versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.3 São Paulo jul./set. 2015 Epub 01-Maio-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3021
Os transtornos do sono (TS) nos pacientes com doença de Alzheimer (DA) estão entre os distúrbios comportamentais que mais interferem na qualidade de vida do paciente e de seu cuidador. Além do maior risco de institucionalização, os TS podem causar repercussão negativa na cognição, funcionalidade e comportamento desses pacientes.( 1 , 2 ) Até 40% dos pacientes com DA apresentam algum TS ao longo do curso clínico da doença.( 3 )
Os fatores que contribuem para os TS no idoso com demência advêm das próprias alterações neuropatológicas observadas na DA, como a perda neuronal e a atrofia do núcleo supraquiasmático do hipotálamo, que interferem na organização do ciclo sono-vigília e na redução da atividade colinérgica, uma vez que a acetilcolina tem participação no sono REM.( 4 , 5 ) Ademais, a menor exposição à luz, a menor captação da luz e a dificuldade de compreensão das referências temporais no decorrer do dia também influenciam o sono dos idosos com DA.( 6 )
Na DA, os sintomas mais comuns relacionados aos TS consistem em perambulação, confusão e despertares noturnos, além de sonolência diurna e inversão do ciclo sono-vigília, havendo relatos de que o despertar noturno consiste no aspecto mais estressante para os cuidadores, e de que a sonolência diurna consiste na observação mais frequente.( 5 , 7 , 8 )
A literatura científica acerca dos TS vem crescendo nas últimas décadas. Entretanto, a maioria dos estudos é relacionada a intervenções não farmacológicas e poucos têm enfoque no tratamento medicamentoso. Em idosos, além do pequeno número de estudos, a maioria é realizada em instituição de longa permanência para idosos (ILPI). A rotina circunscrita e os cuidados padronizados realizados nesses ambientes são limitações que interferem na condução do estudo e podem impedir a extrapolação dos achados para toda a comunidade.( 9 )
Avaliar a efetividade do tratamento farmacológico e não farmacológico dos transtornos do sono em idosos com doença de Alzheimer que vivem na comunidade.
A busca dos artigos foi realizada no PubMed, LILACS, SciELO e na base de dados Cochrane até janeiro de 2014. Foram incluídos estudos observacionais e ensaios clínicos na língua portuguesa e inglesa. Os termos utilizados foram: “sleep disorder”, “insomnia”, “Alzheimerdisease”, “outpatient”, “dwelling patient”, “community patient” e “treatment”. Foram excluídos os estudos realizados exclusivamente em ILPI, aqueles que abordavam o TS dos cuidadores de pacientes com DA, os que analisaram o tratamento de causas secundárias de TS, os que incluíram apenas pacientes com comprometimento cognitivo leve e os que não abordaram o tratamento dos TS.
Dos 73 estudos identificados (já excluídos os estudos repetidos em diferentes base de dados), foram selecionados 18 artigos. Ao todo, foram avaliados 930 pacientes com DA e TS que viviam na comunidade. Cinco estudos avaliaram a terapia não farmacológica (higiene do sono e fitoterapia com luz intensa);( 10 - 14 ) quanto ao tratamento farmacológico, três avaliaram a efetividade da melatonina,( 15 - 17 ) dois dos antipsicóticos,( 18 , 19 ) cinco dos inibidores de acetilcolinesterásicos (IAch)( 20 - 24 ) e três dos antidepressivos.( 25 - 27 )
Em 2003, foram publicados os primeiros resultados do projetoNighttime Insomnia Treatment and Education for Alzheimer’s Disease (NITEAD). ( 10 ) Trata-se de um estudo randomizado e controlado, que avaliou a adesão ao tratamento não farmacológico quando o cuidador era treinado para aplicar a higiene do sono e o exercício físico diário por 30 minutos. O grupo controle recebeu orientações gerais sobre o sono. Os cuidadores treinados foram mais efetivos em mudar os hábitos dos pacientes com DA (p<0,01). Um ano após, as medidas do NITEAD foram aplicadas em três pacientes e foi realizada avaliação com actigrafia. Após 2 meses, foi observada melhora tanto na eficiência do sono (com ganho médio de 8%), quanto na redução dos despertares noturnos e na sonolência diurna.( 11 )
