versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.13 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/jvb.2014.007
As fístulas arteriovenosas (FAV) adquiridas têm como causa mais comum a rotura de aneurismas ateroscleróticos.1 Os traumas penetrantes, incluindo lesões iatrogênicas, são responsáveis por menos de 20% dessas FAV.2 Casos de FAV com alto débito, principalmente com diagnóstico tardio, podem se apresentar com sintomas de insuficiência cardíaca congestiva.
Paciente do sexo feminino, 34 anos, sob acompanhamento cardiológico por dispneia progressiva havia dois anos. Apresentava ortopneia, dispneia aos mínimos esforços e relatava frequentes internações hospitalares por descompensação respiratória. Referia também inapetência, fraqueza e perda de 40 kg no último ano. Relatava colecistectomia videolaparoscópica havia cinco anos. Ao exame físico, apresentava regular estado geral, emagrecimento. Ausculta com sopro sistólico panfocal e diminuição de murmúrio vesicular em base pulmonar bilateralmente. O exame abdominal mostrava ascite, hérnia umbilical e refluxo hepatojugular com fígado a quatro centímetros do rebordo costal direito. Adicionalmente, também apresentava edema de membros inferiores e turgência jugular a 45 graus.
Foi submetida ao exame de ecocardiograma, que evidenciou fração de ejeção de 61%, dilatação de veia cava (36 mm, sem variação respiratória), hipertensão pulmonar (pressão sistólica de artéria pulmonar - PSAP - 47 mmHg), insuficiência mitral leve, esclerose aórtica global com insuficiência leve e aumento global de câmaras cardíacas. A ressonância magnética revelou aumento global das câmaras cardíacas, sinais indiretos de hipertensão pulmonar, derrame pleural bilateral e pericardite sem sinais de constrição, além de ausência de trombos intracavitários. Ultrassonografia de abdômen demonstrou ascite moderada/acentuada, ectasia das veias hepáticas e veia cava inferior com 3,9 cm de diâmetro, além de hepatoesplenomegalia. O cateterismo pulmonar evidenciou PSAP de 54mmHg e, durante o procedimento, foi identificado frêmito em região inguinal direita e fossa ilíaca direita.
Diante disso, a paciente foi encaminhada para cirurgia vascular.
A investigação pela cirurgia vascular iniciou-se através de uma angiotomografia que evidenciou uma FAV entre artéria ilíaca comum direita (AICD) e veia ilíaca comum direita (VICD) próxima à desembocadura na cava, além de dilatação da veia cava inferior (Figura 1A, B, C), derrame pleural bilateral, ascite e hepatoesplenomegalia, já diagnosticados em exames anteriores. A etiologia da FAV foi considerada como secundária à lesão iatrogênica na colocação do trocater na cirurgia videolaparoscópica prévia.
Figura 1 A- Angiotomografia pré-operatória: presença de FAV entre AICD e VICD com contrastação na fase arterial da veia cava e das veias ilíacas que se encontram dilatadas. AICD proximal - diam=1,008 cm; AICD distal - diam=0,886 cm, Diam=diâmetro; cm=centímetro; B- Corte axial comparando diâmetros da cava e da aorta. Diam Cava=5,093 cm×6,507 cm; C- Recontrução 3D da angiotomografia.
A correção da FAV foi realizada por técnica endovascular, através do implante de uma endoprótese de 13×13×80 mm na AICD por dissecção de artéria femoral comum direita (Figura 2A, B, C). Houve desaparecimento do frêmito no pós-operatório imediato e a paciente foi mantida com anticoagulação plena para a prevenção de trombose no sistema venoso ectasiado. Devido à anticoagulação, apresentou hematoma na região inguinal direita manejado clinicamente, sem necessidade de intervenção. Evoluiu com melhora progressiva da dispneia e da ascite.
Figura 2 Arteriografia: A- Pré-operatória com contrastação de veia cava e veias ilíacas na fase arterial; B- Pós-operatório imediato com ausência de FAV; C- Endoprótese em AICD.
No sétimo dia de pós-operatório, apresentou um quadro compatível com hérnia umbilical encarcerada, sendo submetida à correção cirúrgica, sem intercorrências. Recebeu alta no nono dia de pós-operatório, em anticoagulação com Rivaroxabana.
No seguimento, após um mês da cirurgia, a paciente apresentava-se eupneica, com remissão completa da ascite. Após dois meses, o ecocardiograma demonstrou-se normal, com PSAP de 25 mmHg, e a ultrassonografia doppler revelou perviedade da endoprótese e ausência de FAV.
A maioria das FAV adquiridas, sem fins terapêuticos, ocorre devido à rotura de aneurismas ateroscleróticos para o sistema venoso adjacente, sendo este um evento raro (3 a 4% de todos os aneurismas rotos). Outras causas de FAV incluem aneurismas sifilíticos, micóticos ou secundários a Síndrome de Marfan, Síndrome de Ehlers-Danlos e Arterite de Takayasu. Lesões vasculares após cirurgias de hérnia de disco ou secundárias a traumas abdominais penetrantes ou, mais raramente, contusos, também são causas descritas1. Estas lesões podem ter diagnóstico tardio, apresentando-se como um quadro de congestão venosa nos membros inferiores, edema, dor abdominal, sopro, insuficiência cardíaca congestiva, pressão de pulso alargada, hipertensão pulmonar ou diminuição de pulsos distais à FAV.2
O diagnóstico de FAV depende da correlação atenciosa entre anamnese, antecedentes e exame físico completo. Estas lesões podem não ser diagnosticadas inicialmente e os pacientes podem apresentar sinais ou sintomas anos depois.3 No caso relatado, a causa provável da FAV foi lesão iatrogênica no procedimento laparoscópico, não diagnosticada na ocasião, cinco anos antes. Traumas penetrantes, incluindo lesões iatrogênicas, são responsáveis por 20% das FAVs.2 Lesão de grandes vasos durante a laparoscopia é rara, aparecendo em menos de 0,1% dos pacientes4 e, geralmente, relacionada com o método de introdução dos trocáteres.
