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Transplante multivisceral em suínos: modelo de pesquisa e treinamento

Transplante multivisceral em suínos: modelo de pesquisa e treinamento

Autores:

André Ibrahim David,
Valéria Vieira Chida,
Andre Dong Won Lee,
Felipe Soares Oliveira Rodrigues Fiuza,
Daniela Medeiros Calil,
Danielle de Carvalho Mantovani,
Eduardo Rullo Maranhão,
Gabriel Beligni Campi,
Juan Carlos Llanos,
Ben-Hur Ferraz Neto

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.9 no.3 São Paulo jul./set. 2011

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1956

INTRODUÇÃO

A síndrome do intestino curto (SIC) é caracterizada pela má absorção em decorrência de extensivas ressecções do intestino. Essa condição resulta na redução maciça da capacidade entérica de absorção de nutrientes, sendo necessária a nutrição artificial(1,2).

A incidência estimada da SIC é de dois a cinco indivíduos por milhão(1). Condições congênitas e perinatais, como atresia intestinal, enterocolite necrosante, gastrosquise e volvo são as causas mais frequentes em crianças. Nos adultos, as etiologias mais comuns são: infarto mesentérico, trauma abdominal, enterite por radiação e doença de Crohn(1).

O tratamento da SIC pode ser medicamentoso ou cirúrgico com o objetivo de aumentar a absorção intestinal. Os medicamentos para o tratamento da SIC visam aumentar a absorção intestinal, enquanto que as cirurgias têm por objetivo alongar o restante do intestino, permitindo o abandono da nutrição parenteral (NPE)(2). A NPE permite que as crianças com SIC tenham um crescimento satisfatório durante o período de adaptação(36). A NPE é associada a outras drogas e cirurgias para recuperar a função intestinal normal(7). Estudos demonstram a importância da alimentação oral, pois aumenta a secreção gastrintestinal, a secreção do fator de crescimento de epiderme salivar e da motilidade da vesícula biliar(2).

Um grupo crescente de pacientes requer NPE a longo prazo. Em alguns casos, as complicações resultantes tornam a NPE impossível, como por consequências de cateterismo de longa duração (complicações sépticas, trombose venosa), doença metabólica dos ossos, esteatose ou doenças hepáticas.

A alta mortalidade dessas complicações (atinge 20% em quatro anos)(7) foi a causa para se estabelecer a indicação para transplante intestinal (TI) ou multivisceral (TMV), tanto em adultos(8) como em crianças(9). A necessidade do transplante deve ser considerado em: fígado terminal com falhas relacionadas a longa duração de NPE, falta de acesso venoso para continuar a NPE, episódios sépticos recorrentes relacionados ao acesso venoso central e causas inatas predominantes em pacientes pediátricos: atresia intestinal, volvo intestinal e fissura congênita na parede abdominal.

O tratamento cirúrgico para a SIC ou a falência funcional do intestino pode ser o TI ou o alongamento intestinal. As cirurgias de alongamento intestinal apresentam resultados conflitantes e existem poucas técnicas descritas(1012). Por outro lado, resultados a curto e médio prazo do TMV, com o uso em bloco do fígado, estômago, duodeno, pâncreas, intestino delgado e cólon direito(13), têm apresentado melhora significativa nos últimos 10 anos(14).

OBJETIVO

Tendo em vista o crescente investimento em pesquisa e desenvolvimento do TMV, este estudo visou descrever o aperfeiçoamento e a capacitação técnica dessa modalidade cirúrgica, ainda inédita no Brasil.

MÉTODOS

Foram realizados quatro procedimentos experimentais em porcos, todos feitos pela mesma equipe, no mesmo local e sob as mesmas condições.

Pré-operatório

Os animais, da raça Large White, ficaram de jejum hídrico e sólido por 12 horas. Foi aplicada a medicação pré-anestésica (MPA) intramuscular profunda e, após 10 minutos, foram lavados e pesados antes de serem encaminhado para o centro cirúrgico.

O quadro 1 descreve as medicações e parâmetros da anestesia do suíno.

