versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.2 São Paulo mar./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.04.005
A traqueostomia consiste em uma abertura cirúrgica da traqueia com a inserção de um cânula que possibilita uma troca respiratória direta com o ambiente externo1-4 É um dos procedimentos cirúrgicos mais antigos; foi descrita pela primeira vez em 100 d.C. por Asclepíades, na Grécia Antiga. Veio a ser usada com mais frequência na rotina médica em meados do século XIX, quando Armand Trousseau empregou a técnica para muitos pacientes com dispneia associada a difteria.1,2,4-9
Nas últimas décadas, a traqueostomia tem mudado no que se refere a suas indicações, suas complicações e ao perfil epidemiológico dos pacientes que se submetem a esse procedimento. Essas mudanças são atribuídas ao desenvolvimento de novas técnicas de cuidados intensivos, bem como a alterações na epidemiologia de doenças infecciosas, aumento nas taxas de sobrevida de recém-nascidos prematuros e de recém-nascidos com malformações congênitas.2,10-16
Esse procedimento é tecnicamente mais difícil em pacientes pediátricos se comparado com adultos, pois a traqueia das crianças é menor e de menor consistência; além disso, o campo cirúrgico é mais limitado. Além disso, alguns riscos para o procedimento estão diretamente ligados à idade e são mais específicos, como o parto prematuro, baixo peso ao nascimento, a duração da traqueostomia e comorbidades graves. Assim, esse grupo apresenta taxas de morbidade e de mortalidade mais elevadas do que os pacientes adultos.1,2,4,5,7,10,15,17,18
O objetivo deste estudo foi fazer uma revisão da literatura das últimas três décadas, a fim de traçar um perfil de complicações e das taxas de mortalidade de traqueostomias em crianças e também determinar se esse perfil apresentou mudanças nas últimas três décadas.
Uma revisão da literatura foi feita nas bases de dados do Cochrane, Latin America and Caribbean Health Sciences Literature (Lilacs), SciELO, National Library of Medicine (Medline Plus) e PubMed. Foram incluídos artigos publicados entre janeiro de 1985 e dezembro de 2014. Após os artigos serem lidos, uma revisão de referências bibliográficas dos artigos foi feita para identificar outros estudos potencialmente relevantes e estes foram buscados nas bases de dados.
Nas bases de dados do Medline e PubMed foram usados os termos MeSH em inglês "tracheotomy" e "tracheostomy"; eles foram associados a "complications", "child" e "mortality" como qualificadores. Enquanto isso, no SciELO, Lilacs e Cochrane, foram usadas as associações entre os termos "tracheostomy/tracheotomy", "complication", "mortality" e "pediatric/child". A busca foi limitada a artigos escritos em português, espanhol e inglês e para uma faixa até 18 anos.
Os artigos foram avaliados de forma independente por dois dos autores do estudo. Os artigos do tipo casos e séries de casos foram excluídos. Os artigos que não continham dados suficientes para avaliar complicações e mortalidade em crianças submetidas a traqueostomia também foram excluídos.
Os dados foram organizados em Excel® e analisados com o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS®), versão 21.0. Os dados de cada década foram comparados com os de outras décadas, utilizando o teste do qui-quadrado. O intervalo de confiança foi de 95% e os valores foram considerados significativos quando p < 0,05.
Foram identificados 3.797 artigos com os termos MeSH e as palavras-chave descritas no método. Foram selecionados os artigos que incluíram pacientes até 18 anos e que foram escritos em português, inglês ou espanhol, publicados entre janeiro de 1985 e dezembro 2014. Desta maneira, restaram 595 artigos. Cento e trinta e dois artigos foram excluídos por se tratarem de relato ou série de caso. Depois de mais uma avaliação da relevância por dois otorrinolaringologistas independentes, 547 artigos foram excluídos e 47 artigos permaneceram.1-47 A maioria dos trabalhos excluídos neste momento não tinha dados suficientes para avaliação. Dos 47 artigos, cinco estudos foram publicados entre 1985 e 1994, 15 entre 1995 e 2004 e 27 entre 2005 e 2014. A distribuição do número de artigos e o número total de pacientes por década são mostrados na tabela 1.