Em 2005, McCurry et al. publicaram os resultados do ensaio clínico randomizado e controlado para investigar o impacto de intervenções não farmacológicas do NITEAD somadas à exposição à luz intensa.( 12 ) Os pacientes do grupo intervenção foram submetidos à terapia com luz na potência de 2.500lux (equivalente a oito lâmpadas de 55 watts) pelo período de 1 hora, aplicadas 2 horas antes do início do sono, além terem recebido seis visitas domiciliares de uma gerontóloga (psicóloga) com experiência em terapia comportamental para tratamento de TS. Pela avaliação actigráfica, aqueles que receberam a intervenção acordaram menos vezes à noite e permaneceram acordados por menor período(p<0,05). Seis anos após, McCurry et al. compararam as intervenções de forma isolada em um ensaio clínico randomizado: em um grupo o exercício físico diário por 30 minutos, no outro a terapia com luz (2.500lux) por 1 hora (2 horas antes do sono), e no terceiro grupo a combinação das duas medidas. Os três grupos permaneceram acordados por menos tempo à noite (média de 37 minutos) e obtiveram melhora média de 5% na eficiência do sono após 6 meses de intervenção.( 13 )
Colenda et al. não obtiveram os mesmos resultados de McCurry et al. ao aplicarem fototerapia com luz intensa (na potência de 2.000lux) em cinco pacientes com DA e TS por 2 horas pela manhã por 10 dias consecutivos. Não foi observado alteração em qualquer parâmetro do sono.( 14 )
Três estudos abordaram o uso da melatonina para o tratamento de TS em idosos com DA.( 15 - 17 ) O primeiro, um estudo retrospectivo, avaliou o uso de 9mg de melatonina por 22 a 35 meses em 14 pacientes e evidenciou melhora da qualidade do sono por meio do diário do sono e de entrevista estruturada.( 15 ) O segundo, um ensaio clínico randomizado, comparou o efeito do uso de 6mg de melatonina por 7 semanas ao do placebo e avaliou parâmetros do sono por meio da actigrafia. Nesse estudo, foram incluídos quatro pacientes com demência vascular e dez institucionalizados. Nenhum benefício do uso da melatonina foi comprovado, tendo sido comparados a média de tempo acordado à noite (p=0,18), o número de despertares noturnos (p=0,75) e a eficiência do sono (p=0,24).( 16 ) O mesmo resultado foi encontrado pelo estudo randomizado controlado por placebo de Singer et al. usaram melatonina nas doses de 2,5mg, 5mg e 10mg por 8 semanas e não evidenciaram diferenças significativas (p>0,05) em quaisquer dos parâmetros do sono, avaliados por meio da actigrafia.( 17 ) Nesse terceiro estudo, foram incluídos também idosos institucionalizados.
Em relação aos antipsicóticos, um estudo avaliou a ziprasidona( 18 ) e o outro a risperidona, a olanzapina e a quetiapina( 19 ) em idosos com DA e distúrbio comportamental. O primeiro, realizado no Brasil, consistiu em um ensaio aberto com a ziprasidona (na dose de 40 a 160mg), tendo sido observada melhora do sono por meio do Inventário Neuropsiquiátrico (NPI), com p=0,01. Metade da amostra era de idosos institucionalizados.( 18 ) O outro foi um estudo retrospectivo da risperidona, olanzapina e quetiapina, em que a avaliação do sono consistiu em desfecho secundário. Os três grupos, que usaram risperidona, olanzapina e quetiapina, obtiveram melhora do escore na NPI, sem diferenças entre eles (p=0,002).( 19 )
Cinco estudos com IAch foram realizados em pacientes idosos não institucionalizados com TS e DA.( 20 - 24 ) A galantamina foi avaliada em dois ensaios clinicos randomizados.( 20 , 21 ) O primeiro consistiu em um ensaio clínico randomizado, controlado com placebo, que não evidenciou benefício de sua utilização nos TS, conforme avaliação pelo NPI (p=0,51).( 20 ) No segundo, a galantamina foi comparada ao donepezil por actigrafia e não foi encontrada associação com a melhora das medidas de sono.( 21 ) Um terceiro estudo, que era transversal, comparou o uso de galantamina, rivastigmina e donepezil por meio de polissonografia, mostrando que todos aumentaram o sono REM, reduziram o estágio I do sono NREM (p=0,01) e aumentaram o estágio 2 do sono NREM (p=0,03). Porém, o grupo dos pacientes tratados com donepezil apresentou estágio 1 do sono NREM reduzido quando comparado ao grupo tratado com galantamina (p= 0,01), enquanto o estágio 2 do sono NREM foi aumentado (p=0,04) quando comparado ao conjunto que não utilizava IAch, sugerindo um benefício do uso do donepezil.( 22 ) Moraes et al., em um ensaio clínico randomizado e controlado com placebo sobre o uso do donepezil em pacientes com DA e TS, evidenciaram aumento da duração do sono REM no grupo tratado com donepezil, por meio de polissonografia (p<0,05), confirmando o resultado do estudo anterior.( 23 ) Mizuno et al., em um estudo aberto com 5mg de donepezil, também encontraram benefício do uso do donepezil nesses pacientes. A administração de donepezil aumentou a porcentagem do sono REM (p<0,01), melhorou a eficiência do sono (p<0,01) e reduziu a latência do sono (p<0,01).( 24 )