Quadro 1 Medicações e parâmetros da anestesia do suíno 

MPA (IM) Acepromazina 1 %_dose: 1 mg/Kg
Midazolan__ dose: 0,2 mg/kg
Anestésico E.V Etomidato 2mg/Kg
Intubação Sonda endo traqueal 6,5
Isoflurane 0,5 a 1 %
Volume corrente 10 ml/Kg/h
Frequência corrente 16 rpm

Os eletrodos e oxímetro foram colocados nos animais para sua monitorização durante todo o procedimento cirúrgico.

Técnica cirúrgica da cirurgia do animal doador do enxerto multivisceral

Foi realizada assepsia com PVPI degermante da pele do animal, seguida de posicionamento de campos cirúrgicos estéreis. Iniciou-se com uma incisão mediana xifo-púbica da pele, abertura do tecido subcutâneo, hemostasia e abertura da aponeurose para visualização da cavidade abdominal e inspeção dos órgãos.

Seguiu-se com a liberação dos ligamentos entre o mesentério e o mesocólon, dissecção da aorta infrarrenal, da veia cava, do esôfago abdominal e da aorta suprarrenal e identificação da artéria mesentérica superior (AMS) e do tronco celíaco.

Foi feita incisão fúrculo-xifoide, secção do esterno com serra de Gigli, hemostasia e foi colocado o afastador de Finochietto, podendo ser identificada a veia cava inferior e a aorta descendente torácica. O animal recebeu infusão de 3 mL de heparina. Houve a ligadura da aorta distal justa ilíaca, sua cateterização e seu clampeamento, tendo início a perfusão.

O próximo passo foi a infusão de 1.000 mL de solução de preservação Custodiol® pelo cateter da aorta e, simultaneamente, a incisão da veia cava inferior junto ao átrio direito e colocação de gelo estéril e moído de soro fisiológico na cavidade abdominal. Realizou-se a aspiração do sangue e da solução.

Em seguida, foi feita a secção e a ligadura do esôfago a 2 cm do cárdia, a secção e ligadura do íleo a 40 cm da válvula ileocecal, esplenectomia com ligadura da artéria e veia junto ao hilo esplênico, e a retirada a frio do enxerto em bloco com o estômago, duodeno, pâncreas, fígado e intestino. Foi também retirada toda a aorta descendente até a emergência das renais.

Acondicionou-se o enxerto multivisceral com 1.000 mL da solução de preservação Custodiol® e suturou-se a pele com fio de nylon 2-0 com agulha curvatura de 3 cm.

Cirurgia de mesa

Diminuição do tamanho do enxerto intestinal com secção de 2,5 m do íleo. Enxerto reduzido para aproximadamente 3,5 m. Sutura da aorta distalmente a emergência do trono celíaco/AMS com prolene 6-0, mantendo toda a aorta tóraco-abdominal proximal.

Técnica cirúrgica da cirurgia do animal receptor do enxerto multivisceral

Foi realizada assepsia com PVPI degermante da pele do animal, seguida de posicionamento de campos cirúrgicos estéreis. Iniciou-se com uma incisão mediana xifopúbica da pele, abertura do tecido subcutâneo, hemostasia e abertura da aponeurose e peritônio, além de visualização da cavidade abdominal e inspeção dos órgãos.

Seguiu-se com a liberação dos ligamentos entre o mesentério e o mesocólon, dissecção da aorta infrarrenal, AMS, veia mesentéria superior e ramos cólicos. A AMS foi cateterizada com uma sonda número 12 para monitorização invasiva da pressão arterial média (PAM). Em seguida foram ligadas e seccionadas as artérias do tronco celíaco e a própria AMS.

Foi feita secção do cólon distal e secção do estômago na altura do fundo gástrico. Realizou-se, então, a técnica clássica de clampeamento da cava infra e suprahepática e retirada do fígado. Em seguida, retiraram-se todos os órgãos peritoneais da cavidade: fígado, estômago, duodeno, pâncreas, intestino delgado e cólon.

O enxerto foi trazido para o campo operatório (tempo de isquemia fria de 4 horas e 20 minutos). Realizaram-se, com fio de prolene 6-0 sutura contínua as seguintes anastomoses:

    –. veia cava supra-hepática do enxerto com a veia cava do receptor justa diafragmática, término-terminal (Figura 1);

    –.

