versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.3 São Paulo jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140056
Os quadros psiquiátricos associados à doença renal tomam formas diversas, de acordo com a história natural da doença. Classicamente, a uremia é citada como causa de delirium.1 Sintomas como sonolência e agitação psicomotora podem fazer parte da descrição do quadro clínico da injúria renal aguda (IRA).2 O uso de medicações também precisa ser lembrado como causa potencial de alterações psiquiátricas; os corticosteroides e a ciclosporina, usados como terapêutica para diversas glomerulopatias e no pós-transplante renal, estão associados à depressão, mania e sintomas psicóticos.3
Como todas as doenças crônicas, a doença renal crônica (DRC) tem o potencial de limitar a capacidade funcional, produtividade e a qualidade de vida das pessoas por ela afetadas.4 Há uma elevada prevalência de transtornos psiquiátricos associados à DRC. Kimmel et al.5 mostraram que pacientes com DRC apresentam índices de hospitalização devido a quadros psiquiátricos (especialmente por depressão, demência e abuso de drogas) de 1,5 a 3 vezes maior do que aqueles com outras doenças crônicas. Entretanto, eles ainda são subdiagnosticados e subtratados.6
Neste artigo, abordaremos algumas das alterações neuropsiquiátricas mais frequentemente associadas às doenças renais.
O delirium é um transtorno comportamental agudo, causado pelo comprometimento da atividade cerebral, com alterações das funções cognitivas, geralmente secundário a distúrbios sistêmicos.7 As principais características de delirium são: início abrupto do quadro, rebaixamento do nível de consciência, alterações atencionais, desorientação temporal/espacial, pensamento desorganizado e flutuação dos sintomas ao longo do dia. Além disso, podem ocorrer agitação, delírios, alucinações visuais e alterações do humor. O eletroencefalograma geralmente se altera dentro das primeiras 48 horas de início da disfunção renal e as anormalidades podem persistir por até 3 semanas, mesmo após a diálise.4
Há inúmeros fatores predisponentes para o delirium nas doenças renais. As causas de delirium podem ser comuns a outros pacientes, como febre, instabilidade hemodinâmica, polifarmácia, hipo/hipernatremia, distúrbios ácido-básicos, hipercalcemia, hiper/hipoglicemia, anemia e deficiências vitamínicas (tiamina e cianocobalamina).3 Porém, em pacientes com falência renal, algumas causas específicas devem ser consideradas, como a uremia, toxicidade por alumínio, hematomas subdurais (associados à anticoagulação ou disfunção plaquetária) e síndrome de desequilíbrio pós-diálise.8
A síndrome de desequilíbrio pós-diálise é causada pela correção abrupta da azotemia e consequente alteração do pH e pressão osmótica, provocando um gradiente entre o sistema nervoso central e o plasma, e ocasionando edema cerebral. Pode se instalar de 3-4 horas após o início da diálise com a duração de até 8-48 horas após o término da mesma. É um quadro transitório, caracterizado por cefaleia, náuseas, câimbras, delirium, crises epilépticas e coma.4
Em todos os casos, a detecção precoce do delirium é imprescindível e a abordagem terapêutica deverá ser individualizada.9 O primeiro passo na abordagem do delirium é a prevenção, o que pode ser feito identificando-se e tratando os fatores precipitantes e com mobilização precoce do paciente. Não há evidências em favor do uso de fármacos para a prevenção de delirium.
