versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.82 no.2 São Paulo mar./abr. 2016
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.04.008
Rabdomiomas são tumores mesenquimais benignos compostos de células estriadas maduras da musculatura esquelética. Constituem menos que 2% de todos os tumores de músculo estriado,1 e são divididos em subtipos cardíaco e extracardíaco. Os rabdomiomas cardíacos geralmente ocorrem em crianças, sendo considerados como lesões hamartomatosas, estando frequentemente associados com facomatoses, como a esclerose tuberosa,1,2 e hamartomas do rim e de outros órgãos.1 Clínica e morfologicamente, os rabdomiomas extracardíacos são ainda divididos em três subtipos: variantes vaginal, fetal e adulta. O tipo vaginal é uma massa tumoral polipoide de ocorrência rara, observada na vagina e vulva de mulheres de meia-idade. O tipo fetal, subdividido em rabdomioma juvenil,3 é prevalente nas regiões da cabeça e pescoço em crianças. Em geral, o rabdomioma extracardíaco do tipo adulto é um tumor unifocal de cabeça e pescoço em pacientes de meia-idade,4,5 sendo multifocal em 14-26% dos casos.6 Embora os rabdomiomas adultos ocorram em tecidos moles da cabeça e pescoço em até 70-93% dos casos,1 as lesões glóticas são extremamente raras. Até a presente data, apenas 22 casos foram relatados. Com esse artigo, descrevemos mais um caso de rabdomioma glótico do tipo adulto e revisamos a literatura pertinente com dois objetivos: (I) avaliar o padrão de referência terapêutica dessa doença, para evitar tratamento inadequado; e (II) aumentar o conhecimento sobre essa entidade entre cirurgiões e patologistas.
Um homem com 75 anos foi encaminhado ao nosso Departamento com história de quatro anos de disfonia progressiva. O exame com endoscópio flexível demonstrou edema homogêneo na submucosa do terço médio da corda vocal direita, associado ao comprometimento da mobilidade da corda vocal. A tomografia computadorizada (TC) do pescoço com contraste, revelou uma lesão profunda da corda vocal direita, estendendo-se até o espaço paraglótico, com realce patológico do contraste baixo e uniforme (fig. 1). Os achados clínicos e radiológicos sugeriam natureza benigna; diante disso, planejamos uma cirurgia conservadora. Depois da anestesia geral, o paciente foi submetido a uma excisão transoral com laser de CO 2 (Digital AcuBlade(tm), Lumenis(r), Israel) regulado para 10 watts, com onda contínua em emissão de modo superpulsado. O tumor, situado profundamente na corda vocal direita, foi facilmente enucleado en bloc, tendo um aspecto de nódulo oval medindo 22 mm em sua maior dimensão (fig. 2). A depressão na corda vocal direita deixada pela incisão (fig. 3) cicatrizou por segunda intenção. O curso pós-operatório transcorreu sem eventos dignos de nota: o paciente recebeu alta um dia após a cirurgia, tendo readquirido a mobilidade da corda vocal e a fala normais. No estudo histológico, foram observadas características morfológicas típicas de rabdomioma do tipo adulto com folhetos de grandes células poligonais separadas por pouco tecido conjuntivo. As células apresentavam citoplasma eosinofílico abundante com núcleos excentricamente posicionados, enquanto que, em algumas áreas, foi observada vacuolização citoplasmática com núcleo em posição central. Os estudos imuno-histoquímicos demonstraram forte positividade celular para actina e desmina de músculo esquelético. No seguimento de 12 meses, observou-se completa oclusão da depressão (fig. 4), sem evidência de recidiva.
Figura 1 Tomografia computadorizada com intensificação por contraste. Demonstra a intensificação de uma massa laríngea direita localizada profundamente no músculo vocal.
Provavelmente, os rabdomiomas extracardíacos dos tipos adulto e fetal têm origem no músculo esquelético do terceiro e quarto arcos branquiais.1,7 Sua natureza neoplásica não fica clara, porque, geralmente, as células tumorais não expressam marcadores de proliferação celular, como Ki-67 e PCNA, se assemelhando mais com hamartomas do que com neoplasias.7 Em 1992, Gibas e Miettinem demonstraram poucas anomalias clonais cromossômicas em suporte à natureza neoplásica dos rabdomiomas.8 Até a presente data, foram descritos apenas 22 casos de rabdomioma de laringe do tipo adulto (tabela 1). Johansen et al., em 1995, revisaram todos os casos de rabdomioma de laringe do tipo adulto (n = 12) previamente descritos1; depois de 1995, mais dez casos foram publicados. Os pacientes se encontravam na faixa etária de 16-79 anos (média, 59 anos; 59% de todos os pacientes pertenciam às sexta e sétima décadas de vida, com relação entre gêneros (H/M) = 1:1,75). Em 12 casos, o tumor se localizava na glote; em quatro, na aritenoide; e em sete pacientes, na região supraglótica. Embora estridor e obstrução das vias aéreas possam ocorrer abruptamente, em geral a lesão permanece assintomática até causar sintomas como disfonia (86%), disfagia (18%) e dispneia (8%), normalmente com progressão lenta (duração mediana = 2,5 anos) (tabela 1). Habitualmente, o aspecto macroscópico é o de uma tumefação na submucosa, com possível extensão profunda para o interior da estrutura da laringe; mas o tumor pode ter aspecto séssil. Os diagnósticos diferenciais são: tumores neurogênicos ou