versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.79 no.5 São Paulo sept./out. 2013
http://dx.doi.org/10.5935/1808-8694.20130101
A laringomalácia é a anomalia congênita da laringe mais frequente, sendo responsável por cerca de 60% a 75% dos casos de estridor congênito1 - 3. Embora sua etiopatogenia não esteja completamente elucidada, existe um colapso dos tecidos supraglóticos durante a inspiração4 , 5, gerando um estridor inspiratório de alta frequência, exacerbado na posição supina, durante a alimentação, agitação e choro6 - 8. Geralmente, este estridor surge nas duas primeiras semanas de vida, apresentando pico de incidência em torno de 6 meses, com resolução espontânea em cerca de 90% dos casos até o segundo ano de vida9 , 10. Apesar da laringomalácia apresentar um curso benigno e autolimitado, 10% dos casos necessitam de intervenção, a fim de aliviar a obstrução respiratória10 , 11.
No passado, a traqueostomia foi considerada a opção mais segura de manutenção da via aérea; no entanto, tornou-se um método obsoleto, em especial, nos últimos 20 anos, com o surgimento das técnicas endoscópicas minimamente invasivas. Apesar de alguns autores advogarem a hiomandibulopexia como forma de tratamento para a laringomalácia grave, a maioria das operações realizadas atualmente compreendem procedimentos endoscópicos na região supraglótica, as chamadas supraglotoplastias11 - 13.
Essas técnicas podem ser subdivididas de acordo com a região anatômica abordada. Denominamos ariepiglotoplastia quando a mucosa da prega ariepiglótica é incisada; da mesma maneira, denominamos aritenoidoplastia e epiglotoplastia, respectivamente, quando as mucosas supra-aritenoídeas e epiglótica são ressecadas. Outras variantes descritas são a epiglotopexia, que corresponde à fixação da face lingual da epiglote à base da língua, e a epiglotectomia, que corresponde à ressecção da cartilagem epiglote14.
A definição dos casos de laringomalácia grave se baseia nos seguintes critérios clínicos: apneia, cianose, insuficiência ventilatória, cor pulmonale, dificuldade de alimentação, baixo desenvolvimento pôndero-estatural e refluxo gastroesofágico incontrolável são indicadores de gravidade, sendo critérios de intervenção cirúrgica10 , 13 , 15 , 16.
O objetivo deste estudo é descrever a experiência adquirida pelos autores no tratamento cirúrgico dos pacientes com laringomalácia grave avaliados na UTI pediátrica de hospital terciário.
Estudo de coorte histórica longitudinal, com revisão de prontuários e registro cirúrgico em vídeo de 11 pacientes com laringomalácia grave, submetidos à supraglotoplastia entre janeiro de 2003 a abril de 2012.
Os prontuários e a documentação em vídeo dos procedimentos foram obtidos no serviço de arquivo médico hospitalar. Foram avaliados dados referentes à idade, gênero, sintomas, doenças associadas, técnica cirúrgica adotada, tempo de extubação, complicações cirúrgicas, tempo de internação e evolução clínica. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o número 151.689.
Os 11 casos avaliados foram de laringomalácia grave, sendo nove (81,8%) pacientes do sexo masculino e dois (18,2%) do sexo feminino. Todas as crianças do estudo apresentavam estridor e desconforto respiratório, motivo principal da internação hospitalar, sendo avaliadas inicialmente em unidade de terapia intensiva.
O momento de intervenção cirúrgica variou de 1 a 12 meses de idade. Todos os pacientes foram submetidos à microlaringoscopia de suspensão, sendo realizada a supraglotoplastia, sob anestesia geral e intubação orotraqueal (Figuras 1 e 2 do caso número 3).
Figura 1 Aspecto intraoperatório de uma criança de 3 meses com laringomalácia, detalhe do encurtamento da prega ariepiglótica.
No pós-operatório, todos os pacientes foram monitorados em unidade de terapia intensiva. Cinco pacientes foram extubados após um período de 48 horas, quatro no pós-operatório imediato e dois casos apresentaram extubação após 3 e 9 dias, respectivamente.
Em apenas um dos pacientes (9,1%) submetido à ariepiglotoplastia a frio e extubado no pós-operatório imediato, houve recorrência da obstrução respiratória, sendo necessária nova abordagem cirúrgica, empregando-se desta vez o laser de CO2.
