Compartilhar

Tratamento híbrido de embolia por projétil de arma de fogo em bifurcação aórtica abdominal complicada com pseudoaneurisma de aorta tóraco-abdominal e oclusão de artéria ilíaca comum: relato de caso

Tratamento híbrido de embolia por projétil de arma de fogo em bifurcação aórtica abdominal complicada com pseudoaneurisma de aorta tóraco-abdominal e oclusão de artéria ilíaca comum: relato de caso

Autores:

Patrick Bastos Metzger,
Rafael Borges Monteiro,
Maria Luiza Leite de Medeiros,
Willian Guidini Lima,
Vinicius Bertoldi,
Fabio Henrique Rossi,
Nilo Mitssuru Izukawa,
Antônio Massamitsu Kambara

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Vascular Brasileiro

versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301

J. vasc. bras. vol.13 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/jvb.2014.012

INTRODUÇÃO

Com o aumento da criminalidade e das lesões interpessoais, o número de pacientes atendidos nos centros de trauma devido a ferimentos por projéteis de arma de fogo (PAF) vem aumentando nas últimas décadas e hoje estes já superam em incidência as lesões por outros agentes no Brasil.1

Embolizações intravasculares por PAF são raras e podem levar a complicações graves e diversas, a depender do local de alojamento do projétil.2 , 3 O diagnóstico de embolia, seja arterial ou venosa, é de difícil realização no atendimento inicial ao trauma e muitos destes pacientes são tratados na vigência de suas complicações.2 - 4 Relatamos um caso de embolização de PAF na aorta abdominal complicada com pesudoaneurisma de aorta tóraco-abdominal e oclusão de artéria ilíaca comum direita, tratado de forma híbrida.

RELATO DO CASO

Um homem de 18 anos, admitido no setor de atendimento ao trauma, vítima de PAF em região tóraco-abdominal posterior. Não havia evidência de orifício de saída do projétil e o paciente apresentava-se hemodinamicamente estável, eupneico e com presença de todos os pulsos em membros. Chamava atenção ao exame físico a presença de paraplegia de membros inferiores. O raio X de tórax mostrou a presença do PAF na 11.ª vértebra torácica (T11) à direita e ausência de hemo/pneumotórax ou pneumoperitôneo. A tomografia de tórax e abdômen demonstrou apenas fratura de corpo de T11, com projétil localizado nesta topografia (Figura 1A). Após cinco dias de internação hospitalar, apresentou frialdade e cianose de membro inferior direito (MID), com ausência de pulsos femoral e distais. A angiotomografia revelou a presença de um pseudoaneurisma de aorta tóraco-abdominal a 2 cm do tronco celíaco e oclusão de artéria ilíaca comum direita (AICD), com presença de projétil em topografia da bifurcação aórtica abdominal (Figura 1B, C, D). Optou-se então por tentativa de tratamento endovascular em suite de hemodinâmica, com o uso de endoprótese S-TAG 26 × 21 × 100 mm (Gore Medical Inc, Flagstaff, Ariz) associado ao uso do introdutor Dryseal(r) 18 F (Gore(r) Medical Inc, Flagstaff, Ariz), captura e retirada do projétil com cateter -laço Snare(r) de 20 mm (Boston(r) Scientific, USA ) e angioplastia com Stent revestido - Viabahn(r) 9 × 50 mm (Gore Medical Inc, Flagstaff, Ariz) no nível da AICD.

Figura 1 A) Tomografia de abdômen superior com projétil no nível da 11.ª vértebra torácica com fratura cominutiva do corpo vertebral. B) Tomografia de abdômen após cinco dias do trauma demonstrando migração do projétil para nível de quinta vértebra lombar em topografia de bifurcação aórtica. C) Angiotomografia após cinco dias de trauma com pseudoaneurisma tóracoabdominal. D) Angiotomografia com oclusão de artéria ilíaca comum direita e reenchimento de artéria ilíaca externa. 