Tabela 1 Distribuição do numero de estudos e de pacientes submetidos à traqueostomia, por década: 1985 a 1994, 1995 a 2004 e 2005 a 2014
Década | Número de estudos | Número de pacientes |
---|---|---|
1985 a 1994 | 5 | 480 |
1995 a 2004 | 15 | 1.150 |
2005 a 2014 | 27 | 4.303 |
Total | 47 | 5.933 |
Quatro estudos consideraram apenas recém-nascidos prematuros e/ou gravemente abaixo do peso.19-22 Considerando o gênero, a traqueostomia foi realizada em maior número em pacientes do sexo masculino.1-16,18-38,40,42,43,45 Em outros artigos, o número de crianças menores de um ano em relação às outras faixas etárias variou de 4 a 78%. Dados sobre a mortalidade das crianças submetidas à traqueostomia estão detalhados na tabela 2.1-3,6-9,12-18,23,26-29,34,37-43
Tabela 2 Mortalidade em crianças que receberam uma traqueostomia entre 1985 e 2014
Autor | Ano de publicação | n | < 1 ano de idade n (%) | Homem n (%) | Mortalidade por traqueostomia n (%) | Mortalidade geral n (%) |
---|---|---|---|---|---|---|
Holscher et al.25 | 2014 | 91 | _ | 67 (73,6) | _ | 2 (2,2) |
Ogilvie et al.27 | 2014 | 231 | 111 (48,0) | 154 (66,7) | 5 (2,2) | 37 (16,0) |
Pérez-Ruiz et al.16 | 2012 | 249 | 150 (60,2) | 150 (60,2) | 8 (3,2) | 31 (12,4) |
Trey et al.8 | 2012 | 119 | 83 (69,7) | 70 (58,8) | 1 (0,8) | 25 (21,0) |
Wood et al.9 | 2012 | 1613 | 739 (45,8) | 932 (57,8) | _ | 90 (5,6) |
Atmaca et al.6 | 2011 | 54 | 26 (48,1) | 32 (59,3) | _ | 15 (27,8) |
Itamoto et al.5 | 2010 | 58 | _ | 33 (56,9) | 2 (3,4) | 2 (3,4) |
Al-Samri et al.14 | 2010 | 72 | _ | 43 (59,7) | 1 (1,4) | 11 (15,3) |
Adoga e Ma'na10 | 2010 | 46 | _ | 29 (63,0) | _ | 8 (17,4) |
Berry et al.34 | 2009 | 917 | 524 (57,1) | 541 (59,0) | 11 (1,2) | 71 (7,7) |
Gutiérrez-Gutiérrez et al.3 | 2009 | 50 | 2 (4,0) | 33 (66,0) | _ | 11 (22,0) |
Ramku et al.35 | 2009 | 30 | 20 (66,7) | _ | 6 (20,0) | |
Ozmen et al.1 | 2009 | 282 | 23 (8,2) | 181 (64,2) | 3 (1,1) | 56 (19,8) |
Karapinar et al.24 | 2008 | 31 | _ | 12 (38,7) | 1 (3,2) | 10 (32,3) |
Graf et al.36 | 2008 | 70 | _ | 43 (61,4) | _ | 9 (12,8) |
Corbett et al.17 | 2007 | 112 | 58 (51,8) | _ | 2 (1,8) | 22 (19,6) |
Parrilla et al.15 | 2007 | 38 | 19 (50,0) | 20 (52,6) | _ | 15 (39,5) |
Mahadevan et al.2 | 2007 | 122 | 81 (66,4) | 67 (54,9) | 2 (1,6) | 17 (14,0) |
Rozsasi et al.11 | 2005 | 24 | _ | 19 (79,2) | 1 (4,2) | 6 (25,0) |
Butnaru37 | 2005 | 46 | 16 (34,8) | 24 (52,2) | 1 (2,2) | 6 (13,0) |
Ang et al.7 | 2005 | 48 | 30 (62,5) | 29 (60,4) | _ | 8 (16,7) |
Solares et al.38 | 2004 | 94 | 60 (63,8) | 47 (50,0) | _ | 8 (8,5) |