Não foram observados casos de complicações cirúrgicas. Todos os pacientes apresentaram melhora significativa do estridor e desconforto respiratório. Os dados como: idade, sexo, sinais/sintomas, afecções associadas, tratamento cirúrgico, tempo de extubação, tempo de internação e evolução clínica estão descritos na Tabela 1.
Tabela 1 Resultados.
Casos | Idade | Sexo | Sinais/sintomas | Afecções associadas | Tratamento cirúrgico | Extubação | Tempo de internação | Evolução clínica |
1 | 3 meses | M | Estridor, dispneia, cianose | Encefalopatia hipóxico isquêmica, insuficiência renal, displasia broncopulmonar | Ariepiglotoplastia bilateral com laser de CO2 e vaporização da face lingual da epiglote | 48h | 34 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
2 | 2 meses | M | Estridor, dispneia, cianose | Não | Ariepiglotoplastia bilateral com laser de CO2 | Pós-operatório imediato | 1 dia | Melhora progressiva dos sintomas |
3 | 3 meses | F | Estridor, retração de fúrcula, dispneia, cianose | Encefalopatia hipóxica isquêmica | Ariepiglotoplastia bilateral com laser de CO2 | 48h | 7 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
4 | 1 mês | M | Cianose, apneia, ganho ponderal insuficiente | Doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) | Ariepiglotoplastia bilateral a frio + epiglotoplastia e remoção de mucosa aritenoidea redundante com laser de CO2 | 48h | 35 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
5 | 2 meses | M | Dispneia, broncoespasmo | Não | 1 - Ariepiglotoplastia bilateral a frio; 2 - Ariepiglotoplastia bilateral com laser CO2 | Pós-operatório imediato. Reintubação após 3 dias por desconforto respiratório | 100 dias | Necessidade de reintervenção cirúrgica e melhora progressiva dos sintomas |
6 | 2 meses | M | Estridor, retração de fúrcula, tiragem intercostal | Síndrome de Down, DRGE | Ariepiglotoplastia bilateral a frio | Pós-operatório imediato | 20 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
7 | 4 meses | M | Disfagia, estridor, retração de fúrcula, tiragem intercostal | Comunicação interatrial | Ariepiglotoplastia bilateral a frio | 48h | 31 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
8 | 10 meses | M | Estridor, broncoespasmo | Nenhuma | Ariepiglotoplastia bilateral a frio | Pós-operatório imediato | 12 dias | Melhora significativa dos sintomas |
9 | 12 meses | F | Desconforto respiratório | Nenhuma | Ariepiglotoplastia bilateral a frio | 72h | 20 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
10 | 8 meses | M | Disfagia | DRGE | Ariepiglotoplastia bilateral e epiglotoplastia com laser de CO2 | 9 dias | 35 dias | Microaspiração |
11 | 3 meses | M | Estridor, insuficiência respiratória | Nenhuma | Ariepiglotoplastia bilateral e epiglotoplastia com laser de CO2 | 48h | 23 dias | Melhora progressiva dos sintomas |
Em concordância com a literatura médica, houve predominância dos casos de laringomalácia em pacientes do sexo masculino2 , 17. O estridor inspiratório foi considerado o sintoma mais importante da doença, sendo observado em todos os pacientes1 , 6.
Na classificação pré-operatória da laringomalácia, nos baseamos no quadro clínico, ou seja, na gravidade da doença e não na classificação anatômica apresentada por Holinger & Konior18. A maioria dos autores indica o procedimento nos casos de laringomalácia grave1 , 2. Da mesma maneira, indicamos o procedimento cirúrgico após um conjunto de fatores, incluindo a dificuldade de desenvolvimento, de alimentação, presença de refluxo gastroesofágico importante e, sobretudo, pelas manifestações decorrentes da obstrução ventilatória.
Embora os resultados apontados na literatura sejam estatisticamente semelhantes com relação ao uso do laser de CO2 e a técnica a frio19, em nossa experiência o laser de CO2 oferece menor risco de sangramento intraoperatório e edema pós-operatório nos casos de maior ressecção na área mucosa, como ocorre nas epiglotoplastias e aritenoidoplastias. Em todos os nossos pacientes, o resultado clínico foi favorável, independentemente da técnica e instrumental adotado. Destacamos ainda que não possuímos experiência no tratamento cirúrgico da laringomalácia por meio do laser de potássio-titânio-fosfato (KTP)20 ou microdebridador19, tecnologias sugeridas por alguns autores.
