versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.45 no.2 São Paulo 2019 Epub 25-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1806-3713/e20190043
A tuberculose ainda é uma prioridade clínica e de saúde pública. Estima-se que, em 2017, houve 10,0 milhões de novos casos de tuberculose e 1,3 milhões de mortes decorrentes da doença, sendo que aproximadamente 1,0 milhão dos casos e 195.000 das mortes ocorreram em crianças com menos de 15 anos de idade.1,2 A tuberculose é agora reconhecida como uma das 10 principais causas de morte em crianças com menos de 5 anos de idade em áreas com alta incidência de tuberculose. Historicamente, a atenção tem sido voltada para a tuberculose pulmonar em adultos, porque é a forma mais infecciosa. Adultos com tuberculose pulmonar transmitem a doença por meio de partículas infecciosas de aerossol, que são tipicamente produzidas quando um paciente com doença pulmonar cavitária tosse. Crianças pequenas são menos propensas a ter doença pulmonar cavitária e, portanto, não representam um grande risco de transmissão.3-6 Além disso, como é mais difícil diagnosticar a tuberculose em crianças, a carga da doença é geralmente subestimada.
Recentemente, a ciência da carga global da tuberculose em crianças tem aumentado, resultando em mais atenção à tuberculose pediátrica do ponto de vista clínico e da saúde pública e pesquisa.1,2,7-11 A natureza paucibacilar da tuberculose em crianças é um obstáculo ao diagnóstico mais preciso, assim como o são o fato de que os sinais, sintomas e achados radiológicos são frequentemente inespecíficos e o fato de que os testes imunodiagnósticos (ensaios de liberação de interferon gama e testes tuberculínicos) não são capazes de diferenciar infecção por Mycobacterium tuberculosis de doença ativa. A expansão das evidências disponíveis na literatura científica para embasar diretrizes de diagnóstico e tratamento que sejam de boa qualidade e específicas para a pediatria é uma questão fundamental,1,2,7-11 assim como o é a necessidade de aumentar a disponibilidade de formulações mais apropriadas para crianças, atualmente disponíveis por intermédio do Global Drug Facility (Dispensário Global de Medicamentos) da Stop TB Partnership (Parceria Internacional para Acabar com a Tuberculose).12
Não obstante a extensa morbidade e mortalidade das formas graves de tuberculose em crianças (meningite tuberculosa e tuberculose miliar), pouca atenção tem sido dada à melhor maneira de tratar a tuberculose em crianças admitidas na UTI. Pesquisas e revisões estão em andamento na tentativa de explorar e definir as melhores práticas em casos de tuberculose em adultos tratados na UTI.13 A admissão de adultos com tuberculose na UTI ocorre mais frequentemente em virtude de envolvimento pulmonar extenso, que pode resultar em SDRA, hemoptise potencialmente fatal ou cirurgia pulmonar.14 Em adultos imunodeprimidos, a deterioração neurológica causada pela meningite tuberculosa pode ser outro motivo de admissão na UTI. Abordagens para reconhecer e tratar essas apresentações têm sido discutidas na literatura.15 No geral, a mortalidade em pacientes da UTI com tuberculose é muito alta, geralmente superior a 50%.16
Recorremos à nossa experiência no Departamento Pediátrico Nacional de Referência para Infecções Respiratórias, em Sofia, na Bulgária, para identificar a viabilidade de estudos e as lacunas no tratamento da tuberculose pediátrica grave. Entre 2015 e 2018, cinco crianças com meningite tuberculosa foram admitidas no hospital, com média de idade de 1,2 anos (variação: 0-3 anos) e média de peso corporal de 9,6 kg (variação: 6-13 kg). Duas apresentavam imunossupressão sem relação com o HIV e não apresentavam nenhuma outra comorbidade importante. Com base nas culturas (de líquido cefalorraquidiano, em 3 casos, e aspirado gástrico, em 2), todas as cinco crianças receberam diagnóstico confirmado de infecção por cepas sensíveis de M. tuberculosis; um paciente apresentou também esfregaços positivos na coloração de