Tantinikorn et al.18 | 2003 | 181 | 99 (54,7) | 108 (59,7) | 1 (0,55) | 24 (13,3) |
Midwinter et al.39 | 2002 | 143 | 93 (65,0) | 4 (2,8) | ||
Ilçe et al.26 | 2002 | 17 | 7 (41,2) | 13 (76,5) | 1 (5,9) | 10 (58,8) |
Rocha et al.33 | 2000 | 46 | _ | 35 (76,1) | _ | 6 (13,0) |
Wetmore et al.23 | 1999 | 373 | 292 (78,3) | 253 (67,8) | 2 (0,54) | 94 (25,2) |
Dubey et al.40 | 1999 | 40 | 13 (32,5) | 1 (2,5) | 10 (25,0) | |
Koltai41 | 1998 | 68 | 43 (63,2) | 36 (52,9) | _ | 7 (10,3) |
Donelly et al.12 | 1996 | 29 | 14 (48,3) | 15 (51,7) | _ | 6 (20,7) |
Shinkwin e Gibbin28 | 1996 | 56 | 40 (71,4) | 29 (51,8) | 1 (1,8) | 8 (14,3) |
Ward29 | 1995 | 103 | 64 (62,1) | 65 (63,1) | 3 (2,9) | 37 (35,9) |
Freezer et al.13 | 1990 | 142 | 70 (49,3) | 82 (57,7) | 2 (1,4) | 19 (13,4) |
Simma et al.42 | 1994 | 108 | 64 (59,3) | _ | 8 (7,4) | |
Zeitouni et al.43 | 1993 | 44 | 44 (100) | 2 (4,5) | ||
Puhakka et al.44 | 1992 | 33 | 13 (39,4) | _ | 5 (15,1) | |
Line45 | 1986 | 153 | 5 (3,3) | 34 (22,2) |
Nota: Traços representam “0”. Espaços em branco representam ausência de informações no artigo.
Quando as décadas foram consideradas individualmente, a frequência de crianças menores de um ano variou de 41,3% (1985-1994) a 63,0% (1995-2004), com um aumento estatisticamente significativo na última década em relação às outras décadas (p < 0,001).
Houve um aumento progressivo na frequência de crianças do sexo masculino submetidas a traqueostomia, com um aumento estatisticamente significativo entre as décadas avaliadas (tabela 3).
Tabela 3 Dados sobre gênero e idade (< 1 ano) em crianças submetidas à traqueostomia entre 1985 e 1994, 1995 e 2004 e 2005 e 2014
Década n (%) | Valor pa | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
1985-994 | 1995-2004 | 2005-2014 | 1985-1994 vs. 1995-2004 | 1985-1994 vs. 2005-2014 | 1995-2004 vs. 2005-2014 | ||
n = 480 | n = 1150 | n = 4303 | |||||
< 1 ano de idade | 198 (41,3) | 725 (63,0) | 1.862 (43,3) | < 0,001b | 0,396 | < 0,001b | |
Gênero masculino | 95 (19,8) | 601 (52,3) | 2.499 (58,1) | < 0,001b | < 0,001b | < 0,001b |
aTeste do qui-quadrado.
bp < 0,05.
As complicações pós-operatórias precoces e tardias foram avaliadas em conjunto. Excluindo-se os estudos que consideravam apenas recém-nascidos prematuros e/ou com baixo peso, as complicações mais comuns durante todo o período, em ordem decrescente de frequência, foram granuloma, infecção, obstrução da cânula e, em quarto lugar, decanulação acidental e fístula traqueocutânea pós-decanulação, como mostrado na tabela 4.
