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Transtorno Factício e a Equipe Interdisciplinar: identificação de sinais e fatores de risco

Transtorno Factício e a Equipe Interdisciplinar: identificação de sinais e fatores de risco

Autores:

Aline Vianna Pereira,
Cynthia Goulart Molina-Bastos,
Marcelo Rodrigues Gonçalves,
Bárbara Niegia Garcia de Goulart

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.31 no.1 São Paulo 2019 Epub 21-Fev-2019

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018173

Durante as últimas décadas, houve um aumento considerável de publicações relacionadas às análises de diagnósticos e seus impactos na clínica, especialmente em virtude da demanda por minimizar o número de exames, erros diagnósticos, sobrediagnóstico e intervenções desnecessárias. Tal aumento parece estar relacionado ao desejo de atentar a comunidade médica e profissões correlatas para aspectos a serem observados durante a avaliação clínica objetiva e subjetiva da saúde do paciente e de seu entorno(1). O detalhamento do problema, bem como o ambiente em que esse emerge, é cada vez mais visto como crucial para fundamentar o entendimento de doenças, agravos e seu manejo.

No campo fonoaudiológico, essa necessidade ativa de buscar pormenores da história clínica e do meio em que o paciente está inserido não é novidade. É sabido que fonoaudiólogos, assim como outros profissionais da área da saúde em geral, que assumem para si o papel terapêutico, devem direcionar a sua escuta para os problemas das pessoas nas suas complexidades, com uma abordagem integral (2). Considerando que esse profissional geralmente tem contato semanal, criando vínculo terapêutico e afetivo com seus pacientes, é extremamente importante que busque compreender as particularidades e transtornos (inclusive conhecendo sinais, sintomas e fatores de risco) e encaminhar, sempre que necessário, tornando-se inclusive um elo entre o paciente e o profissional médico assistente.

Entretanto, tem ocorrido um aumento também de casos relatados e publicados sobre transtornos e síndromes, muitas vezes psiquiátricas, que se assemelham a casos de pacientes simuladores(3) e conversivos. Com isso, torna-se cada vez mais clara a importância de profissionais fonoaudiólogos conhecerem tais transtornos, sinais, sintomas e fatores de risco que possam sinalizar a necessidade de encaminhamento e que, ao serem constatados, possam influenciar positivamente a tomada de decisão quanto ao diagnóstico e prognóstico destes pacientes. Uma das síndromes que caminha nesse sentido e sobre a qual tem-se falado é a síndrome do Transtorno Factício.

Tal síndrome é classificada como um transtorno em que há a fabricação ou indução de sinais e sintomas de forma consciente e intencional de um distúrbio físico, emocional ou cognitivo, podendo haver a adulteração, inclusive, de exames laboratoriais(4,5). Tais fabricações são realizadas a fim de obter atendimento, medicamentos e/ou internações, entretanto, diferente de casos de pacientes simuladores que apresentam interesses financeiros ou pessoais nas internações e medicalização, os casos relatados dessa síndrome parecem apresentar apenas motivação interna e inconsciente em que há uma necessidade de manter-se sob cuidado profissional, de receber atenção médica e cuidados de profissionais da equipe de saúde.

O Transtorno Factício Autoimposto ou Síndrome de Münchausen, como era conhecido anteriormente, foi descrito pela primeira vez em 1951 por Richard Asher ao analisar indivíduos que propositalmente inventavam sintomas de determinadas doenças para buscar acompanhamento especializado(4,5). Este transtorno foi intitulado “Síndrome de Münchausen” em homenagem ao Barão Karl Friedrich Hieronymus Freiherr von Münchhausen que, após juntar-se às forças armadas russas, ficou conhecido por contar histórias fantásticas e fantasmagóricas sobre as batalhas de que participou contra os turcos otomanos(4,6). O transtorno é também conhecido como “dependência hospitalar”, “síndrome do paciente profissional”, “síndrome do vício hospitalar” e “síndrome de hopper hospitalar”.

Posteriormente, em 1977, o termo foi ressignificado, para melhor descrever os casos de crianças cujos pais referiam doenças e sintomas que, ao serem analisados, verificou-se serem fabricados; para isso, criou-se a nomenclatura, naquele momento, de “Síndrome de Münchausen por transferência” (Münchausen syndrome by proxy), atualmente conhecido como “Transtorno Factício Imposto a Outro” (7). O transtorno factício imposto a outro é considerado uma forma de abuso psíquico na infância segundo a classificação proposta pelo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, 5ª edição (DSM V)(8).

Neste, é o cuidador quem perpetua a condição sintomática do paciente, adulterando ou produzindo histórias clínicas, evidências laboratoriais e/ou lesões físicas que levem a hospitalizações e medicações desnecessárias, procedimentos terapêuticos e cirúrgicos, e diagnósticos errôneos(7,9). Tal perpetuador comumente é identificado como a mãe, entretanto, há casos em que é possível observar a participação simbiótica do filho(6,10).

