versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.3 São Paulo jul./set. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1956
A síndrome do intestino curto (SIC) é caracterizada pela má absorção em decorrência de extensivas ressecções do intestino. Essa condição resulta na redução maciça da capacidade entérica de absorção de nutrientes, sendo necessária a nutrição artificial(1,2).
A incidência estimada da SIC é de dois a cinco indivíduos por milhão(1). Condições congênitas e perinatais, como atresia intestinal, enterocolite necrosante, gastrosquise e volvo são as causas mais frequentes em crianças. Nos adultos, as etiologias mais comuns são: infarto mesentérico, trauma abdominal, enterite por radiação e doença de Crohn(1).
O tratamento da SIC pode ser medicamentoso ou cirúrgico com o objetivo de aumentar a absorção intestinal. Os medicamentos para o tratamento da SIC visam aumentar a absorção intestinal, enquanto que as cirurgias têm por objetivo alongar o restante do intestino, permitindo o abandono da nutrição parenteral (NPE)(2). A NPE permite que as crianças com SIC tenham um crescimento satisfatório durante o período de adaptação(3–6). A NPE é associada a outras drogas e cirurgias para recuperar a função intestinal normal(7). Estudos demonstram a importância da alimentação oral, pois aumenta a secreção gastrintestinal, a secreção do fator de crescimento de epiderme salivar e da motilidade da vesícula biliar(2).
Um grupo crescente de pacientes requer NPE a longo prazo. Em alguns casos, as complicações resultantes tornam a NPE impossível, como por consequências de cateterismo de longa duração (complicações sépticas, trombose venosa), doença metabólica dos ossos, esteatose ou doenças hepáticas.
A alta mortalidade dessas complicações (atinge 20% em quatro anos)(7) foi a causa para se estabelecer a indicação para transplante intestinal (TI) ou multivisceral (TMV), tanto em adultos(8) como em crianças(9). A necessidade do transplante deve ser considerado em: fígado terminal com falhas relacionadas a longa duração de NPE, falta de acesso venoso para continuar a NPE, episódios sépticos recorrentes relacionados ao acesso venoso central e causas inatas predominantes em pacientes pediátricos: atresia intestinal, volvo intestinal e fissura congênita na parede abdominal.
O tratamento cirúrgico para a SIC ou a falência funcional do intestino pode ser o TI ou o alongamento intestinal. As cirurgias de alongamento intestinal apresentam resultados conflitantes e existem poucas técnicas descritas(10–12). Por outro lado, resultados a curto e médio prazo do TMV, com o uso em bloco do fígado, estômago, duodeno, pâncreas, intestino delgado e cólon direito(13), têm apresentado melhora significativa nos últimos 10 anos(14).
Tendo em vista o crescente investimento em pesquisa e desenvolvimento do TMV, este estudo visou descrever o aperfeiçoamento e a capacitação técnica dessa modalidade cirúrgica, ainda inédita no Brasil.
Foram realizados quatro procedimentos experimentais em porcos, todos feitos pela mesma equipe, no mesmo local e sob as mesmas condições.
Os animais, da raça Large White, ficaram de jejum hídrico e sólido por 12 horas. Foi aplicada a medicação pré-anestésica (MPA) intramuscular profunda e, após 10 minutos, foram lavados e pesados antes de serem encaminhado para o centro cirúrgico.
O quadro 1 descreve as medicações e parâmetros da anestesia do suíno.
Quadro 1 Medicações e parâmetros da anestesia do suíno
MPA (IM) | Acepromazina 1 %_dose: 1 mg/Kg |
Midazolan__ dose: 0,2 mg/kg | |
Anestésico E.V | Etomidato 2mg/Kg |
Intubação | Sonda endo traqueal 6,5 |
Isoflurane | 0,5 a 1 % |
Volume corrente | 10 ml/Kg/h |
Frequência corrente | 16 rpm |
Os eletrodos e oxímetro foram colocados nos animais para sua monitorização durante todo o procedimento cirúrgico.
Foi realizada assepsia com PVPI degermante da pele do animal, seguida de posicionamento de campos cirúrgicos estéreis. Iniciou-se com uma incisão mediana xifo-púbica da pele, abertura do tecido subcutâneo, hemostasia e abertura da aponeurose para visualização da cavidade abdominal e inspeção dos órgãos.
Seguiu-se com a liberação dos ligamentos entre o mesentério e o mesocólon, dissecção da aorta infrarrenal, da veia cava, do esôfago abdominal e da aorta suprarrenal e identificação da artéria mesentérica superior (AMS) e do tronco celíaco.
Foi feita incisão fúrculo-xifoide, secção do esterno com serra de Gigli, hemostasia e foi colocado o afastador de Finochietto, podendo ser identificada a veia cava inferior e a aorta descendente torácica. O animal recebeu infusão de 3 mL de heparina. Houve a ligadura da aorta distal justa ilíaca, sua cateterização e seu clampeamento, tendo início a perfusão.
O próximo passo foi a infusão de 1.000 mL de solução de preservação Custodiol® pelo cateter da aorta e, simultaneamente, a incisão da veia cava inferior junto ao átrio direito e colocação de gelo estéril e moído de soro fisiológico na cavidade abdominal. Realizou-se a aspiração do sangue e da solução.
Em seguida, foi feita a secção e a ligadura do esôfago a 2 cm do cárdia, a secção e ligadura do íleo a 40 cm da válvula ileocecal, esplenectomia com ligadura da artéria e veia junto ao hilo esplênico, e a retirada a frio do enxerto em bloco com o estômago, duodeno, pâncreas, fígado e intestino. Foi também retirada toda a aorta descendente até a emergência das renais.