Camargos et al., em um estudo retrospectivo, evidenciaram boa efetividade e tolerabilidade do uso da trazodona na dose de 50 a 100mg em dois terços dos pacientes com DA e TS atendidos em ambulatório de geriatria. O uso de 15 a 30mg de mirtazapina também demonstrou efetividade em 85% dos pacientes que utlizaram esse fármaco.( 25 ) Para confirmar os achados de estudos observacionais, o mesmo grupo realizou estudo randomizado, duplo-cego, controlado com placebo, utilizando a trazodona 50mg no tratamento de TS em pacientes com DA. Por meio de análises actimétricas, observou-se que os pacientes que usaram trazodona apresentaram melhora nos parâmetros de sono em comparação ao grupo tratado com placebo, com um ganho médio de 40 minutos de sono noturno (p=0,045) e com uma porcentagem de sono noturno 8,5% superior, em média (p=0,013). O uso de trazodona ou placebo não ocasionou aumento do sono diurno (p=0,623).( 26 ) O uso da mirtazapina foi descrito em relato de três casos de pacientes ambulatorias com TS e DA, sendo observada a melhora dos sintomas dos TS na dose de 15 a 30mg, por meio de avaliação subjetiva.( 27 )
Não foi encontrada evidência para utilização de benzodiazepínicos e nem outros hipnóticos em idosos com DA e TS.
Os estudos sobre o tratamento dos TS em pacientes com DA e não institucionalizados ainda são escassos, apesar das várias consequências geradas por esses transtornos e de sua elevada prevalência nesta população.
A higiene do sono é uma terapia comportamental e as evidências sugerem que seu sucesso depende da experiência individual de quem a está implementando, bem como da boa aderência ao tratamento.( 20 ) Em idosos com demência, a instituição dessas medidas depende de um cuidador e, na prática clínica, observamos baixa aderência dos cuidadores às medidas de higiene do sono. É frequente também a má percepção do sono pelos cuidadores.( 8 ) McCurry et al. observaram boa aderência à higiene do sono quando o cuidador recebeu assistência ativa para implementar o programa, e não apenas instruções escritas, como habitualmente é feito.( 12 ) A higiene do sono, associada a terapia com luz intensa, mostrou melhora dos sintomas em único ensaio clinico realizado em pacientes domiciliares.( 13 ) Considerando que medidas não farmacológicas apresentam-se normalmente como estratégias de baixo risco e de baixo custo, recomenda-se que sejam aplicadas em pacientes com DA e TS. A terapia com luz intensa, quando realizava, deve ser aplicada por 1 hora a 2.500lux por hora, 2 horas antes de dormir. Em ILPI, vários ensaios clínicos avaliaram a terapia com luz intensa, porém com resultados contraditórios e evidência insuficiente para recomendá-la.( 28 )
Tendo em vista que o efeito da melatonina parece controlar o ciclo sono-vigília e também regular o ritmo circadiano em humanos, seu uso tem recebido atenção nos últimos 10 anos como possibilidade terapêutica para os TS em idosos e pessoas com DA.( 29 ) No entanto, as revisões sistemáticas e meta-análises sobre o assunto apresentam resultados heterogêneos, mesmo quando considerados apenas adultos jovens e não demenciados.( 30 ) O mesmo ocorreu nos estudos analisados nesta revisão, especialmente no ensaio de Singer et al., que apresentou boa qualidade metodológica e resultados negativos.( 17 ) A ausência de resposta pelo uso da melatonina pode ser explicada, em parte, pela deficiência de receptores de melatonina MT1 no sistema nervoso central dos pacientes com doença neurodegenerativa.( 31 ) Outra explicação seria a inclusão tanto de indivíduos com o perfil normal de secreção de melatonina, quanto de indivíduos com alteração na secreção de melatonina, uma vez que apenas indivíduos com níveis reduzidos do hormônio parecem se beneficiar da terapia de reposição.( 32 ) A não caracterização do perfil metabólico basal dos pacientes e a não diferenciação entre idosos da comunidade e os residentes em ILPI podem ter interferido na análise dos resultados dos três estudos disponíveis.( 15 - 17 ) Desse modo, não há evidência suficiente para indicar o uso da melatonina em TS de pacientes com DA que vivem na comunidade.