A endoprótese foi implantada recobrindo o colo do pseudoaneurisma justa tronco celíaco com tratamento efetivo do mesmo (Figura 2A, B). A aortografia abdominal demonstrou o projétil em bifurcação aórtica, com oclusão da AICD. Foi feita captura com cateter laço do projétil, porém, em razão do grande diâmetro ocasionado pelo impacto do projétil na coluna vertebral, a retirada deste pelo segmento ilíaco-femoral foi impossível. No intuito de tratar a isquemia crítica do membro inferior direito, um Stent autoexpansível recoberto foi implantado em AICD com recanalização do vaso, porém observou-se imagem sugestiva de trombo em artéria ilíaca comum esquerda durante a arteriografia de controle. Optou-se então pelo implante de Stent autoexpansível de nitinol Smart Control(r) 9 × 60 mm (Cordis(r) Corporation, Johnson & Johnson, USA ), com abertura do fluxo do segmento tratado. Contudo, a migração do projétil, novamente para a AICD, provocou a oclusão do Stent revestido previamente implantado (Figura 2C). O paciente foi levado ao Centro Cirúrgico para a realização de laparotomia exploradora com a retirada do projétil em bifurcação aórtica e a retirada dos Stents em artérias ilíacas devido a tromboses repetidas, mesmo após a passagem de cateter de embolectomia nos segmentos acometidos (Figura 3).

Figura 2 A) Arteriografia por subtração digital demonstrando pseudoaneurisma tóraco- abdominal a aproximadamente 2 cm do tronco celíaco. B) Resultado do tratamento endovascular com endoprótese S- TAG com oclusão total do pseudoaneurisma. C) Arteriografia aorto- ilíaca após implante de Stent revestido à direita e Stent autoexpansível à esquerda. Note-se a oclusão à direita e imagem negativa sugestiva de trombo em intra-Stent implantado em artéria ilíaca comum esquerda. 

Figura 3 A) Isolamento cirúrgico da bifurcação aórtica. B) Aortotomia com retirada do projétil e posterior retirada dos Stents. C) Arteriorafia primária da aorta abdominal. D) Stents autoexpansível e revestido. Note-se a presença de trombos aderidos à malha do Stent autoexpansível. E) projétil de arma de fogo retirado da aorta. Note-se, em detalhe, o achatamento do projétil que impossibilitou a retirada do mesmo pelo segmento ilíaco-femoral (visão frontal). 

O paciente foi mantido inicialmente em Unidade de Terapia Intensiva, na qual evoluiu satisfatoriamente, com retorno dos pulsos em membros inferiores e resolução da isquemia crítica do MID.

DISCUSSÃO

Embolia é uma complicação rara causada por ferimentos de arma de fogo, estando presente em 0,3% dos casos de traumas penetrantes.5 Esta ocorre quando projéteis de baixa velocidade adentram na circulação sanguínea e migram pelo sistema arterial (80% dos casos) ou venoso, e se alojam em áreas de bifurcação, sendo a mais comum a bifurcação da artéria femoral.2 , 3 A embolização de corpo estranho na circulação sanguínea foi primeiramente descrita por Thomas Davis em 1834, que relatou uma embolização por fragmento de madeira na circulação venosa.6 Atualmente, menos de 200 casos estão relatados na literatura médica mundial.4 Autores nacionais relataram três casos de embolia em artéria femoral tratados por via cirúrgica convencional, nos últimos 12 anos.7

O diagnóstico de embolização por PAF é de difícil realização e a sua suspeição é o resultado de uma das três observações a seguir: 1- incongruência entre o número de orifícios de entrada e de saída do PAF, sem uma confirmação adequada por métodos radiográficos ou intraoperatórios da presença de projéteis nas cavidades corpóreas; 2- Uma radiografia demonstrando a localização do projétil em uma cavidade corporal numa localização distante da trajetória presumida; 3- finalmente, como no caso relatado, imagens radiológicas seriadas demonstrando movimentação do corpo estranho.2 - 4

Embolizações por PAF no sistema arterial frequentemente são sintomáticas por levarem à isquemia crítica do membro ou órgão acometido no trajeto vascular ocluído; por isso, seu diagnóstico é precoce em comparação às embolias venosas, apesar de existir relato na literatura de sintomas tardios ocorrendo num período de até 14 meses.8 No caso relatado, observamos sintomatologia isquêmica em MID após cinco dias do trauma, provavelmente decorrente da migração do projétil da aorta tóraco-abdominal para a bifurcação aorto-ilíaca, gerando a oclusão da AICD e a formação do pseudoaneurisma tóraco-abdominal.