Estratégias não farmacológicas são medidas de primeira linha no tratamento, tais como técnicas de facilitação do sono, reorientação constante, correção de privação sensorial e abordagem da dor. É prática comum usar antipsicóticos para tratar o delirium tanto no hospital geral quanto em unidades de cuidados intensivos. Entretanto, as evidências científicas sobre o tratamento farmacológico do delirium são bastante limitadas e nenhum medicamento está aprovado para esse uso.10 Apesar de os modelos fisiopatológicos do delirium envolverem principalmente uma desregulação da neurotransmissão colinérgica, os anticolinesterásticos também não são recomendados. Em 2010, um ensaio clínico com uma droga anticolinesterásica no delirium foi interrompido em virtude da ausência de benefício e possível dano, com tendência para maior mortalidade no grupo sob tratamento.11
O termo uremia foi utilizado pela primeira vez em 1840, por Piorry e l'Héritier, para demonstrar a visão de que o quadro clínico da falência renal estaria relacionado a uma toxicidade pela ureia. Atualmente, a uremia é descrita como a síndrome clínica associada à insuficiência renal e acúmulo de compostos nitrogenados; entretanto, ainda não foi implicada nenhuma substância específica.12 Fatores como distúrbios hormonais, estresse oxidativo, acúmulo de metabólitos (tais como os compostos de guanidina, metabólitos da via da quinurenina), desequilíbrio entre neurotransmissores excitatórios e inibitórios e distúrbio do metabolismo intermediário foram identificados como possíveis contribuintes.13 A encefalopatia urêmica é mais grave e progride mais rapidamente em pacientes com uma deterioração aguda da função renal.14
Além dos sintomas presentes no delirium, no caso da encefalopatia urêmica os sintomas podem progredir em um continuum, desde uma leve alteração do nível de consciência até o coma profundo. Frequentemente estão associados cefaleia, alterações visuais, tremores, mioclonias multifocais, e crises epilépticas. Os sinais também são flutuantes ao longo de horas ou dias.13 Os pacientes podem notar piora cognitiva progressiva ao longo dos dias até o dia da diálise.15 Todavia, os níveis de azotemia (compostos nitrogenados) apresentam correlação pobre com a disfunção neurológica.14
A maioria dos sintomas se resolve com a terapia de substituição renal - diálise ou transplante.16
Os déficits cognitivos em pacientes com doença renal crônica são comuns, mas ainda pouco reconhecidos. A sua identificação pode ter um impacto positivo na evolução do paciente, principalmente se estes forem secundários à depressão ou ao delirium, condições potencialmente tratáveis e que devem entrar como diagnóstico diferencial da disfunção cognitiva.17,18 A doença de Alzheimer e, especialmente, a demência vascular são comuns em pacientes com DRC, esta última devido à alta comorbidade com hipertensão, diabetes e ateroesclerose.19 A presença de demência está associada a maior incapacidade, mortalidade, mais hospitalizações e interrupção da diálise.5,17
Pacientes em diálise por mais de um ano podem apresentar um quadro progressivo de deterioração neurológica, denominado "demência da diálise", caracterizado por disartria, disfagia e demência global com preservação do nível de consciência, podendo progredir para a morte em cerca de 6-12 meses se não abordada. Sua fisiopatologia mais aceita é a provável toxicidade por sais de alumínio encontrados nos líquidos dialíticos. Após a instituição de medidas de prevenção (suspensão do uso de sais de alumínio nos líquidos de diálise e quelantes de fosfato contendo alumínio), houve significativa redução do número de casos.4
O transtorno depressivo é o quadro psiquiátrico mais frequentemente descrito em pacientes com doença renal crônica terminal (DRCT).6 Sua prevalência pode chegar a até 100% dos pacientes com doenças renais, variando de acordo com os critérios utilizados e população estudada.18 No Brasil, em dois estudos com pacientes submetidos à hemodiálise, a prevalência de transtorno depressivo maior foi de 44,8% utilizando-se o Inventário de Depressão de Beck (BDI), e de 7,8% com a versão de 10 itens do Center for Epidemiologic Studies Depression Scale (CES-D).19,20
Em recente meta-análise, os pacientes em diálise apresentavam a maior frequência de depressão e maior risco de hospitalização devido a um transtorno psiquiátrico em comparação com aqueles em tratamento conservador e pós-transplante.5,21
Entre os pacientes em diálise, aqueles submetidos à diálise peritoneal apresentam menor prevalência de sintomas depressivos e ansiosos, de alterações de sono e em comparação com os pacientes em hemodiálise.22,23
Destaca-se que a presença de sintomas depressivos tem o potencial de alterar adversamente a evolução de pacientes com DCRT.24 Isso pode ocorrer por redução da adesão ao tratamento, piora do estado nutricional, alteração da função do sistema imune, e elevação das taxas de mortalidade.18,25