Tabela 4 Complicações em crianças que receberam uma traqueostomia entre 1985 e 1994, 1995 e 2004 e 2005 e 2014
Complicação | Década n (%) | Valor pa | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
1985-1994 | 1995-2004 | 2005-2014 | Total | 1985-1994 vs. 1995-2004 | 1985-1994 vs. 2005-2014 | 1995-2004 vs. 2005-2014 | |
n = 480 | n = 1150 | n = 4303 | n = 5933 | ||||
Obstrução da cânula | 20 (4,2) | 87 (7,6) | 132 (3,1) | 239 (4,0) | 0,012b | 0,193 | < 0,001b |
Decanulação acidental | 15 (3,1) | 60 (5,2) | 112 (2,6) | 187 (3,1) | 0,066 | 0,004b | < 0,001b |
Sangramento | 3 (0,6) | 5 (0,4) | 29 (0,7) | 37 (0,6) | 0,616 | 0,901 | 0,36 |
Enfisema subcutâneo | _ | 7 (0,6) | 8 (0,2) | 15 (0,2) | _ | _ | 0,015b |
Pneumotórax | 27 (5,6) | 15 (1,3) | 27 (0,6) | 69 (1,2) | < 0,001b | < 0,001b | 0,02b |
Pneumomediastino | 15 (3,1) | 11 (1,0) | 13 (0,3) | 39 (0,7) | 0,001b | < 0,001b | 0,003b |
Granuloma | 14 (2,9) | 212 (18,4) | 206 (4,8) | 432 (7,3) | < 0,001b | 0,063 | < 0,001b |
Traqueomalácia | 1 (0,2) | 7 (0,6) | 10 (0,2) | 18 (0,3) | 0,292 | 0,917 | 0,042b |
Infecção | 1 (0,2) | 122 (10,6) | 194 (4,5) | 317 (5,3) | < 0,001b | 0,453 | < 0,001b |
Colapso supra-estomal | _ | _ | 14 (0,3) | 14 (0,2) | _ | _ | _ |
Fístula traqueocutânea pós-decanulação | 13 (2,7) | 121 (10,5) | 53 (1,2) | 187 (3,1) | < 0,001b | 0,009b | < 0,001b |
Estenose | 12 (2,5) | 7 (0,6) | 60 (1,4) | 79 (1,3) | 0,001b | 0,059 | 0,032b |
Nota: Traços representam “0,” “não relatado” ou “análise estatística não possível”.
aTeste do qui-quadrado.
bp < 0,05.
As complicações mais comuns (granuloma, infecção, obstrução da cânula, decanulação acidental e fístula traqueocutânea pós-decanulação) ocorreram com maior frequência nos estudos publicados entre 1995 e 2004. Granuloma, infecção, fístula traqueocutânea e obstrução da cânula apresentaram uma diferença significativa nessa década em relação às demais (p < 0,05). A decanulação, entretanto, diferiu significativamente apenas entre 1995 e 2004 e 2005 e 2014 (p < 0,001). Houve uma redução significativa na terceira década em relação à primeira e segunda décadas (p = 0,004 e p < 0,001).
Traqueomalácia e enfisema subcutâneo também foram mais frequentes entre 1995 e 2004. Como mostrado na tabela 4, com diferenças estatisticamente significantes em relação à terceira década (p = 0,015 e p = 0,042, respectivamente).
Pneumotórax, pneumomediastino e estenose foram as complicações mais frequentes entre 1985 a 1994; a frequência de pneumotórax e pneumomediastino diferiu significativamente nessa década em relação às outras duas (p < 0,001 e p = 0,001). A frequência de estenose diferiu significativamente entre 1985 e 1994 e o período de 1995 a 2004 (p = 0,001).
Entre 2005 e 2014, sangramento e colapso estomal foram as complicações mais frequentes; no entanto, a frequência de sangramento não diferiu significativamente entre os períodos considerados (p = 0,616 entre a primeira e segunda décadas; p = 0,901 entre a primeira e terceira décadas; e p = 0,360 entre a segunda e terceira décadas). O colapso supra-estomal foi uma complicação rara, que ocorreu em 0,3% dos pacientes e esteve presente apenas de 2005 a 2014.
Dentre os estudos avaliados (com exceção daqueles que relataram apenas em recém-nascidos prematuros e/ou de baixo peso extremo), a mortalidade associada à traqueostomia variou de 0 a 5,9%,26 enquanto a mortalidade global variou de 2,2 a 59% (tabela 2).19-22,25,26 A mortalidade associada ao procedimento diminuiu de 2,1% entre 1985 e 1994 para 0,9% entre 2005 e 2014 (p = 0,012). Enquanto isso, a mortalidade global foi maior entre 1995 e 2004 do que nas outras décadas (p < 0,05). Os dados sobre a mortalidade associada a traqueostomia e mortalidade geral são descritos na tabela 5.
