versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3163
O transplante vascularizado de pâncreas é o único tratamento que estabelece normoglicemia e normaliza os níveis séricos de hemoglobina glicosilada em pacientes diabéticos tipo 1.(1,2) O transplante de ilhotas pancreáticas é uma alternativa de tratamento para o diabetes tipo 1.(3) A evolução do transplante de pâncreas, no tratamento do diabetes tipo 1, foi determinada pelo avanço da tecnologia dos transplantes quanto à técnica cirúrgica, à preservação de órgãos e à imunossupressão.(4,5)
O primeiro transplante de pâncreas vascularizado foi realizado simultaneamente com um enxerto renal para tratar um paciente diabético tipo 1 com uremia em dezembro de 1966, por William Kelly e Richard Lillehei, no Hospital da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos.(6) No Brasil, Edison Teixeira et al. realizaram o primeiro transplante de pâncreas segmentar isolado, em 1968, no Rio de Janeiro.(7)
Em 1974, foi realizado o primeiro transplante clínico de ilhotas de Langerhans, na Universidade de Minnesota.(8) Em 1979, para superar os problemas imunológicos, David Sutherland realizou o primeiro transplante de pâncreas segmentar intervivos.(9)
Até a década de 1980, os transplantes de pâncreas ficaram restritos a poucos centros dos Estados Unidos e da Europa. A introdução dos imunossupressores tacrolimo e micofenolato mofetila, a partir de 1994, bem como a evolução da técnica cirúrgica e o uso rotineiro da solução de preservação da Universidade de Wisconsin, culminou com uma melhora significativa dos resultados e com a consequente crescente realização de transplantes em escala em vários países.(10)
No Brasil, o transplante de pâncreas teve impulso no final da década de 1990, com a autorização da realização do procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Os objetivos principais do transplante de pâncreas são a melhora na qualidade de vida do diabético tipo 1, promovendo independência de insulina exógena, e a prevenção das complicações secundárias desse tipo de diabetes (retinopatia, neuropatia, nefropatia e doença vascular, além de proteger o rim transplantado do desenvolvimento da nefropatia diabética).(11)
As modalidades de receptores de transplante de pâncreas são: transplante simultâneo de pâncreas e rim (TSPR); transplante de pâncreas após rim (TPAR); e transplante de pâncreas isolado (TPI).
A nomenclatura “pâncreas solitário” compreende as categorias TPAR e TPI. A categoria TSPR constitui a mais frequentemente realizada, seguida do TPAR e, mais raramente, do TPI.
As indicações para transplante de pâncreas por modalidade são: TSPR que é destinado a diabéticos tipo 1 em uremia (insuficiência renal crônica em fase pré-dialítica ou em diálise com depuração de creatinina <20mL/min); o TPAR geralmente realizado em diabéticos tipo 1 com transplante renal prévio funcionante; e o TPI que é destinado a diabéticos tipo 1, não urêmicos. Conforme recomendação da American Diabetes Association , O TPI está indicado nos casos de história frequente de complicações metabólicas agudas e graves (hipoglicemia, hiperglicemia e cetoacidose), que necessitam de cuidados médicos; problemas emocionais com insulinoterapia exógena, que são tão graves a ponto de serem incapacitantes; e de falha consistente em prevenir complicações agudas com tratamento baseado em insulina. Protocolos para assegurar uma avaliação multidisciplinar objetiva das condições clínicas e a elegibilidade para o transplante devem ser estabelecidos e acompanhados.(12)
Os critérios para a seleção dos receptores são: diabético tipo 1; faixa etária entre 18 e 55 anos; ausência de complicações generalizadas secundárias ao diabetes; insuficiência orgânica não renal; ausência de doença maligna ou critério de cura; ausência de contraindicação à imunossupressão; estabilidade emocional e social (para entender os riscos e benefícios da cirurgia e da necessidade da imunossupressão e de seus efeitos colaterais).
Os critérios de exclusão dos receptores são: comprometimento da função cardíaca (infarto agudo do miocárdio recente, angina com obstrução coronariana intratável e ecocardiograma com fração de ejeção <50%); instabilidade emocional e social (distúrbio psiquiátrico, dependência de álcool ou drogas ilícitas e falta de motivação); presença de infecção ativa ou sepse (infecção de parede/peritonite); presença de tumor maligno; e obesidade com índice de massa corporal >30kg/m2.