Ziehl-Neelsen. Todas as crianças apresentavam envolvimento pulmonar não cavitário na radiografia de tórax; duas delas apresentavam doença bilateral que sugeria a presença de tuberculose miliar. Nenhuma das crianças apresentava desconforto respiratório grave o suficiente para que se iniciasse suporte ventilatório, e nenhuma apresentava sinais de sepse. O tratamento de rotina com isoniazida, rifampicina, etambutol e pirazinamida foi iniciado em média 4,4 dias após a apresentação (variação: 1-16 dias). A média de tempo de conversão das culturas, com base em culturas mensais, foi de 43,2 dias (variação: 40-46 dias). Em todas as cinco crianças, a cura clínica foi alcançada após 10-12 meses de esquema terapêutico exclusivamente oral. Embora limitadas, as evidências provenientes desses cinco casos clínicos são encorajadoras no que tange aos possíveis desfechos da tuberculose grave em crianças tratadas na UTI. No entanto, os casos descritos representam um pequeno número de crianças com um número limitado de manifestações da doença. Além disso, nenhuma das crianças recebeu um esquema terapêutico que fosse ideal para penetrar o sistema nervoso central. Portanto, é necessária uma revisão mais abrangente de todos os pacientes pediátricos com tuberculose admitidos na UTI. Embora apresentem doença disseminada, crianças com tuberculose miliar frequentemente não se apresentam em estado crítico; não foi documentado nenhum caso de paciente pediátrico com sepse ou choque séptico clássicos. No entanto, são necessárias mais informações para descrever com precisão todas as manifestações da tuberculose grave em crianças. Da mesma forma, há apenas alguns relatos de SDRA em crianças com sintomas agudos semelhantes aos da pneumonia decorrentes da tuberculose, que podem ser facilmente confundidos com coinfecção bacteriana aguda.17 É necessária uma maior compreensão para descrever a epidemiologia, apresentação e tratamento desses casos na UTI pediátrica.18
A experiência com casos em adultos demonstra a complexidade da farmacocinética e farmacodinâmica dos tuberculostáticos em pacientes em estado crítico. A absorção de tuberculostáticos orais pode diminuir até 70% em virtude de gastroparesia, paralisia intestinal, profilaxia farmacológica contra úlceras gástricas e alteração da microbiota intestinal. Níveis abaixo do ideal de medicamentos no sangue e tecidos afetados podem ser atribuídos a vários fatores, inclusive circulação ineficiente, com acúmulo de líquido, e hiperfiltração glomerular, com aumento da depuração renal.19,20 Embora aparentemente isso também se aplique a casos pediátricos, não há evidências específicas documentadas. Há outras preocupações referentes exclusivamente às crianças, tais como a distribuição variável dos medicamentos e o metabolismo variável em diferentes faixas etárias.21 A necessidade de assegurar níveis sanguíneos e teciduais adequados das formulações orais e intravenosas de tuberculostáticos disponíveis, bem como de fornecer o melhor tratamento de suporte, são fatores fundamentais no tratamento desses casos complexos de tuberculose. Ainda há poucos dados farmacocinéticos a respeito de crianças muito pequenas ou em estado crítico tratadas com tuberculostáticos de primeira ou segunda linha, e ainda há muito a ser feito.
A escassez de evidências a respeito da tuberculose infantil no contexto do tratamento de pacientes da UTI em estado crítico exige um esforço coletivo para determinar a magnitude dessa demanda médica não atendida e a elaboração de diretrizes de melhores práticas. Embora tenhamos descrito alguns casos de meningite tuberculosa que necessitaram de tratamento na UTI, é necessária uma revisão mais abrangente do espectro completo da doença e suas apresentações clínicas e das melhores formas de tratamento em crianças que necessitem de internação na UTI em virtude de tuberculose grave. Isso só pode ser alcançado em estudos observacionais multicêntricos colaborativos com ferramentas-padrão de coleta de dados e uma plataforma de dados compartilhada.