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Transplante de microbiota fecal por enteroscopia alta para o tratamento da diarreia causada por Clostridium difficile

Transplante de microbiota fecal por enteroscopia alta para o tratamento da diarreia causada por Clostridium difficile

Autores:

Arnaldo José Ganc,
Ricardo Leite Ganc,
Sílvia Mansur Reimão,
Alberto Frisoli Junior,
Jacyr Pasternak

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015MD3106

O Clostridium difficile, principal agente etiológico da colite pseudomembranosa, é um bacilo Gram-positivo, anaeróbio e esporulado presente na flora intestinal de até 20% dos adultos hospitalizados. Destes, somente 1 a 5% desenvolvem diarreia, e o restante permanece assintomático. O risco de contrair a infecção parece ser diretamente proporcional ao tempo de internação e está relacionado ao uso de antibióticos. No entanto, incidência, intensidade e taxa de recorrência dessa afecção vêm aumentando. Além disso, a introdução da técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR) para a pesquisa de Clostridium difficile aumentou significativamente a eficácia da detecção da bactéria, o que talvez explique o incrível aumento da incidência dessa infecção.(1)

O quadro clínico decorrente dessa infecção varia desde quadros assintomáticos, diarreia que melhora com a simples a descontinuação do antibiótico e medidas de suporte clínico, até quadros de diarreia incoercível, com consequente sepse e megacólon tóxico. A taxa mortalidade pode chegar a 58% nesses quadros.(2)

Atualmente, o tratamento recomendado é a antibioticoterapia com metronidazol e/ou vancomicina.

A resposta à antibioticoterapia pode ser precária, e a taxa de recorrência chega a 25%. Após a primeira recorrência, o risco de apresentar uma segunda recorrência aumenta para 40% e, para múltiplas recorrências, o risco ultrapassa 50%.(3) Recentemente, a fidaxomicina surgiu como uma alternativa para os casos de Clostridium difficile resistentes. Apesar de mais eficiente que os antibióticos tradicionais, essa medicação ainda não está disponível no nosso meio, e sua eficácia não está definitivamente avaliada.

A mais recente alternativa para o tratamento da diarreia por Clostridium difficile recorrente é o transplante de microbiota fecal.

O conceito não é novo e as primeiras publicações a respeito datam de 1958.(4) Porém, por vários motivos, desde culturais até a descrença do meio científico, passaram-se mais de cinco décadas até que essa linha de raciocínio fosse retomada. No início dessa década, foram publicados vários artigos segundo os quais utilizou-se o transplante de microbiota fecal para pacientes com recorrência da infecção por Clostridium difficile. Mesmo assim, o meio médico manteve-se incrédulo. Foi somente no ano passado, com uma publicação no The New England Journal of Medicine (NEJM), que a comunidade médica percebeu o quão promissora pode ser essa técnica. O mais impressionante do trabalho publicado no NEJM foi a discrepância dos resultados apresentados entre o grupo tratado com antibióticos e o tratado com transplante de microbiota fecal. Este último foi tão superior que o estudo foi interrompido pelo Comitê de Ética Médica da instituição.(3)

Nas publicações anteriores, a infusão da microbiota fecal foi realizada por meio de enemas, colonoscopias ou infusões lentas por sonda nasoenteral, com o paciente acordado.(14)

O indivíduo doador é geralmente um membro da família do paciente e que se enquadra em alguns critérios, como não ter feito uso de antibiótico nos últimos 6 meses, ser imunocomprometido, e não ter antecedente de uso de drogas ilícitas, tumor ou doença inflamatória intestinal. São feitos alguns exames para triagem: sorologia para hepatites A, B e C, vírus da imunodeficiência humana (HIV), protoparasitológico de fezes, pesquisa de Clostridium difficile nas fezes, além de cultura fecal. Uma vez selecionado o doador, o material fecal é colhido e processado em laboratório, de modo que fique diluído com soro fisiológico a 0,9%, formando a solução a ser infundida no indivíduo receptor.

Recentemente, tivemos a oportunidade de tratar, de forma inédita no nosso meio, um caso de um paciente de 82 anos com insuficiência renal crônica e diarreia por Clostridium difficile há mais de 4 meses. O paciente foi tratado com metronidazol e vancomicina por várias vezes, sempre com recidiva do quadro. A ele foi oferecida a opção do tratamento com transplante de microbiota fecal. A única condição imposta por ele foi de que não presenciasse a infusão por via nasoentérica. Por esse motivo, optamos pela realização do transplante de microbiota fecal por via endoscópica, sob sedação, com a microbiota sendo infundida por meio do canal de trabalho no jejuno proximal. O procedimento transcorreu sem intercorrências e, para a nossa surpresa, a diarreia cessou em 24 horas.

O paciente permanece em acompanhamento há cerca de 12 meses, sem recidiva clínica do quadro.

Desde então, já realizamos 12 casos, sendo 10 deles há mais de 6 meses. Destes dez casos, houve recidiva bacteriana em um deles, após novo ciclo de antibiótico para tratamento de infecção do trato urinário, sem a presença de diarreia. A particularidade da nossa casuística, além de ser um fato inédito na América do Sul, deveu-se à maneira de realizar a infusão da microbiota fecal.

Até o presente momento, não há relatos na literatura de transplante de microbiota fecal por meio de enteroscopia, por via oral. Acreditamos que essa seja uma boa alternativa para tal, uma vez que o paciente não precisa se submeter a uma colonoscopia para a infusão do material, nem ficar exposto ao desconforto físico e moral da infusão por via nasoenteral do material fecal.

REFERÊNCIAS

1. Kassam Z, Lee CH, Yuan Y, Hunt RH. Fecal microbiota transplantation for Clostridium difficile infection: systematic review and meta-analysis. Am J Gastroenterol. 2013;108(4):500-8. Review.
2. Rubin TA, Gessert CE, Aas J, Bakken JS. Fecal microbiome transplantation for recurrent Clostridium difficile infection: report on a case series. Anaerobe. 2013;19:22-6.
3. Kelly C P. Fecal microbiota transplantation–an old therapy comes of age. N Eng J Med. 2013;368(5):474-5.
4. Eiseman B, Silen W, Bascom GS, Kauvar AJ. Fecal enema as an adjunct in the treatment of pseudomembranous enterocolitis. Surgery. 1958;44(5):854-9.