Constituem critérios de exclusão relativos aos receptores com achados de doença irreversível ou grave (coração, pulmão e fígado); sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência adquirida; prova cruzada positiva (células T); e diabetes tipo 2.
A seleção de doadores falecidos deve ser a mais próxima possível do doador ideal para se obterem os melhores resultados. Assim, a manutenção adequada do potencial doador em morte encefálica é fundamental para evitar principalmente a instabilidade hemodinâmica. Além da compatibilidade sanguínea no sistema ABO e da prova cruzada negativa, a faixa etária para a doação de pâncreas tem sido considerada entre 5 e 50 anos de idade. O peso do doador deve ser entre 30 a 50kg se houver retirada de pâncreas sem o fígado e >50kg se houver retirada do pâncreas e do fígado.(13)
A avaliação macroscópica do pâncreas considera a presença da existência de sinais de pancreatite aguda, edema glandular, hematoma, infiltração gordurosa e/ou consistência endurecida, pois tais fatores constituem risco aumentado de complicações pós-transplante e, nessas condições, os enxertos devem ser descartados.
Outras condições que podem determinar a exclusão de doadores são o diabetes tipo 1; doença pancreática; cirurgia prévia duodenal, pancreática ou esplenectomia; tumor maligno; sorologia positiva para doenças infecciosas (síndrome da imunodeficiência adquirida, hepatites B e C), doença hepática crônica; obesidade mórbida com índice de massa corpórea >40kg/m2 e antecedente de etilismo crônico.
A retirada do enxerto pancreático geralmente é uma parte da retirada de múltiplos órgãos intra-abdominais. A retirada de enxerto hepático e pancreático combinados requer uma técnica própria.(14) Após a retirada do enxerto hepático, o enxerto pancreático é retirado en bloc , juntamente do duodeno e do baço, preservando-se os cotos vasculares das artérias mesentérica superior e esplênica, e da veia porta. Os enxertos pancreático e vasculares devem ser imersos em 1L da solução de Belze (Figura 1).
Na mesa de cirurgia, o enxerto pancreatoduodenal é preparado basicamente pela remoção do baço, encurtamento do segmento duodenal, sutura e invaginação das bordas duodenais, mobilização da veia porta e realização de enxerto vascular em Y (artérias ilíacas do doador com os pedículos vasculares das artérias mesentérica superior e esplênica do enxerto pancreático) (Figura 2).
A via de acesso preferencial é a laparotomia mediana. O implante do pâncreas é preferencialmente realizado na fossa ilíaca direita do receptor, uma vez que os vasos ilíacos direitos são mais acessíveis. O implante do pâncreas pode ser realizado pela drenagem sanguínea venosa sistêmica ou portal.(15) A drenagem da secreção exócrina pancreática do enxerto pode ser entérica (anastomose laterolateral duodeno-jejunal) ou vesical (anastomose laterolateral duodeno-vesical) (Figura 3).
Atualmente, os esquemas de imunossupressão mais frequentemente utilizados incluem o uso de indução e manutenção. Os medicamentos utilizados para indução são soros antilinfocitários, como anticorpos anticélulas T policlonais (ATG), ou com anticorpos monoclonais antirreceptores de interleucina (IL) 2 (basiliximabe e daclizumabe). A manutenção baseia-se na utilização de inibidor de calcineurina (tacrolimo) associado a um antimetabólito (micofenolato mofetil) e corticoide (prednisona).