Tabela 5 Mortalidade em crianças que receberam uma traqueostomia entre 1985 e 1994, 1995 e 2004 e 2005 e 2014
Mortalidade | Década n (%) | Valor pa | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
1985-1994 | 1995-2004 | 2005-2014 | 1985-1994 vs. 1995-2004 | 1985-1994 vs. 2005-2014 | 1995-2004 vs. 2005-2014 | ||
n = 480 | n = 1150 | n = 4303 | |||||
Mortalidade associada à traqueostomia | 10 (2,1) | 13 (1,1) | 38 (0,9) | 0,137 | 0,012b | 0,439 | |
Mortalidade geral | 66 (13,8) | 210 (18,3) | 458 (10,6) | 0,027b | 0,039b | < 0,001b |
aTeste do qui-quadrado.
bp < 0,05.
Os detalhes dos estudos que consideraram apenas crianças prematuras e/ou com baixo peso são apresentados na tabela 6. A mortalidade global nesse grupo variou de 8,2 a 44,4%, enquanto no restante dos estudos, a mortalidade geral de crianças submetidas à traqueostomia variou de 2,2 a 59%. A mortalidade associada à traqueostomia não foi relatada nesse grupo.
Tabela 6 Taxas de mortalidade em crianças prematuras e/ou de extremo baixo peso que receberam uma traqueostomia entre 1985 e 2014
Ano de publicação | n | Mortalidade associada à traqueostomia n (%) | Mortalidade geral n (%) | |
---|---|---|---|---|
DeMauro et al.19 | 2014 | 304 | _ | 25 (8,2) |
Viswanathan et al.20 | 2013 | 9 | _ | 4 (44,4) |
Sidman et al.22 | 2006 | 78 | _ | 12 (15,4) |
Pereira et al.21 | 2004 | 55 | _ | 9 (16,4) |
Nota: Traços representam “0” ou “não relatado”.
O objetivo desta revisão foi avaliar a ocorrência de complicações e de mortalidade associadas à traqueostomia ao longo das últimas três décadas. Observou-se que muitas crianças menores de um ano que tinham sido submetidas à traqueostomia foram incluídas nesses estudos; as taxas dessa faixa etária variaram de 41,3 a 63,0%. Esse achado reflete a tendência de crianças progressivamente mais jovens a receberem esse procedimento, como foi observado em muitos estudos.6,10,15,23,27,39,46,47 Essa distribuição etária pode ser atribuída aos avanços nas técnicas de terapia intensiva, mudanças na epidemiologia das doenças infecciosas e no aumento das taxas de sobrevida de recém-nascidos prematuros e de recém-nascidos que nascem com defeitos congênitos.2,10-16 As traqueostomias foram predominantemente feitas em crianças do sexo masculino, talvez porque os meninos sejam mais suscetíveis a defeitos congênitos e adquiridos.10,44
A traqueostomia em crianças está associada a taxas mais altas de complicações do que a traqueostomia em adultos.1,2,4,5,7,10,15,17,18,24,25,28,29 As maiores taxas de pneumotórax e pneumomediastino ocorreram entre 1985 e 1994, com uma redução significativa nas duas décadas seguintes. Essas complicações ocorrem devido a danos na pleura durante o procedimento, uma vez que os ápices pleurais são encontrados em uma posição mais elevada em crianças do que em adultos. Elas podem estender-se para a porção inferior do pescoço, o que torna as complicações mais prováveis.30 A queda nessas complicações nos últimos anos pode ser explicada pela diminuição das traqueostomias feitas em pacientes com qualquer tipo de infecção das vias respiratórias, bem como pela maior frequência do procedimento a ser feito na sala de cirurgia e sob anestesia geral.31