As FAVs com diagnóstico tardio podem provocar alterações anatômicas e hemodinâmicas importantes. Há um aumento no fluxo de sangue na artéria proximal à FAV, o que acaba dilatando a artéria. Em casos extremos, a artéria pode ficar ectasiada ou aneurismática. O fluxo de sangue também aumenta na veia. A força de cisalhamento do fluxo arterial na veia leva a espessamento ou arterialização da parede do vaso, assim como a dilatação e a alongamento. Além disso, com o aumento do volume e da pressão na veia proximal, o fluxo venoso distal fica mais lento, resultando em incompetência das válvulas, fluxo de sangue venoso reverso e hipertensão venosa. Com o crescimento da FAV, alguns sintomas sistêmicos podem se manifestar. Há um aumento no volume de sangue no sistema venoso, resultando num aumento do retorno venoso para o coração, numa diminuição na pressão sanguínea arterial periférica e num consequente aumento no débito cardíaco pelo aumento da frequência cardíaca e do volume sistólico. Por esse aumento de volume de sangue venoso e consequente redução de volume de sangue arterial, o sistema renina-angiotensina-aldosterona é ativado, resultando na retenção de sódio e água. A insuficiência cardíaca se instala quando o coração não é mais capaz de compensar esse aumento de volume sanguíneo.5 , 6
Com isso, pacientes com FAV, mais comumente, apresentam sintomas de dispneia progressiva de esforço, sopro e dor. FAVs crônicas com alto débito podem causar insuficiência cardíaca e dilatação da veia cava inferior e das veias ilíacas, além de edema das extremidades inferiores. O quadro clínico da doente do presente caso era grave, com repercussões cardiovasculares exuberantes. No entanto, essa apresentação clássica pode estar ausente em até metade dos pacientes.7
A anamnese e o exame físico cuidadosos podem identificar a presença de FAV; porém, exames de imagem adicionais são necessários tanto para confirmação como para localização e planejamento do tratamento. A imagem permite a avaliação do tamanho da FAV e das consequências hemodinâmicas, e define relação com estruturas adjacentes, fato indispensável para o planejamento cirúrgico.5 No caso relatado, o principal exame para diagnóstico e planejamento foi a angiotomografia, com complementação de US e arteriografia no momento da cirurgia.
Feito o diagnóstico, deve-se ressaltar que somente 2% das FAVs pós-traumáticas têm resolução espontânea (6). A tendência, na verdade, é que elas aumentem, levando a uma maior complexidade no reparo tardio. Portanto, a existência de fístula adquirida por si só já é indicação de tratamento.5
Do ponto de vista técnico, a exposição cirúrgica no reparo aberto para o tratamento de FAV de diagnóstico tardio pode ser um desafio devido à hipertensão venosa e à inflamação dos tecidos adjacentes, resultando em maior morbidade e mortalidade8. Grandes vasos colaterais com uma anatomia venosa complexa frequentemente envolvem perda significativa de sangue.3 Brewster et al.9 relataram uma taxa de mortalidade operatória de correção da fístula arteriovenosa ilíaca de 5 a 10%. Davis et al.2 documentaram morbidade em 39% das correções cirúrgicas de FAV ilíaca.
Diante disso, o caráter menos invasivo do tratamento endovascular ganhou espaço e vem tornando-se o tratamento de escolha em inúmeros casos.3 , 5 - 7 , 10 Implante de endopróteses no sistema arterial ou venoso, e embolização - ou uma combinação dessas abordagens7 - são algumas das opções disponíveis, bem como o uso de oclusores e endopróteses torácicas.10 , 11 A técnica preferencial é a endoprótese que exclui a conexão entre veia e artéria de maneira eficaz em vasos de maior calibre, fechando a comunicação e mantendo a continuidade vascular.3 , 5
O reparo endovascular das comunicações arteriovenosas traumáticas utilizando-se endopróteses foi inicialmente descrito em 1992, por Parodi12. Muitos autores, desde então, incluindo Sanchez et al.13, Marin et al.14, McCarter et al.15 e Zajko et al.16, demonstraram que as endopróteses são eficazes no tratamento de uma variedade de lesões arteriais, incluindo fistulas arteriovenosas.
A anticoagulação sistêmica como parte do tratamento foi indispensável para prevenção da trombose venosa devido à dilatação aneurismática do sistema venoso à jusante da FAV e, consequentemente, do tromboembolismo pulmonar.
Além do sucesso técnico obtido com o tratamento endovascular da FAV, houve rapidamente a reversão total da insuficiência cardíaca e da hipertensão pulmonar. Esta última, quando não tratada, correlaciona-se com uma sobrevida média de 2,8 anos, com taxa de sobrevivência em 1, 3 e 5 anos, respectivamente, de 68, 48 e 34%.17
A correção de FAV de alto débito é o único tratamento definitivo para a insuficiência cardíaca congestiva secundária, mesmo quando esta se apresenta em suas formas mais graves. No caso relatado, a resolução da FAV alterou a sobrevida da paciente, que apresentava insuficiência cardíaca congestiva terminal aos 34 anos de idade.
O tratamento endovascular com endoprótese para correção de FAV adquirida, de alto débito, vem se mostrando um método eficaz e seguro, podendo ser considerado tratamento de primeira escolha nesses pacientes.