Apesar das altas prevalência e morbidade associadas à depressão, a maioria dos casos permanece subdiagnosticada e subtratada.6,15 Há uma elevada frequência de queixas somáticas associadas ao quadro de DRC que podem mimetizar sintomas depressivos, como fadiga, anorexia, alteração de peso e de sono. Sugere-se que a presença de sintomas não vegetativos (humor deprimido, ideias de suicídio, pessimismo, desesperança, culpa e abulia) seria mais adequada para caracterizar a presença de quadros depressivos.4 O uso de instrumentos para rastreio diagnóstico como o BDI e CES-D parece ser benéfico em pacientes com DRC, devido à alta prevalência e morbidade deste quadro.26
Pacientes com DRC têm risco significantemente maior de cometer suicídio do que a população geral, sendo este mais elevado entre pacientes maiores de 75 anos, pacientes que apresentem comorbidade com dependência de álcool ou drogas e hospitalização recente por transtorno psiquiátrico.27
Poucos estudos avaliaram o tratamento de transtornos depressivos em pacientes com DRC. A psicoterapia cognitivo-comportamental tem eficácia descrita em relação à adesão ao tratamento e sintomas depressivos em pacientes com DRC, sendo sugerida como alternativa ou complementação ao tratamento farmacológico.15,26 Em relação à farmacoterapia, é importante considerar a presença de interações medicamentosas (especialmente nos pacientes transplantados em uso de imunossupressores) e efeitos colaterais.3 Os inibidores seletivos de recaptação da serotonina são as drogas atuais de escolha, por seu perfil mais favorável de efeitos colaterais. Por cautela, preconiza-se iniciar o tratamento com uma dose de 30% da habitual, monitorizando-se de forma próxima quanto à resposta e potenciais sinais de toxicidade.4,18
A ansiedade é um dos sintomas mais frequentemente diagnosticados em pacientes com doenças crônicas.15 Todavia, em DRC os trabalhos ainda são escassos em relação à presença de transtornos de ansiedade.
Em uma amostra com 50 pacientes com DRCT em hemodiálise, em 45% destes foi diagnosticado algum transtorno de ansiedade, com manutenção dos sintomas em cerca de 30% deles, quando não tratados, em reavaliação após 16 meses.28 Os pacientes em hemodiálise têm maior frequência de sintomas ansiosos em relação àqueles em diálise peritoneal.23
No Brasil, um estudo com pacientes com glomerulonefrite familiar e doença renal policística autossômica dominante mostraram escores de ansiedade mais intensos quando comparados a pacientes com outras doenças crônicas.29 Em outra amostra brasileira com 244 pacientes em hemodiálise, encontrou-se uma frequência de 5,3% de fobia social.30
Quase não há menção ao tratamento de sintomas ansiosos em pacientes com DRC. Portanto, as propostas de tratamento são extrapoladas a partir de pessoas com transtornos ansiosos sem outro problema de saúde. Psicoterapia cognitivo-comportamental e os inibidores seletivos de recaptação de serotonina estão entre as primeiras escolhas.31 Os benzodiazepínicos devem ser evitados e usados apenas em situações agudas e pelo menor tempo possível, visto seu potencial para causar dependência e por se associar com complicações clínicas como delirium.31 Quando necessário o uso dessas drogas, deve-se dar preferência para aqueles com metabólitos inativos, como o lorazepam e oxazepam. Ressaltamos que esses benzodiazepínicos citados podem apresentar sua meia-vida quadruplicada na DRCT e não são removidos por diálise. Dessa forma, é necessária extrema cautela na utilização dessas medicações em pacientes com DRCT.32
A fadiga é um dos sintomas mais frequentemente encontrados em pacientes com doenças crônicas, e pode ser encontrada em cerca de 50% dos pacientes adultos e 25% das crianças e adolescentes com DRC.33,34 Entre os possíveis fatores relacionados ao desenvolvimento de fadiga, encontram-se endotoxinas circulantes, citocinas inflamatórias e maior estresse oxidativo.33 A presença de fadiga encontra-se positivamente associada ao diagnóstico de depressão e alterações do sono e piora da qualidade de vida.33,34 Além disso, a presença de fadiga mostrou-se um preditor de eventos cardiovasculares, independentemente de outros fatores de risco conhecidos.35 A abordagem da fadiga na DRC incluiu tratamento agressivo da anemia, atividade física e rastreio e tratamento da depressão.36
Apesar de maior atenção aos transtornos psiquiátricos em pacientes com doença renal, estes ainda persistem subdiagnosticados e subtratados. Além disso, são escassos na literatura científica estudos sobre o tratamento de transtornos neuropsiquiátricos nessa população, permanecendo dúvidas quanto à eficácia do tratamento e seu perfil de segurança. O precoce diagnóstico desses quadros é essencial para a melhora na qualidade de vida destes pacientes e pode influenciar diretamente a evolução da doença renal. Dessa forma, a disponibilidade de uma equipe multiprofissional para o cuidado do paciente com doença renal mostra-se cada vez mais importante.