De 1995 a 2005, a principal complicação observada foi granuloma seguido de infecção, fístula traqueocutânea e obstrução da cânula. Esses dados não são compatíveis com os estudos dessa década, que relatam que as complicações mais comuns são obstrução e decanulação.23,28,30 No entanto, essas complicações são consideradas mais importantes entre aquelas que precedem ou são mais altamente associadas à morte e o presente estudo não analisou a frequência de complicações pós-operatórias precoces e tardias separadamente, pois não havia distinção na literatura para possibilitar essa avaliação. Foi também por essa mesma razão que as causas da mortalidade diretamente associada à traqueostomia não foram avaliadas. A frequência de granuloma também foi considerada. Alguns autores argumentam que granuloma não deve ser considerado como complicação de traqueostomia, mas, em vez disso, um resultado esperado.27 No entanto, entre aqueles que o consideraram como uma complicação, o granuloma foi um dos mais comuns.1,2,4,8,14,26
Entre 2005 e 2014, observou-se que os granulomas eram a complicação mais comum, seguidos de infecção, obstrução da cânula e decanulação acidental. Um único estudo que avaliou uma população de 72 pacientes entre 1990 e 2007 representou 62 dos 206 casos de granuloma (30,1%) e 87 dos 194 casos de infecção (44,8%).14 Esse estudo definiu infecção como o aumento das secreções pela traqueostomia, o aumento da contagem de neutrófilos na secreção e/ou culturas positivas. Os autores defenderam o uso de medicação como tratamento nos casos em que era impossível distinguir entre colonização e infecção. Isso pode ter influenciado a ordem das complicações mais importantes dessa década. Na avaliação da literatura, a infecção aumentou significativamente na segunda década em relação à primeira e terceira décadas (p < 0,001). Foi a segunda complicação mais comum de 1995 a 2004, que representou 10,6% dos casos. É importante notar que, nesta revisão, os termos "infecção de ferida operatória", "infecção de estroma", "abscesso", "celulite", "traqueíte" e "pneumonia" foram considerados como um conjunto. No entanto, alguns autores enfatizam que é preciso haver uma distinção entre a infecção e a colonização no local da traqueostomia.30 As crianças traqueostomizadas por um período prolongado de tempo são mais frequentemente colonizadas por Pseudomonas aeruginosa e/ou Staphylococcus aureus, o que sugere que a colonização não requer tratamento, a menos que haja sinais de infecção. Infelizmente, essa distinção não foi possível neste trabalho, devido a dados insuficientes ou inadequados.
A obstrução da cânula foi mais frequente nos artigos publicados entre 1995 e 2004, em relação às outras duas décadas que se seguiram. No entanto, não houve diminuição significativa em relação à primeira ou terceira décadas (p = 0,193). Durante esse período de 30 anos, ficou, portanto, entre as quatro complicações mais comuns de traqueostomia quando as complicações pós-operatórias, tanto precoces como tardias, foram consideradas. A frequência de decanulação acidental diminuiu significativamente na terceira década em relação à primeira e segunda décadas (p = 0,004 e p < 0,001), embora ainda permaneça entre as cinco complicações mais comuns durante o período estudado. A obstrução da cânula é um problema comum e a sua elevada frequência em crianças menores está provavelmente associada ao pequeno diâmetro traqueal, a cânulas de traqueostomia pequenas, bem como à displasia broncopulmonar, a qual é, ela própria, associada a secreções brônquicas viscosas em recém-nascidos prematuros.15,32 Acredita-se que tanto a obstrução como a decanulação são complicações que pudessem ser evitadas com o cuidado adequado da cânula de traqueostomia.30 A administração contínua de ar umidificado deve ser feita até a primeira troca da cânula, a fim de evitar a sua obstrução. Além disso, toda a equipe envolvida no atendimento do paciente traqueostomizado deve ser treinada para saber como lidar com obstrução e decanulação acidental, assim como com as trocas de emergência da cânula e até mesmo RCP, a fim de evitar consequências catastróficas quando esses eventos ocorrem.