Acondicionou-se o enxerto multivisceral com 1.000 mL da solução de preservação Custodiol® e suturou-se a pele com fio de nylon 2-0 com agulha curvatura de 3 cm.
Diminuição do tamanho do enxerto intestinal com secção de 2,5 m do íleo. Enxerto reduzido para aproximadamente 3,5 m. Sutura da aorta distalmente a emergência do trono celíaco/AMS com prolene 6-0, mantendo toda a aorta tóraco-abdominal proximal.
Foi realizada assepsia com PVPI degermante da pele do animal, seguida de posicionamento de campos cirúrgicos estéreis. Iniciou-se com uma incisão mediana xifopúbica da pele, abertura do tecido subcutâneo, hemostasia e abertura da aponeurose e peritônio, além de visualização da cavidade abdominal e inspeção dos órgãos.
Seguiu-se com a liberação dos ligamentos entre o mesentério e o mesocólon, dissecção da aorta infrarrenal, AMS, veia mesentéria superior e ramos cólicos. A AMS foi cateterizada com uma sonda número 12 para monitorização invasiva da pressão arterial média (PAM). Em seguida foram ligadas e seccionadas as artérias do tronco celíaco e a própria AMS.
Foi feita secção do cólon distal e secção do estômago na altura do fundo gástrico. Realizou-se, então, a técnica clássica de clampeamento da cava infra e suprahepática e retirada do fígado. Em seguida, retiraram-se todos os órgãos peritoneais da cavidade: fígado, estômago, duodeno, pâncreas, intestino delgado e cólon.
O enxerto foi trazido para o campo operatório (tempo de isquemia fria de 4 horas e 20 minutos). Realizaram-se, com fio de prolene 6-0 sutura contínua as seguintes anastomoses:
–. veia cava supra-hepática do enxerto com a veia cava do receptor justa diafragmática, término-terminal (Figura 1);
–.
–. veia cava infra hepática do enxerto com a veia cava inferior (suprarrenal) do receptor, término-terminal (Figura 2);
–.
–. patch da aorta do enxerto com a aorta infrarrenal do receptor término-lateral (Figura 3).
–.
Seguiu-se com o desclampeamento da veia cava e, em seguida da aorta, com boa revascularização do enxerto. Foi feita a inspeção das anastomoses, observando um ponto de extravasamento da anastomose da aorta, reparado com ponto de prolene 6-0.
Suturou-se a aponeurose e o peritônio em plano único contínuo com prolene 2-0 e a pele com nylon 2-0.
Este trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), sob o número CEP 534-08.
Foi possível a realização do transplante multivisceral nos quatro animais. O enxerto evoluiu com boa perfusão (Figura 4), porém os animais apresentaram taquicardia e sinais de hipotensão refratária (PAM invasiva = 45 mmHg). Após infusão de 2 L de Ringer Lactato morno e 10 mL de solução de bicarbonato 8,4% houve melhora da hipotensão e da perfusão do enxerto intestinal (PAM invasiva = 63 mmHg). Aplicaram-se 5 mL de Liquemine® intravenosa.
Os animais apresentaram hipotensão com necessidade de drogas vasoativas em altas doses, sendo todos sacrificados com a retirada dessas drogas.
Nos quatro procedimentos realizados não houve sobrevivência do animal, sendo o óbito relacionado à síndrome de isquemia-reperfusão, resultando em hipotensão refratária, apesar do flush do enxerto. Dependendo da intensidade e do tempo de isquemia, quando o oxigênio é restabelecido aos tecidos, a lesão tecidual causada pela hipóxia pode ser agravada (paradoxo do oxigênio)(15). Os animais apresentaram hipotensão com necessidade de drogas vasoativas em altas doses, sendo todos sacrificados com a retirada dessas drogas.
A isquemia e reperfusão do intestino delgado provocam a ruptura da barreira mucosa, translocação bacteriana e ativação da resposta inflamatória(16), bem como distúrbio nos equilíbrios ácido-base e hidroeletrolítico(17). Outro fator que induz a lesão intestinal após a reperfusão é a geração de radicais livres de moléculas de oxigênio(18), derivados de cadeias de transporte de elétrons da mitocôndria, xantina oxidase, metabolismo das células endoteliais, prostaglandinas e neutrófilos ativados(19).
Alternativas para aumentar a sobrevida do animal são: uso de mais de uma droga vasoativa, uso de um terceiro porco apenas para transfusão sanguínea, presença de uma equipe de anestesia na sala de cirurgia e redução do enxerto. O uso de drogas vasoativas para inibir a hipotensão refratária é amplamente discutido na literatura, principalmente em recém-nascidos e em situações de sepse(20,21). Sua administração se baseia na propriedade vasoconstritiva dos fármacos, tendo como resultado aumento da resistência periférica e consequente aumento da PA. Outra forma de prevenir e reverter a hipotensão é pela reposição volêmica. Para isso, poderia ser utilizado um terceiro porco, apenas como doador para transfusão sanguínea.
A presença de uma equipe de anestesia durante a cirurgia trouxe grandes benefícios na estabilização da PA do animal. A dedicação exclusiva de uma equipe a monitorização hemodinâmica do porco é indispensável para minimizar os efeitos da síndrome de isquemia-reperfusão.
Foi possível a realização do transplante multivisceral em quatro animais. Hipotensão refratária ocorreu em todos os animais que evoluíram para o óbito. Alternativas para minimizar a síndrome de isquemia-reperfusão, como o uso de mais de uma droga vasoativa, uso de um terceiro porco apenas para transfusão sanguínea, presença de uma equipe de anestesia na sala de cirurgia e redução do enxerto, serão os próximos passos para possibilitar estudos experimentais.