O primeiro estudo a analisar sistematicamente a supraglotoplastia unilateral foi publicado em 1995 por Kelly & Gray21. Os autores obtiveram uma taxa de sucesso cirúrgico em 94% dos casos sem complicações maiores em um estudo envolvendo 18 pacientes. Apenas três pacientes necessitaram de abordagem da prega ariepiglótica bilateral. Loke et al.19 realizaram a técnica bilateralmente em 33 pacientes, com a resolução completa do estridor em 22 casos (68,7%), parcial em sete pacientes (21,8%), reabordagem cirúrgica em dois pacientes e um paciente portador de múltiplas malformações foi submetido à traqueostomia. Considerando a taxa de 19% a 45% de revisão cirúrgica descrita na literatura4, com um percentual ainda mais elevado nos casos de supraglotoplastia unilateral8, adotamos a ariepiglotoplastia bilateral como procedimento de escolha em nossa instituição. Desta maneira, a epiglotoplastia e aritenoidoplastia ficam reservadas como método complementar à ariepiglotoplastia, quando essa de maneira isolada não é suficiente para a melhora da obstrução supraglótica.
As complicações das supraglotoplastias incluem sangramento, infecção, edema, aspiração, disfagia, estenose supraglótica, formação de sinéquia, insuficiência respiratória e óbito2 , 4 , 14 , 22. Denoyelle et al.5 reportaram um índice de complicação de 7,4% em 136 pacientes submetidos à supraglotoplastia bilateral, sendo que cinco pacientes desenvolveram estenose supraglótica. Embora esse risco tenha sido aventado, trabalhos atuais apontam, como principal fator de risco para a ocorrência de complicações, a ressecção excessiva de tecidos laríngeos e não a bilateralidade da ariepiglotoplastia23. Nenhuma complicação maior foi descrita em nosso estudo.
Schroeder et al.24 alertam que o risco de aspiração líquida durante a fase faríngea da deglutição é mais comum em pacientes submetidos à supraglotoplastia com laser de CO2, sendo o principal fator de risco a presença de aspiração pré-operatória. Em nosso estudo, apenas um paciente submetido à ariepiglotoplastia com epiglotoplastia apresentou quadro transitório de aspiração, com melhora após medida conservadora.
Em revisão de 84 casos, O'Donnell et al.25 concluíram que a maioria dos pacientes submetidos à ariepiglotoplastia para tratamento de laringomalácia encontram-se aptos para retornar ao domicílio após pernoite hospitalar. Não adotamos esta recomendação, acreditando ser prudente o seguimento dos pacientes em unidade de terapia intensiva por um período mínimo de 24 horas, mesmo em casos de extubação logo ao término da cirurgia. Isso possibilita maior suporte em eventuais casos de obstrução da via respiratória e menor ansiedade por parte dos familiares.
Toynton et al.11 reportaram uma incidência de 47% e Friedman et al.26 incidência de 65% de lesões sincrônicas de via aérea, especialmente em pacientes com laringomalácia grave submetidos à supraglotoplastia, sendo esta uma das possíveis causas de falência ao tratamento. Apesar desse índice ser bastante considerável, não generalizamos o uso da broncoscopia como forma diagnóstica, sendo um exame de exceção. Nosso diagnóstico está fundamentado nos achados clínicos e nasofibrolaringoscópicos. Não foram observados casos de lesões sincrônicas em nossos pacientes.
Finalmente, o diagnóstico da laringomalácia não é comumente observado na população geral, ficando restrito, na maioria das vezes, ao nível terciário de atendimento11, com resolução espontânea na maioria dos casos27 - 30. A taxa de sucesso da supraglotoplastia descrita na literatura varia de 38% a 100%4. Em nossa casuística, a melhora clínica significativa de todos pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico garantiu uma taxa de sucesso em 100% dos casos.
A supraglotoplastia mostrou-se um procedimento eficaz no tratamento da obstrução respiratória, aumentando o lúmen da laringe. Devido a sua alta resolubilidade e baixa taxa de complicação, mostra-se um procedimento seguro no tratamento das crianças portadoras de laringomalácia grave, garantindo a melhora clínica dos pacientes.