A estenose foi uma complicação que não diferiu significativamente quando o período de 1985 a 1994 foi comparado com o período de 2005 a 2014 (p = 0,059). Embora a técnica operatória tenha mudado ao longo dos anos, alguns autores relatam que há um debate na literatura sobre a formação de estenose traqueal, que depende da técnica usada; no entanto, não houve consenso.29-31 A maioria dos estudos não relata essa associação, apesar de estudos em animais a terem confirmado.31 Essa complicação deve ser considerada, mesmo em recém-nascidos com extremo baixo peso, e foi relatado que quanto maior a cânula de traqueostomia, mais comum é a estenose.20
As fístulas traqueocutâneas foram significativamente menos frequentes na terceira década em relação às duas primeiras; entre 2005 e 2014, elas estavam presentes em 1,2% dos casos. No entanto, eram mais frequentes durante a segunda década em estudo. Uma hipótese é a possibilidade de o uso prolongado de uma cânula de traqueostomia fazer com que o estroma diminua para um tamanho não funcional, embora não feche completamente; essa mudança leva à formação de uma fístula traqueocutânea e alguns autores consideram que elas possam ser mais comuns, depende da técnica usada para a traqueostomia.15,18,30 Um exemplo é a técnica "starplasty", que fixa o estroma à pele com suturas, a fim de reduzir os índices de pneumotórax e decanulação acidental, mas que muitas vezes requer uma intervenção posterior para corrigir a fístula, que já é esperada.38,41,46
Apenas quatro estudos voltados especificamente para recém-nascidos prematuros e/ou de extremo baixo peso que receberam traqueostomia foram selecionados da literatura dos últimos 30 anos. Assim, havia limitações para a avaliação desse grupo em termos de complicações e mortalidade dos pacientes. No entanto, alguns estudos têm observado que esse grupo é mais suscetível a taxas mais elevadas de ambas as complicações e mortalidade devido às condições presentes ao nascimento, que também contribuem para uma maior taxa de mortalidade associada ao procedimento cirúrgico.29
Vários estudos demonstraram que muitas complicações associadas à traqueostomia em crianças podem ser evitadas pelo uso de técnicas cirúrgicas específicas, de cânulas adequados e de manobras cuidadosas para manter a traqueostomia e remover cânulas.11,33,41,46
A mortalidade associada à traqueostomia é maior na faixa etária pediátrica do que entre os adultos;1,2,4,5,7,10,15,17,18,24,25,28 no entanto, a maioria das mortes pediátricas não está associada ao procedimento em si, mas a doenças subjacentes. A morbidade e a mortalidade dependem significativamente de quão bem informada e treinada está a equipe médica, os pais e os cuidadores dos pacientes.2,4,7,17 Além disso, foi encontrada uma associação entre índices mais baixos de complicações e morte com a feitura do procedimento por cirurgiões treinados no manejo de obstrução das vias respiratórias em crianças em hospitais de referência.4 Essa análise da literatura revelou que, entre os estudos que avaliaram todas as faixas etárias pediátricas, houve uma diminuição significativa na morbidade e mortalidade entre 1985 e 1994 e 2005 e 2014 (p = 0,012); a frequência caiu de 2,1 para 0,9%. Houve uma diferença significativa nas taxas de mortalidade entre cada década, com o maior número de mortes entre 1995 e 2004. Quando somente os artigos que analisaram exclusivamente recém-nascidos prematuros e/ou de extremo baixo peso foram considerados, um aumento significativo na mortalidade global foi encontrado nos dados de 2006, em relação aos de 2013 (p = 0,033), assim como uma diminuição significativa na mortalidade total nos dados de 2013 em relação aos de 2014.19-22 Nenhum desses estudos relatou que a mortalidade está diretamente associada à traqueostomia, embora a literatura relate taxas mais altas de morbidade e mortalidade nesse grupo de pacientes, bem como entre crianças menores de um ano.4,7,15,17,28,29,33
Nesta revisão da literatura, verificamos que as complicações e taxas de mortalidade da traqueostomia sofreram algumas mudanças ao longo das últimas três décadas. As complicações que anteriormente eram as mais frequentes incluíam pneumotórax e pneumomediastino; atualmente, essas complicações tornaram-se menos comuns. Enquanto isso, granuloma, infecção e obstrução da cânula são as complicações mais comumente vivenciadas por pacientes que receberam traqueostomia. A decanulação acidental diminuiu consideravelmente na última década em estudo. Nesse período, também observamos uma diminuição na taxa de mortalidade associada ao procedimento.