vasculares, oncocitoma, osteoma, tumor de Abrikossoff e rabdomiossarcoma.1 Nos estudos radiográficos, o rabdomioma do tipo adulto aparece nas imagens de ressonância magnética ponderadas em T1 - mas também em T2 - como uma lesão homogênea, isointensa ou ligeiramente hiperintensa com relação ao músculo; e como uma lesão ligeiramente hiperdensa na tomografia computadorizada.4 Os tipos adulto e fetal devem ser histologicamente diferenciados: o tipo adulto mimetiza de perto a estrutura do músculo esquelético adulto e contém grande número de grânulos de glicogênio positivos para PAS e sensíveis para diástase, enquanto que o tipo fetal é composto de células neoplásicas menos diferenciadas.3 A imuno-histoquímica demonstra o imunofenótipo muscular, com forte positividade para marcadores musculares específicos. Em nosso caso, e também na literatura, desmina mostrou ser um marcador confiável.1,2
Tabela 1 Rabdomiomas de laringe do tipo adulto
Fonte/ano | Localização | Idade/gênero | Queixa principal/duração dos sintomas | Tratamento | Comentários |
Clime et al. (1963) | Corda vocal | 48/M | Rouquidão/três meses | Excisão endoscópica | Não foi informada recidiva |
Battifora et al. (1969) | Glote | 55/M | Rouquidão/três anos | Excisão com laringofissura | Sem informação de seguimento |
Bianchi e Muratti (1975) | Falsa corda vocal direita | 52/F | Rouquidão | Excisão endoscópica | Não foi informada recidiva |
Bagby et al. (1976) | Localização | 55/M | - | Excisão endoscópica | Não foi informada recidiva |
Ebbesen et al. (1976) | Corda vocal | 64/F | Rouquidão e sensação de corpo estranho/seis meses | Excisão endoscópica | Não foi informada recidiva |
Winther (1976) | Glote | 39/M | Rouquidão/três anos | Excisão endoscópica | Recidiva |
Boedts e Mestdagh (1979) | Falsa corda vocal direita | 76/F | Rouquidão/dois meses | Excisão endoscópica | Não foi informada recidiva |
Kleinsasser e Glanz (1979) | Ventrículo direito | 16/M | Obstrução aguda das vias respiratórias/início repentino | Laringectomia total | Diagnóstico inicial equivocado de rabdomiossarcoma |
Helliwell et al. (1988) | Corda vocal | 52/M | Rouquidão/seis meses | Excisão com faringotomia lateral | Não foi informada recidiva |
Heliwell et al. (1988) | Corda vocal | 66/M | Rouquidão/oito anos | ? | Sem informação de seguimento |
Hamper et al. (1989) | Glote | 51/F | Dispneia e disfagia | ? | Recidiva |
Johansen et al. (1992) | Corda vocal esquerda | 51/M | Rouquidão, ronco/1 ano | Hemilaringectomia | Não foi informada recidiva |
Selme et al. (1994) | Corda vocal direita | 31/F | Rouquidão | Remoção completa após biópsia endoscópica | Anomalias cromossômicas clonais |
LaBagnara et al. (1999) | Aritenóide | 69/F | Rouquidão/cinco anos | Excisão endoscópica | Restauração da função normal das cordas vocais dentro de seis meses |
Orrit et al. (2000) | Ventrículo esquerdo | 66/M | Rouquidão e disfagia/quatro meses | Remoção externa | Paralisia de corda vocal |
Brys et al. (2005) | Corda vocal | 79/M | Rouquidão/cinco anos | Remoção externa | Alta após dez dias de hospitalização |
Liess et al (2005) | Corda vocal | 69/M | Assintomático | - | Multifocal |
Jensen e Swartz (2006) | Aritenoide Falsa corda vocal direita | 66/M | Disfagia, rouquidão/três anos e dispneia súbita | Excisão endoscópica | Alta reatividade para desmina. Seguimento de 18 meses |
Koutsimpelas et al. (2008) | Epiglote | 72/F | Globus e rouquidão/1 ano | Excisão endoscópica | Lesão multifocal |
Farboud et al. (2009) | Aritenóide direita | 76/M | Rouquidão, disfagia e apneia do sono | Traqueostomia e vários procedimentos endoscópicos de citorredução | Bilateral |
Friedman (2012) | Prega ariepiglótica esquerda | - | Disfonia | Excisão endoscópica | - |
Cain et al. (2013) | Aritenóide | 67/F | Rouquidão e dispneia progressiva | Traqueotomia e hemilaringectomia | Após 16 meses, fechamento completo da glote com fonação e sem evidência de recidiva |
Caso presente (2013) | Glote | 75/M | Rouquidão/4 anos | Excisão endoscópica | Sem recidiva |
O tratamento definitivo para rabdomiomas de laringe do tipo adulto é realizado com uma excisão completa. Embora em oito casos da literatura a presença de lesões extensas tornasse necessária uma abordagem externa (tabela 1), inclusive com laringectomia total, nos casos em que o rabdomioma estava confinado à endolaringe deve-se dar preferência à abordagem transoral. A excisão transoral minimamente invasiva (CO2) e assistida por laser parece ser ideal em termos de eficácia e também pela baixa morbidade, e, para tanto, é necessária apenas a incisão do músculo vocal, ou da mucosa, sem qualquer remoção. Uma vez que ainda não foi documentada diferenciação de um rabdomioma do tipo adulto para uma variedade maligna, é possível que uma abordagem mais invasiva se constitua em tratamento excessivamente cuidadoso. Entretanto, a excisão radical é obrigatória, devido à possibilidade de recidiva (dois casos na literatura),9,10 que pode ser atribuída a uma excisão primária incompleta - passível de ocorrer devido à consistência friável da lesão.
O rabdomioma de laringe é um tumor benigno raro que deve fazer parte do diagnóstico diferencial para todas as lesões submucosas da laringe. É aconselhável uma abordagem conservadora, pois o tumor pode ser enucleado por técnica endoscópica.