O manejo das lesões embólicas por PAF é ditado pela sua localização anatômica, pelo tempo da sua descoberta e pela presença ou ausência de sintomatologia. Sem dúvida, todas as lesões sintomáticas devem ser tratadas, assim como as lesões arteriais.2 - 4 , 8 , 9 A discussão na literatura persiste quanto ao manejo de lesões venosas assintomáticas, em particular na embalia por PAF localizada em duas regiões: 1- na circulação pulmonar, que não tenha causado isquemia ou abscesso pulmonar e erosões brônquicas9; 2- em ventrículo direito, nos casos com PAF menores que 5 mm firmemente alojados, sem evidência de arritmias ou disfunção valvar.10 Nestes casos, a observação clínica é defendida por alguns autores.4 , 9 - 11

As possibilidades de tratamento intervencionista variam na literatura entre técnicas cirúrgicas abertas, endovasculares e híbridas.12 - 15 A primeira retirada endovascular de embolia por PAF relatada na literatura foi em 1980, quando foi realizada a captura de projétil alojado em ventrículo direito.16 Desde então, os métodos endovasculares se difundiram e se tornaram preferência no tratamento desta afecção.12 Contudo, deve-se avaliar a factibilidade desta técnica, para que projéteis de grande tamanho ou que estejam tamponando lesões de difícil acesso endovascular sejam melhor manejados via cirurgia convencional ou , como no caso em questão, seja feito tratamento híbrido, com a correção endovascular das complicações traumáticas da embolia - sejam os pseudoaneurismas ou aneurismas traumáticos de aorta17 , 18 - e a posterior retirada cirúrgica aberta do projétil.

REFERÊNCIAS

1. Waiselfisz JJ. Mapa da violência III. Os jovens do Brasil. Brasília: Unesco; 2002. p. 29-120.
2. Keele KL, Gilbert PM, Aquisto TM, Lichtenberg R, Field TC, Lee BK. Bullet Embolus to The Thoracic Aorta with Successful Endovascular Snare retrieval. J Vasc Interv Radiol. 2010 Jan;21(1):157-8.
3. Fernandez-Ranvier GG, Mehta P, Zaid U, Singh K, Barry M, Mahmoud A. Pulmonary artery Bullet embolism- Case report and reviw. Int J Surg Case Rep. 2013;4(5):521-3.
4. Miller KR, Benns MV, Sciarretta JD, et al. The Evolving Management of Venous Bullet Emboli: A case series and literature review. Injury. 2011 May;42(5):441-6.
5. Mattox KL, Beall Jr AC, Ennix CL, DeBakey ME. Intravascular migratory bullets. Am J Surg. 1979;137(February (2)):192-5.
6. Bining HJ, Artho GP, Vuong PD, Evans DC, Powell T. Venous Bullet embolism to the right ventricle. Br J Radiol. 2007;80(960):e296-8.
7. Konopka CL, Miletho FN, Jurach A, Aita JF. Bullet embolism: three cases related and literature review. J Bras Med. 2001;80(1-2):41-5.
8. Adegboyega PA, Sustento-Reodica N, Adesokan A. Arterial bullet embolism resulting in delayed vascular insufficiency: a rationale for mandatory extraction. J Trauma. 1996;41(3):539-41.
9. Ezberci F, Kargi H. Surgical management of a pulmonary artery missile embolism after an air rifle wound to the liver. South Med J. 1999;92(12):1207-9.
10. Nagy KK, Massad M, Fildes J, Reyes H. Missile embolization revisited: a rationale or selective management. Am Surg. 1994;60(December (12)):975-9.
11. Kortbeek JB, Clark JA, Carraway RC. Conservative management of a pulmonary artery bullet embolism: case report and review of the literature. J Trauma. 1992;33(6):906-8.
12. Reil TD, Dorafshar AH, Lane JS, Dong P, Cryer HG, Ahn SS. Gunshot wound to the left ventricle with bullet embolization to the descending aorta: combined endovascular and surgical management. J Trauma. 2005;59:1012-1017.
13. Von Ristow A, Pallazo JC, Cury JM Fº, et al. Aneurismas Traumáticos da Aorta. J Vasc Bras. 1986;2(1):25-29.
14. Aun R. Ruptura traumática da aorta por traumatismo torácico fechado. J Vasc Bras. 2007;6:5-6.
15. Mioto B Nº, Aun R, Estenssoro AE, Puech-Leão P. Trata- mento das lesões de aorta nos traumatismos torácicos fechados. J Vasc Bras. 2005;4:217-26
16. Hartzler G. Percutaneous transvenous removal of a bullet embolus to the right ventricle. J Thorac Cardiovasc Surg. 1980;80:153-5.
17. Moainie SL, Neschis DG, Gammie JS, et al. Endovascular stenting for traumatic aortic injury: an emerging new standard of care. Ann Thorac Surg. 2008;85:1625-9.
18. Brito LCM, Martins JT, Furlani O Jr. Endovascular treatment of thoracic aortic pseudoaneurysm: case report. J Vasc Bras. 2010;9(1):57-60.