Neste contexto, existem sinais citados na literatura aos quais os fonoaudiólogos devem manter-se atentos, sendo os mais comuns a narração frequente de intoxicações alimentares (vômitos intermitentes), diarreias, crises convulsivas, apneias; pacientes que frequentemente são observados durante depressão do sistema nervoso central (sob efeito de analgésicos e sedativos); constantes lesões cutâneas, sangramentos, comportamentos patológicos presentes apenas quando há observadores presentes e que constantemente negam-se a aceitar a alta terapêutica (criando novas demandas)(5,6,10). Além disso, é necessário ficar atento a fatores de risco que podem ser comumente verificados, como é o caso de conjuntos de sintomas sem explicações, recorrentes internações e cuidadores que apresentam demasiado conhecimento da área da saúde, muitas vezes, conhecendo terminologias e etapas detalhadas de procedimentos da rotina médica.

Quando da suspeita de Transtorno Factício Autoimposto e/ou Transtorno Factício Imposto a Outro, essa deve ser reportada para toda a equipe assistente e o monitoramento do paciente e daqueles que com ele convivem, especialmente crianças, deve ser muito próximo e de caráter intervencionista, visto que o prognóstico é reservado.

O Transtorno Factício não tem prevalência conhecida, entretanto, estima-se que cerca de 1% de casos de indivíduos hospitalizados atendam aos critérios diagnósticos(8). Este transtorno, mesmo que de baixa ocorrência, tem alto impacto na vida do sujeito afetado e das pessoas ao seu redor, além de altos custos para os sistemas que o atendem, uma vez que esses pacientes costumam migrar entre os serviços(7,9). Tal aumento de custo é gerado principalmente em função da realização de exames e procedimentos desnecessários e inconclusivos, tratamento de subdiagnósticos e diagnósticos errôneos que podem surgir durante o período de interação com essa população, permanência prolongada em acompanhamento profissional por não haver um diagnóstico concreto e desenvolvimento rápido de “complicações” em pacientes em que se inicia a investigação, porém não há hipótese diagnóstica confirmada.

O diagnóstico de Transtorno Factício se dá a partir da combinação da avaliação e observação de diferentes profissionais, inclusive em momentos e situações diversas, o que põe em evidência a importância e necessidade de interconsultas e de uma atuação interdisciplinar a fim de complementar o entendimento integral do caso. Todavia, tal diagnóstico também deve ser extremamente ponderado, visto que uma vez identificado, descrito e aceito (ou não) pela família, irremediáveis consequências poderão surgir.

Assim sendo, torna-se evidente a relevância e importância de fonoaudiólogos terem conhecimento da existência desta síndrome e de como proceder ao se depararem com tais pacientes. Além disso, o papel desse profissional, seja nas avaliações, reavaliações ou consultorias, assim como o de outros profissionais de vínculo terapêutico, é cada vez mais visto como essencial para um diagnóstico preciso e diferenciado, uma vez que proporciona uma interessante troca de informações e impressões entre profissionais.

REFERÊNCIAS

1 Graber ML. The incidence of diagnostic error in medicine. BMJ Qual Saf. 2013;22(Suppl 2):ii21-7. . PMid:23771902.
2 Mesquita A, Carvalho E. A Escuta Terapêutica como estratégia de intervenção em saúde: uma revisão integrativa. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(6):1127-36. . PMid:25626514.
3 Rodrigues DB, Freitas GA, Farias AEM, Amorim-Gaudêncio C. Simulação de sintomas e transtornos mentais: Uma revisão crítica do fenômeno para a psicologia. Estudos de Psicologia (Natal). 2016;21(2):134-45.
4 Sousa D Fo, Kanomata EY, Feldman RJ, Maluf A No. Munchausen syndrome and Munchausen syndrome by proxy: a narrative review. Einstein (Sao Paulo). 2017;15(4):516-21. . PMid:29364370.
5 Oner E, Unlu M, Solgun B, Kocyigit H, Cimen P. A case of factitious bleeding: munchausen s syndrome. Journal of Evolution of Medical and Dental Sciences. 2015;4(48), 8416-19. .
6 Mehl AL, Coble L, Johnson S. Munchausen syndrome by proxy: a family affair. Child Abuse Negl. 1990;14(4):577-85. . PMid:2289187.
7 Rosenberg DA. Web of deceit: a literature review of Munchausen syndrome by proxy. Child Abuse Negl. 1987;11(4):547-63. . PMid:3322516.
8 APA: American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-V). 5th ed. Arlington: APA; 2013.
9 Wittkowski H, Hinze C, Häfner-Harms S, Oji V, Masjosthusmann K, Monninger M, et al. Munchausen by proxy syndrome mimicking systemic autoinflammatory disease: case report and review of the literature. Pediatric Rheumatology. 2017;15(1):19. . PMid:28381287.
10 Lacey SR, Cooper C, Runyan DK, Azizkhan RG. Munchausen syndrome by proxy: patterns of presentation to pediatric surgeons. J Pediatr Surg. 1993;28(6):827-32. . PMid:8331513.