    Figura 1 Anastomose da veia cava supra hepática 

    –. veia cava infra hepática do enxerto com a veia cava inferior (suprarrenal) do receptor, término-terminal (Figura 2);

    –.

    Figura 2 Anastomose da veia cava infra hepática 

    –. patch da aorta do enxerto com a aorta infrarrenal do receptor término-lateral (Figura 3).

    –.

    Figura 3 Patch da aorta do enxerto com a aorta infra-renal do receptor, anastomose término-lateral 

Seguiu-se com o desclampeamento da veia cava e, em seguida da aorta, com boa revascularização do enxerto. Foi feita a inspeção das anastomoses, observando um ponto de extravasamento da anastomose da aorta, reparado com ponto de prolene 6-0.

Suturou-se a aponeurose e o peritônio em plano único contínuo com prolene 2-0 e a pele com nylon 2-0.

Este trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), sob o número CEP 534-08.

RESULTADOS

Foi possível a realização do transplante multivisceral nos quatro animais. O enxerto evoluiu com boa perfusão (Figura 4), porém os animais apresentaram taquicardia e sinais de hipotensão refratária (PAM invasiva = 45 mmHg). Após infusão de 2 L de Ringer Lactato morno e 10 mL de solução de bicarbonato 8,4% houve melhora da hipotensão e da perfusão do enxerto intestinal (PAM invasiva = 63 mmHg). Aplicaram-se 5 mL de Liquemine® intravenosa.

Figura 4 Reperfusão do enxerto multivisceral 

Os animais apresentaram hipotensão com necessidade de drogas vasoativas em altas doses, sendo todos sacrificados com a retirada dessas drogas.

DISCUSSÃO

Nos quatro procedimentos realizados não houve sobrevivência do animal, sendo o óbito relacionado à síndrome de isquemia-reperfusão, resultando em hipotensão refratária, apesar do flush do enxerto. Dependendo da intensidade e do tempo de isquemia, quando o oxigênio é restabelecido aos tecidos, a lesão tecidual causada pela hipóxia pode ser agravada (paradoxo do oxigênio)(15). Os animais apresentaram hipotensão com necessidade de drogas vasoativas em altas doses, sendo todos sacrificados com a retirada dessas drogas.

A isquemia e reperfusão do intestino delgado provocam a ruptura da barreira mucosa, translocação bacteriana e ativação da resposta inflamatória(16), bem como distúrbio nos equilíbrios ácido-base e hidroeletrolítico(17). Outro fator que induz a lesão intestinal após a reperfusão é a geração de radicais livres de moléculas de oxigênio(18), derivados de cadeias de transporte de elétrons da mitocôndria, xantina oxidase, metabolismo das células endoteliais, prostaglandinas e neutrófilos ativados(19).

Alternativas para aumentar a sobrevida do animal são: uso de mais de uma droga vasoativa, uso de um terceiro porco apenas para transfusão sanguínea, presença de uma equipe de anestesia na sala de cirurgia e redução do enxerto. O uso de drogas vasoativas para inibir a hipotensão refratária é amplamente discutido na literatura, principalmente em recém-nascidos e em situações de sepse(20,21). Sua administração se baseia na propriedade vasoconstritiva dos fármacos, tendo como resultado aumento da resistência periférica e consequente aumento da PA. Outra forma de prevenir e reverter a hipotensão é pela reposição volêmica. Para isso, poderia ser utilizado um terceiro porco, apenas como doador para transfusão sanguínea.

A presença de uma equipe de anestesia durante a cirurgia trouxe grandes benefícios na estabilização da PA do animal. A dedicação exclusiva de uma equipe a monitorização hemodinâmica do porco é indispensável para minimizar os efeitos da síndrome de isquemia-reperfusão.

CONCLUSÃO

Foi possível a realização do transplante multivisceral em quatro animais. Hipotensão refratária ocorreu em todos os animais que evoluíram para o óbito. Alternativas para minimizar a síndrome de isquemia-reperfusão, como o uso de mais de uma droga vasoativa, uso de um terceiro porco apenas para transfusão sanguínea, presença de uma equipe de anestesia na sala de cirurgia e redução do enxerto, serão os próximos passos para possibilitar estudos experimentais.

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