunossupressor convencional. Com o sucesso na conversão de ciclosporina por tacrolimo nesses pacientes, e demonstrada sua segurança, foram iniciados novos estudos clínicos utilizando tacrolimo como principal imunossupressor no transplante de fígado.(10-12)
Atualmente, decorridos mais de 40 anos do primeiro transplante de fígado, realizam-se mais de 10 mil transplantes de fígado ao ano no mundo. A sobrevida de pacientes transplantados de fígado no primeiro ano é de 80 a 90%. Houve melhora progressiva nos resultados, e os problemas cirúrgicos, de tratamento da rejeição e do controle de sepse intratável foram resolvidos.(10) Entretanto, o número de pacientes em lista para o transplante de fígado aumenta progressivamente em relação ao número de doadores falecidos. Melhor acesso de pacientes a centros transplantadores, progressos na organização e melhora do sistema de transplantes, e um refino das indicações e do melhor uso de doadores são necessários.
Em 1968, Machado e sua equipe realizaram o primeiro transplante de fígado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). O paciente sobreviveu 7 dias, mas desenvolveu infecção e rejeição aguda do enxerto.(13) Em 1969 e 1971, outros dois pacientes foram submetidos ao transplante de fígado e sobreviveram, respectivamente, 18 e 30 dias.
Em 1985, foram reiniciados, no HC-FMUSP, os transplantes de fígado no Brasil com Silvano Raia. Em 1988, Raia et al. realizaram o primeiro transplante intervivos do mundo.(14)
As últimas duas décadas marcaram um aumento expressivo do número de equipes transplantadoras no país, com maior concentração nas Regiões Sul e Sudeste. O Sistema Único de Saúde (SUS) é responsável por mais de 95% dos transplantes de fígado realizados no país, propiciando acesso universal ao tratamento, e até mesmo aos imunossupressores. O Brasil tornou-se o maior sistema público de transplantes do mundo e o terceiro maior em volume de transplantes de fígado realizados. A conscientização da população sobre transplante de órgãos e tecidos, bem como a identificação de potenciais doadores pelos profissionais de saúde, foi aprimorada. O número de doadores no país atingiu a marca inédita de 13,2 por milhão de habitantes. Nos últimos 2 anos, o Governo Federal vem, com sucesso, aumentando e descentralizando o número de equipes de transplante no país, o que deve continuar a incrementar a atividade transplantadora no Brasil e tornar o país destaque mundial na área de transplante hepático.
O transplante hepático foi iniciado no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) em 1990. O Programa de Transplante de Fígado já realizou mais de 1.400 transplantes, sendo que 95% foram realizados em pacientes do SUS. Os pacientes do SUS têm acesso a toda infraestrutura, recursos e ao corpo clínico da instituição sem ônus.
Em 2013, foram realizados 102 transplantes de fígado com doador falecido adulto. As principais indicações para o transplante foram carcinoma hepatocelular (38%), cirrose hepática secundária ao vírus C (33,3%) e cirrose alcoólica (19,6%). Outras indicações foram cirrose criptogênica (9,8%), esteato-hepatite (6,8%) e insuficiência hepática aguda (5,8%). Destes, 36% dos transplantes apresentaram MELD biológico superior a 30. Os índices de não funcionamento primário do enxerto, trombose da artéria hepática e mortalidade precoce foram, respectivamente, 7,8%, 1,9% e 9,8%. A sobrevida do paciente e do enxerto no primeiro, terceiro e quinto ano são apresentadas, respectivamente, nas tabelas 1 e 2. As figuras 1 e 2 apresentam as curvas de sobrevida do paciente e do enxerto comparadas com os serviços de transplante de fígado do Estado de São Paulo.
Tabela 1 Sobrevida do paciente no primeiro, terceiro e quinto anos de pós-transplante de fígado de 1o de janeiro de 2006 a 31 de dezembro de 2013
Período pós transplante | Estado de São Paulo (%) | HIAE (%) | UNOS (%) |
---|---|---|---|
1 ano | 69,4 | 82,4 | 89,7 |
3 anos | 65,1 | 77,3 | 81 |
5 anos | 62,6 | 74,3 | 74,3 |
Fontes: Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e UNOS. HIAE: Hospital Israelita Albert Einstein; UNOS: United National Organ Sharing.
Tabela 2 Sobrevida do enxerto no primeiro, terceiro e quinto anos de pós-transplante de fígado de 1o de janeiro de 2006 a 31 de dezembro de 2013
Período pós transplante | Estado de São Paulo (%) | HIAE (%) | UNOS (%) |
---|---|---|---|
1 ano | 65,3 | 74,8 | 85,2 |
3 anos | 60,3 | 68,2 | 75,1 |
5 anos | 57,4 | 63,4 | 68,5 |
Fontes: Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e UNOS. HIAE: Hospital Israelita Albert Einstein; UNOS: United National Organ Sharing.
Figura 1 Curva de sobrevida atuarial. Kaplan-Meier de pacientes transplantados de fígado no Hospital Israelita Albert Einstein (n=748) e em outros serviços de transplante de fígado do Estado de São Paulo (n=3.738), no período de 1o de janeiro de 2006 a 31 de dezembro de 2013
Um dos maiores desafios da área de transplante hepático é o número insuficiente de doadores para uma demanda crescente de candidatos ao transplante.
Dessa forma, destacamos que tópicos relacionados à seleção de doadores/receptores, alocação e preservação de órgãos devem contribuir para a melhora dos resultados do transplante de fígado.
O uso de xenotransplantes, principalmente com a utilização de porcos geneticamente modificados, bem como o uso de bioengenharia, com a criação de fígado sintéticos em laboratório, pode mudar drasticamente o panorama da falta de enxertos.(15) Ate lá, devemos focar em estratégias que proporcionem o uso máximo de enxertos hepáticos no nosso país. Quem sabe possamos facilitar o uso de enxertos outrora descartados por meio de estratégias farmacológicas ou mecânicas. Dentre dessas estratégias, devemos destacar o desenvolvimento recente de máquinas de perfusão que parecem modular de forma muito interessante a lesão de isquemia-reperfusão.(16,17)
A possibilidade do emprego de doadores vivos deve ser considerada. Com indicações e técnicas mais modernas, essa alternativa pode contribuir com o aumento do número de pacientes beneficiados pelo transplante.
No Estado de São Paulo, observa-se que a escassez de órgãos faz com que os centros transplantadores tenham que tratar de pacientes extremamente enfermos. A discussão de futilidade, limites da indicação nesse cenário e ajustes ao sistema MELD devem persistir em nossos eventos científicos.(18)
Por último, utilizamos os critérios de Milão para que pacientes com carcinoma hepatocelular possam ter acesso ao transplante. No entanto, existem evidências de que alguns pacientes, que excedem os critérios de Milão, também possam ser beneficiados com transplante.(19,20) Futuramente, novos marcadores, que ajudem a selecionar melhor esses pacientes, principalmente com uso de sequenciamento genético, devem ser desenvolvidos. Finalmente, a discussão de critérios de alocação para essa população também continuará presente em nossos encontros científicos.
Apesar da melhora progressiva nos resultados consequentes do aprimoramento da técnica cirúrgica, da imunossupressão, e do tratamento da rejeição e de infecções, permanece o desafio do tratamento de pacientes que necessitam do transplante de fígado como única alternativa terapêutica. A prática contínua de excelência no tratamento e a busca incessante de melhores resultados devem nortear o futuro do transplante de fígado.