Segundo o Registro Internacional de Transplante de Pâncreas, foram realizados, até 31 de dezembro de 2010, mais de 35 mil transplantes de pâncreas, sendo 24 mil nos Estados Unidos e 12 mil nos demais países. A modalidade de transplante de pâncreas mais frequentemente realizada foi o TSPR (75%), seguida do TPAR (12%) e, por fim, do TPI (7%). O número de transplantes de pâncreas cresceu até 2004 e, desde então, tem diminuído gradativamente.(16) Nos Estados Unidos, a sobrevida de pacientes no primeiro e no quinto ano pós-transplante de pâncreas foi, respectivamente, maior que 95 e 88%. A sobrevida do enxerto pancreático no primeiro e no quinto ano pós-transplante foram, respectivamente, 84 e 60%. A melhor sobrevida do enxerto pancreático (86%) e renal (93%) no primeiro ano pós-transplante está na categoria de TSPR. A perda imunológica no primeiro ano pós-transplante para TSPR, TPAR e TPI foi, respectivamente, de 1,8, 3,7 e 6%.(17,18)
De maneira geral, a principal complicação relacionada à perda de enxerto pancreático é falha técnica, seguida de rejeição aguda ou crônica. Entende-se por falha técnica a perda do enxerto nos primeiros 3 meses de transplante devido a trombose vascular (50%), pancreatite (20%), infecção (18%), fístulas (6,5%) e hemorragia (2,4%). Entretanto, receptores de TPAR e TPI apresentam a rejeição como a principal complicação relacionada à perda do enxerto pancreático. Outras complicações são a infecção e a deiscência de parede abdominal.(19)
O transplante de pâncreas apresenta de 10 a 20% de complicações cirúrgicas, necessitando relaparotomia. Os fatores de risco para complicações cirúrgicas incluem tempo prolongado em diálise peritoneal, doador ou receptor com índice de massa corporal >28kg/m2, doador ou receptor com idade acima de 45 anos, doença cerebrovascular com causa de óbito do doador, tempo de preservação prolongada (>20 horas), retransplante e cirurgia abdominal prévia.(1,10,20–24)
O transplante de pâncreas com drenagem vesical implica em frequentes e graves complicações urológicas e metabólicas. Cerca de 10 a 25% dos doentes submetidos ao transplante de pâncreas com drenagem duodeno-vesical necessitam ser submetidos à conversão intestinal da drenagem exócrina do enxerto.(25) As principais complicações metabólicas são a acidose metabólica, e a desidratação por perda de água e bicarbonato de sódio na urina. Os pacientes devem receber reposição hídrica e de bicarbonato adequadas no seguimento do transplante de pâncreas com derivação vesical.
O transplante de pâncreas com drenagem entérica tem a fístula entérica como uma das complicações mais temidas, pois coloca em risco a sobrevivência do paciente. A incidência de fístula entérica varia de 5 a 8%, e a maioria ocorre durante o pós-operatório imediato. A fístula precoce relaciona-se com problemas técnicos, como o comprometimento da irrigação sanguínea e a isquemia. Os fatores de risco potenciais para a ocorrência de fístula entérica precoce são tempo prolongado de isquemia fria, trauma duodenal, pancreatite pós-reperfusão e infecção intra-abdominal. Geralmente, seu tratamento acarreta a retirada do enxerto pancreático.(26–29)
No início da experiência com transplante de pâncreas, observou-se que cerca de 80% dos doentes submetidos ao TSPR apresentavam quadro de rejeição aguda no primeiro ano após o transplante. Desses, 27% apresentavam rejeição isolada do enxerto pancreático. A perda do enxerto pancreático por rejeição chegava até 20% dos casos. Os critérios utilizados para o diagnóstico de rejeição do enxerto pancreático são elevação dos níveis de creatinina sérica (TSPR), diminuição da amilasúria (drenagem vesical) e elevação dos níveis séricos de lipase. A biópsia pancreática (punção guiada por ultrassom) é o padrão-ouro para o diagnóstico de rejeição.(30,31)
A despeito da melhora dos resultados do transplante de pâncreas, as complicações infecciosas permanecem as principais causas de morbidade e mortalidade. A etiologia mais frequente é do tipo bacteriano, sendo a infecção de parede e a urinária as mais comuns. Os pacientes submetidos ao transplante de pâncreas têm alto risco de desenvolverem infecção por citomegalovírus devido à utilização de soros antilinfocitários em protocolos de imunossupressão. A incidência é, em média, de 25%.
O diagnóstico precoce do tipo de infecção, principalmente as infecções por fungo, é fundamental para o sucesso do tratamento. A administração de antibióticos, antifúngicos e agentes antivirais é recomendada.
Tardiamente, as principais complicações estão relacionadas com quadro de rejeição crônica e complicações infecciosas, sendo causas importantes de mortalidade o infarto do miocárdio e a morte súbita.
O transplante vascularizado de pâncreas permanece como o tratamento mais efetivo do diabetes tipo 1. Há complicações cirúrgicas e a imunossupressão é obrigatória. Entretanto, há melhora na qualidade de vida e maior sobrevida dos pacientes diabéticos urêmicos com transplante de pâncreas. O transplante de pâncreas isolado é o tratamento apropriado para os pacientes com diabetes lábil e deve ser indicado, segundo as recomendações da American Diabetes Association . O desenvolvimento do transplante de ilhotas deve diminuir as complicações cirúrgicas, e o sucesso da obtenção de tolerância pode eliminar a imunossupressão.