Os antipsicóticos são indicados para tratar os distúrbios comportamentais da DA e, em decorrência do bloqueio do receptor H1 histamínico, induzem à sonolência e à sedação, efeito muitas vezes utilizado para induzir ao sono pacientes com DA.( 33 ) Os dois estudos incluídos nesta revisão são pouco robustos do ponto de vista metodológico.( 18 , 19 ) Um deles consiste em um estudo aberto que também incluiu idosos de ILPI em suas análises, não sendo utilizado método objetivo para avaliação do sono.( 18 ) O outro teve delineamento retrospectivo, o que acentua a possibilidade de viéses e aspectos não controlados.( 19 ) O uso crônico de antipsicóticos em idosos está associado a reações adversas (cinco vezes maior que em jovens) e a risco de evento cerebrovascular e morte.( 34 ) Devido aos efeitos adversos, essa classe de medicamentos deve ser reservada apenas aos pacientes com sintomas comportamentais graves e limitantes. Não há evidência suficiente para o uso dos antipsicóticos no tratamento dos TS em idosos com DA não institucionalizados.
IAch, conjuntamente da memantina, consistem nas únicas opções farmacológicas para o tratamento da DA. Apesar do efeito modesto que os IAch exercem na cognição e na funcionalidade dos pacientes, essa classe pode ajudar no controle dos distúrbios comportamentais. No entanto, dentre os três IACh existentes (donepezil, rivastigmina e galantamina), apenas o donepezil parece modificar a arquitetura do sono e atuar favoravelmente sobre os sintomas dos TS.( 20 - 24 )
Apesar da prescrição dos antidepressivos com efeito hipnótico ser frequente na prática clínica, existe um único ensaio clínico controlado com placebo, sobre a trazodona, nos TS. O uso da trazodona, na dose de 25 a 100mg, constitui uma opção terapêutica para portadores de DA com TS que vivem na comunidade. A ação da trazodona como antagonista dos receptores 5HT2 e histaminérgicos promove um aumento no sono de ondas lentas em idosos deprimidos com insônia.( 35 ) A mirtazapina pode ser outra opção de fármaco antidepressivo utilizado nessa população, por também possuir efeito antagonista dos receptores 5HT2 e histaminérgicos, porém ainda sem evidência suficiente para uso em TS de pacientes com DA.( 36 )
Os benzodiazepínicos são muito utilizados na prática clínica, porém podem aumentar o risco de quedas, causar sedação diurna, contribuir para a piora cognitiva e alterar a arquitetura do sono em idosos.( 37 , 38 ) Esses efeitos estão associados principalmente àqueles fármacos com maior meia-vida e com a presença de metabólitos ativos. A nova geração de hipnóticos não benzodiazepínicos, os denominados compostos Z, como o zolpidem e zopiclone, também são agonistas dos receptores GABA, mas agem de forma mais seletiva no sistema nervoso central. Vários estudos têm mostrado a segurança e a efetividade do uso crônico (até 12 meses) desses fármacos no idoso, mas nenhum estudo no idoso com demência.( 38 )
Transtornos do sono são comuns em pacientes com DA. Apesar da alta prevalência, existe pouca evidência quanto à efetividade do tratamento dos TS nessa população, particularmente em idosos em comunidade. São sugeridas a aplicação da higiene do sono pelo treinamento dos cuidadores e aplicação de terapia com luz brilhante nos pacientes, ambas abordagens recomendadas devido ao baixo risco, quando comparadas à terapêutica farmacológica. Dentre os fármacos de possível utilização, trazodona figura como o que apresenta melhor evidência de eficácia no tratamento dos TS em pacientes com DA em comunidade. Mais estudos sobre as estratégias farmacológicas e não farmacológicas aqui revisadas ou outras são desejáveis, desde que embasadas em bom delineamento, variáveis relevantes e poder analítico satisfatório.